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Luhuna de Carvalho. «De Bernie Sanders ao Comité Invisível está tudo em crise»

A propósito da publicação do livro Depois da Lei, de Luhuna de Carvalho, o AbrilAbril entrevistou o autor sobre essa espécie de viagem de memória aos percursos dos activistas das comunas que sonhavam com motins.

Luhuna de Carvalho, autor do livro <em>Depois da Lei</em>.
Luhuna de Carvalho, autor do livro Depois da Lei.CréditosDR / DR

Depois da Lei é um misto de memórias com discussão. Um percurso por vários pontos da Europa e muitas lutas e campos de batalha. Um balanço de um tempo que o autor sente que terminou e que necessita de uma reflexão, para poderem ser reinventadas novas formas de insurreição contra o capitalismo.

Acaba o livro a negar a utilidade de escrever um livro. Foi bom não ter seguido o seu próprio conselho. O que o levou a escrever?

Há uma destrinça, mesmo que seja ténue, entre mim e a personagem do livro. No início começa logo por se identificar com outro nome. De certo modo, o livro é - algo que só se tem consciência à posteriori - o balanço de um período de vida muito extenso que abarca 42 anos de vida. Sendo que não é uma autobiografia, não conta de uma forma sequencial todos os episódios da vida. Senti que havia um ciclo que terminava e que se tinha esgotado uma forma de vida meio autónoma e insurrecional, muito ligada a várias experiências colectivas. A ambiguidade do livro é que termina com a personagem a dizer que não o quer publicar mas este obviamente é publicado, e que não vai terminar a tese, que obviamente terminou. Essa forma de vida insurrecional e comunal acaba por tornar-se uma pescadinha de rabo na boca ou, recorrendo à mitologia, na figura do Ouroborus [Ouroboros é um conceito simbolizado por uma serpente - ou por um dragão - que morde a própria cauda. Uma espécie de símbolo do eterno retorno]. Para sair desse círculo vicioso é necessário fazer uma espécie de traição, como escrever um livro.

No livro há vários tempos. Há o cronológico, há o dos acontecimentos, o momento em que algo acontece de diferente, e há o cíclico, que pode desmanchar o que sucedeu. A certa altura escreve que a violência surge como uma espécie de suspensão do tempo e de erupção da liberdade e possibilidade total.

A questão aí não é apenas dos momentos em que a história sai do eterno presente, usando a ideia do Debord de que vivemos num eterno presente. Na verdade, nós não vivemos na história, mas numa suspensão da história. Há aqui duas suspensões em confronto: por um lado, a de um tempo onde não há alternativa, do tempo de trabalho abstracto, do tempo que serve para contabilizar o valor; e por outro lado, uma suspensão que interrompe a reprodução do capital e do poder. A ideia não é a criação de pequenas ilhas de resistência - como defendia Hakim Bey, no seu livro sobre Zonas Autónomas Temporárias - , é uma ideia diferente e messiânica - no sentido que utilizava Walter Benjamin -, que criticava as revoluções por ter tentado tomar o comboio da história quando o objectivo devia ser parar esse mesmo comboio, para que a suspensão se torne permanente e que liquide completamente esses mecanismos de reprodução de poder e da economia capitalista.

A certa altura do livro põe a hipótese que a suspensão era uma espécie de programa dentro do programa, como no filme «Matrix II». Por um lado, os manifestantes provam que o poder é duro quando são reprimidos, e não se baseia só no consenso; por outro lado, a polícia permite que em determinados momentos os manifestantes desbordem a ordem estabelecida, para mostrar que esse perigo existe.

A questão é exactamente essa. Os gestos que podem significar essa interrupção, os mais óbvios, pertencem à esfera da violência. Mas na verdade, nem esses gestos conseguem concretizar essa interrupção. É preciso procurar um gesto revolucionário que não seja a violência, mas que também não seja a não-violência. De certa maneira, é esse o jogo do motim. O motim não é uma violência militarizada. O motim é organizado, tendo mecanismos de espontaneidade, mas almeja interromper algo: colocar um buraco no tecido da metrópole. É a criação de um momento e de uma força comum. É construída sobre as cumplicidades informais. No início do livro fala-se daquele partido invisível, em Mirafiori [zona das fábricas principais da Fiat], como a expressão dos laços que se criam nas comunidades operárias e nos bairros.

A estetização da violência não é um beco sem saída? Quando fiz reportagens no País Basco, os sectores próximos da ETA justificavam a manutenção da luta armada como a única forma de luta que não pode ser reaproveitada pelo sistema. Mas a sua dinâmica irracional isolou os defensores da independência do País Basco, e dessa forma foi reaproveitada pelo sistema.

Há obviamente o perigo da estetização da violência. No livro há momentos em que a personagem se distancia disso. Mas há diferentes expressões desse fenómeno: a violência «autónoma» é uma violência contra coisas e não contra pessoas. Não quer dizer que não surjam conflitos e choques contra a polícia, mas não é uma violência punitiva que vá tornar pessoas alvo. É uma violência que entende a metrópole e a cidade enquanto mecanismo de reprodução não só do capital como do poder. Pode ser entendida como extensão da ocupação de uma praça ou do espaço público. Quando o Black Lives Matter corta estradas está, no fundo, a fazer um ataque ao sistema da propriedade privada, impedindo a circulação de mercadorias.

No grande motim de Los Angeles, de 1992, depois da sentença do caso Rodney King, que descreve no livro, quando apanhavam pessoas dentro dos carros ia tudo a eito.

Isso foi um detalhe no meio de milhares de coisas que aconteceram nesses dias. Mas quero dizer que existe de facto uma fetichização e estetização da violência. O livro reconhece isto. Lembro-me muito bem dos motins frente ao parlamento português - eu estava lá, e aquilo estava longe de ser apenas algo de camaradagem fraternal, era algo de violento e perigoso. Mas a questão não é defender aquelas formas de protesto. O livro é uma história com uma pessoa que não vive, inicialmente, essas coisas no seu país de origem, no seu ambiente militante, e vai ao encontro dessas experiências de violência, e nelas procura não a violência, mas esse momento de suspensão que falamos.

O que ocorre nos momentos em que a sociedade explode é essa suspensão. Vivemos, como dizem Badiou e outros, numa era de motins, que vai desde Génova, há mais de 20 anos, ao Sri Lanka, há uns meses. Aqui, muitas vezes, não percebemos que o motim não é uma simples explosão de uma panela de pressão, é uma forma própria e histórica de organização.

Não concorda - já que usou Badiou - que há uma certa imprevisibilidade do acontecimento, aquilo que surge e rompe essa trama de normalidade, não é possível planificar previamente como se tratasse de uma receita de cozinha.

Isso acontece em quase todas as formas de expressão política. Por exemplo, ache-se o que se achar daquilo que se passou em Hong Kong, mas o que se tem observado nos últimos 20 anos é uma espécie de contaminações de estratégias dentro do motim.

Como é que começa o black bloc? Estão todos vestidos de preto para não serem reconhecidos. Em Hong Kong não só estão vestidos de negro, como estão de cara tapada para não poderem ser reconhecidos por meios electrónicos. Há formas de luta que transitam de Hong Kong para o Chile e que vieram anteriormente de Génova. Esse contágio não é feito directamente por pessoas ou por gente que viaja, mas muitas vezes via Internet. O conhecimento viaja.

Há aquele livro muito interessante de Joshua Clover [Riot. Strike. Riot - The New Era of Uprisings] onde é descrito como numa época anterior do capitalismo havia uma classe operária totalmente integrada dentro do mercado de trabalho, que era sindicalizada e que tinha formas de luta que podiam ser expressas pelos sindicatos através de greves e outras formas de luta; neste momento em que os vínculos do trabalho se tornaram muito precários e em que todos os laços sociais se tornaram líquidos e pouco estáveis, o motim emerge como forma de luta organizada. Tal como o partido operário, o sindicato, a comissão de vizinhos e o centro social são formas históricas que surgiram num determinado contexto, o motim é também uma forma que aparece num determinado momento e não apenas como explosão abstracta e irracional de violência.

De certa maneira, a posição política que eu assumi - ao princípio por simpatia e depois de forma cada vez mais consciente e reflectida - é a que procura lidar com a existência dessa forma de luta cada vez mais hegemónica e a procura pensar.

Isso é a primeira parte do seu livro a que chama: à procura da guerra. A seguir vai à procura de uma comunidade, que chama comuna, tentando construir com outros laços mais duráveis.

A partir do Maio de 68, e mesmo antes, assiste-se a uma série de insurreições nas sociedades afluentes do capitalismo da Europa Ocidental, em que a questão já não é a miséria material, mas é de certa maneira a miséria existencial. Parte dessa miséria está expressa no isolamento social que todos sentimos. É isolamento porque as relações com os outros tornam-se cada vez mais mediadas por abstrações.

Temos o sentimento muito metropolitano de sentir que se tem 50 amigos ao mesmo tempo que não se tem nenhum. Vai-se a um evento do nosso quadrante político, artístico ou ideológico e conhece-se 50 pessoas, mas individualmente cada uma dessas 50 pessoas se sente igualmente isolada. Isso existe em Lisboa, mas quanto maior for a cidade maior é a dimensão desse vazio. Não é por acaso que o livro começa em Londres, onde simultaneamente cada um pode encontrar o seu nicho, mas que são sítios de uma solidão incrível. Há uma espécie de consciência, a partir dos anos 90, que o espectáculo, abordado por Guy Debord, não é apenas uma alienação colectiva, mas está inscrito na vida pessoal de cada um.

Surge a problematização que a construção do comunismo passa também por construir esse tipo de relações comunitárias. Quando se tem o eclipse das grandes comunidades operárias e acabam as grandes fábricas da Europa industrializada, cresce a necessidade e a procura da comuna, não como escapatória, mas como forma de luta. Há uma frase de um panfleto que me é caro que foi frequentemente citado e mal compreendido …

Do Comité Invisível?

Sim, de um texto anterior, não assinado, que se chamava «Appel» e que diz: «para nós deixa de haver amizade que não seja política». E o que é que as pessoas entendiam nesta frase? Entendiam que só deveriam ser amigas dos seus camaradas ideologicamente afins. Mas era precisamente o contrário, o próprio acto de eu ser amigo de alguém já é um acto político. O próprio acto de haver entre mim e o outro uma fidelidade maior do que a que eu tenho ao Estado já é um acto político. Isso vê-se em Hobbes, que defende que aquilo que sustenta a sociedade é um contrato social com o Estado. E aqui é o contrário disso.

A certa altura do livro, tem uma espécie de consciência que a comuna é efémera. Relembra e tem saudades do momento em que ela era plena, mas não se esquece de quando se torna uma prisão, e vai saltando de comuna em comuna, sabendo que elas não duram, como alguém que saltita de paixão em paixão. Isso não é uma estratégia escapista?

Não é tanto escapista, porque não é uma estratégia. É mais uma consciência amarga desse facto. Uma estratégia seria eu pensar: isto só acontece de vez em quando, por isso vou surfar de comuna em comuna. A consciência amarga desse facto é perceber que não estão reunidas as condições históricas e sociais para que esses encontros se concretizem na sua plenitude. E, eventualmente, pagamos todos caro a ideia que assim seria. Mas isso não quer dizer que não tenha havido momentos que devem ser tidos em conta. O que há de interessantes são os momentos em que há um verdadeiro encontro capaz de produzir coisas: sejam centros sociais, movimentos políticos, livros, textos e reflexões que preencham a nossa vida totalmente, da mesma maneira que não exigimos que as nossas relações sejam relações perfeitas.

Zizek, no meio de muito disparate, tem uma reflexão que eu acho relevante. Diz que está farto de gente que se junta no café a comer croissants e a relembrar, com saudade, como participaram num dia de ocupação e barricadas, mas que depois disso estão exactamente na mesma situação que antes. E que, se calhar, para mudar as coisas eram precisos mais do que momentos heróicos de revolta, eram precisas instituições que solidificassem e expressassem as mudanças necessárias.

Não sou avesso a ideias de estruturas duradouras que sobrevivam aos picos de paixão e de depressão. Uma experiência de centro social em que participei, o RDA, durou 12 anos, nos seus piores e melhores momentos, mesmo quando não estava toda a gente apaixonada, e continua. Não tenho problemas com essa ideia de uma perseverança das coisas. A personagem do meu livro eventualmente teria. O fim do livro, esse recusar de escrever e ser escritor, é porque ele se recusa a assumir enquanto identidade essa dimensão criativa e de escritor, por que tudo o que fez até aí era em nome de um colectivo. Essa ideia de ser um escritor, ir à livraria ver se o livro está lá, andar nas redes sociais, tirar selfies e dar autógrafos, todas essas coisas é algo que lhe motivam uma espécie de recusa ética.

Mas em muitas páginas do livro parece que ele procura, de uma forma intensa, uma singularidade, algo que faça dele um eu.

Singularidade e individualidade são coisas muito diferentes. Um indivíduo é uma expressão de alguém mediada por instituições sociais: “quem sou eu no meio artístico, no activismo político, quem sou eu na sociedade civil, etc”. Uma singularidade tem de ver com uma experiência muito pessoal. Há no livro uma tentativa de subjectivação muito grande. Ser uma singularidade e encontrar uma experiência própria e íntima, de encontrar até uma consciência de si, mas há uma recusa em dar esse passo cabal para os meios que permitiriam essa individualidade.

Mas essa ideia de experiência individual não é já uma formatação do capitalismo? Tudo hoje se parece resumir a questões individuais, com indivíduos sofredores que podem resolver os seus dramas com a motivação certa e o livro de auto-ajuda indicado.

É por isso que esse «nós» que percorre o livro tenta estabelecer uma forma de vida que não é privada nem pública: não é nem o «eu», nem o «todos». A comuna é precisamente essa forma que está entre o público e o privado, essa forma que habita um certo fragmentar do mundo e que cria arquipélagos de comunismo. O fim do capital é o fim da abstração criada pela lei do valor. O fim do capitalismo seria o fim dessa ideia de um todo mediado pelo Estado ou pelo valor. É por isso que para Mario Tronti há aquela oposição à ideia do povo sustentada por Gramsci, para ele não existe povo, só existe classe, e ela só existe no momento da secessão com a ideia de povo. Uma ideia muito leninista: é a classe que vai tomar o poder, porque ela é a única que tem a capacidade de desmontar o capitalismo.

É como se estivéssemo presos a uma espécie de equação matemática em que há o indivíduo de um lado, e do outro o Estado e a república. Um é o singular e os outros plurais. Para lá disso, surge esta ideia de singularidade, cuja forma colectiva é esta forma comunal. Há um texto de Luckács, escrito durante a sua juventude, “Sobre a pobreza de espírito”, em que ele ainda não usa os conceitos comunistas, mas fala da emancipação ou redempção, expondo uma dimensão utópica e messiânica que vai encontrar no marxismo, em que há um contacto não mediado de singularidades. É nessa problemática das comunas, da guerra, e das singularidades que eu faço uma espécie de ontologia comunista que não é aquela do materialismo dialéctico.

No Rumo à Estação da Finlândia, do historiador Edmund Wilson, há um capítulo sobre as comunas que se foram construindo, sobretudo na imensidão dos EUA, e todas elas costumam estar ligadas a lideranças individuais e desaparecem numa geração. São efémeras e carismáticas.

Esse é o grande problema. A ilusão que percorre a personagem do meu livro, que existe em Negri e em Tronti, é a que têm os militantes de muitos grupelhos leninistas e esquerdistas, que é acreditarem que a alternativa à estrutura institucional e hierárquica das forças políticas é uma estrutura horizontal. Ora, não há estruturas não hierárquicas e horizontais. Há estruturas formais e estruturas carismáticas. Eu que andei a vida toda nisto, nunca vi nada que funcionasse sem figuras carismáticas. O que há são momentos onde os carismas que se anulam uns aos outros.

Nesses grandes momentos revolucionários as pessoas tendem a transcender-se a si próprias e aos seus defeitos.

Nesses grandes momentos e movimentos – sejam as manifestações anti austeridade, os gilet jaunes, ou o que seja – emergem sempre momentos de participação plena, em que há uma espécie de explosão de carismas mas, depois desses acontecimentos, ficam um ou dois ou três que se guerreiam. Da mesma maneira que não tenho problemas em aceitar a autoridade explicita que venha de uma instituição democrática, não tenho também problemas em aceitar a autoridade carismática de uma pessoa, durante um determinado tempo, desde que isso seja explícito e discutido por todos. Se no meu colectivo, ante um debate que vá disputar terreno político, há uma gaja ou um gajo que saiba falar melhor, deve ir essa pessoa, desde que isso seja discutido entre todos nos termos mais claros possíveis. O livro novo do David Graeber [O Principio de Tudo – Uma Nova História da Humanidade] é muito interessante. O que define as sociedades pré-estatais não é a ideia de comunismo primitivo, de que falava Engels, mas uma enorme plasticidade política. Para mim, interessa-me muito mais a ideia de uma plasticidade política permanente discutível, do que a ideia que vai chegar um dia que onde vamos todos ser assim ou assado.

Os momentos de organização têm de ser a antecâmara do comunismo em que se quer viver?

Não necessariamente. As formas políticas que nos permitirão vingar estão a ser ensaiadas agora. Mas de há dez anos para cá todas as facções de esquerda estão numa absoluta crise, das mais sociais-democratas às mais marxistas-leninistas, estalinistas, anarquistas, autónomas ou insurrecionais. De Bernie Sanders ao Comité Invisível, está tudo em crise. E ninguém tem uma ideia e consegue dizer: temos isto, funciona, vamos lá. Não é seguro que queiramos todos a mesma coisa, mas de facto ninguém sabe muito bem o que fazer. É isso o nosso problema agora.

Como se está a inventar a solução para isso?

Tentando, experimentando, ensaiando, vendo coisas que se estão a passar aqui e em outros sítios. Vendo o que é que correu bem e o que é que correu mal. O que é que persiste e o que é que não persiste.

Passando à abordagem da parte pessoal no livro. A personagem é um beto, revê-se nele?

Totalmente. Há uma questão de origem de classe que é inequívoca. Que transparece nas palavras que eu escrevo, independentemente da minha capacidade de o dizer ou não. Surge num contexto histórico e social no qual há uma certa hegemonização da ideia de classe média ou pequena burguesia. Dizia Agamben, que vivemos na hegemonização dessa ideia da pequena burguesia global. Mas a personagem procura confrontar-se com uma série de situações não do ponto de vista de necessidade pessoal ou familiar.

O trajecto da personagem não é um pedido de desculpas.

Por que é que teria de ser? Há uma espécie de uma origem familiar que já é contraditória em si: burguesa e de esquerda. Há um lado burguês e outro de uma pequena aristocracia brutalmente proletarizada. Parte da minha educação burguesa foi ter passado muito tempo em outros países. E nesses países essa hegemonização da pequena burguesia global é mais avançada. A cultura jovem (que abarca gente com mais de 40 anos) e hipster, de hoje em dia, é uma cultura pequeno burguesa. Uma cultura de consumo de cultura pop, acesso a mecanismos de entretenimento individualizados, feitos de meios sociais que são uma expansão da sociabilização burguesa. Há uma espécie de condição burguesa que se hegemoniza. Esse processo dá-se mais tardiamente em Portugal. Não é por acaso que estas formas de luta de ocupações surgem quando começam a aparecer as gerações que se tornam adultas na afluência das classes médias pós-entrada para a CEE. E é isso que explica que, na minha opinião, a composição da esquerda que se irá concretizar, nos próximos anos, seja cada vez mais informal e tome a forma de colectivos.

Isso não é um problema? O historiador Thomas Frank denuncia esta passagem da esquerda para gerações mais aburguesadas com o título provocatório de que «os ricos votam na esquerda e os pobres na direita», denunciando o abandono por parte de certa esquerda das classes populares.

Há uma questão, que também está expressa no livro: eu não voto “na esquerda”, eu voto em partidos de esquerda. A militância que nele surge explicita é de certa maneira uma secessão com a ideia de esquerda. É a tentativa de criar algo comunista, e insurrecional, mas que não seja à esquerda. Mas também não é o tipo de militância identitária feita de hiper-civismo. Não é a ortodoxia tankie [designação pejorativa inglesa em relação a comunistas pró-soviéticos] ou social-democrata, mas também não é a militância “pós-moderna”. Sendo que os tankies nos acham pós-modernos, e os pós-modernos, tankies. Ambos com alguma razão. Isto para dizer, que sim, que a esquerda perdeu alguma perspectiva de classe. Mas ao mesmo tempo, o que há de problemático nessa afirmação é pensar que a classe só existe quando a esquerda lhe presta atenção, e que a classe precisava da esquerda para alguma coisa. A classe sempre foi capaz de criar os seus mecanismos.

Entre os quais também os partidos operários de esquerda. Daí a teorização da classe em si e da classe para si. A ideia que não basta ser de uma classe é preciso ter consciência dessa pertença e desse poder e conseguir ter uma praxis revolucionária.

Aquilo que existe no nosso imaginário como classe operária é algo que hoje em dia não existe. É verdade que na China, na Índia e em outros sítios a situação é diferente. Mas esta ideia da hegemonização do trabalho industrial é cada vez menos verdade. Mesmo na China, o trabalho industrial é menor que há 20 anos, e é muito menor que na altura em que a classe operária era uma força política mais poderosa. Creio que foi na Bélgica que a classe operária foi numericamente dominante dentro da classe trabalhadora, e nunca passou dos 30%. O que não nega que exista hoje uma massa proletarizada cada vez maior, porque se estende no capitalismo, mesmo nos países ocidentais ricos. Existe, para além disso, uma massa enorme de gente que nem sequer proletarizada é. O que é muito mais discutível é que essa enorme massa de gente se reconheça como igual e como fazendo parte da mesma classe.

Baudelaire dizia que o maior feito do diabo era fazer crer que não existia, o maior feito do capitalismo é fazer-nos acreditar que somos indivíduos todos diferentes.

Sim, mas como era constituída essa ideia de classe operária? Havia 20 mil pessoas a trabalhar na mesma fábrica, hoje em grande parte do mundo isso não é verdade.

Se tenho 30 mil tipos a andar de bicicleta a transportar mercadorias ligados a uma aplicação, se calhar eles têm uma condição comum, mesmo que não estejam sob o mesmo tecto. Se eu tenho 30 mil pessoas num call center, se tenho milhares de asiáticos a trabalhar nos campos portugueses se calhar isso é classe operária.

Por isso é que surge em alguns locais a ideia de que o momento de consistência da classe operária, usando uma linguagem marxista, se dá hoje não na esfera da produção, mas na da circulação. Mas o poder político da classe não vinha da sua condição comum, vinha sobretudo do lugar que ocupava na reprodução do capital.

O livro sendo uma educação sentimental é uma espécie de reaproximação aos seus pais.

A minha mãe é uma pessoa que vem de famílias endinheiradas, fez parte do MPLA e envolveu-se em acções clandestinas, ficou em Angola depois da independência e viveu os eventos de 1977 que ocorreram lá enquanto momentos de uma brutalidade terrível. Tinha amigos a massacrar amigos. E perante o colapso do projecto nacionalista e socialista angolano resolveu voltar para Lisboa e abandonar um pouco essa ideia de mundo. O meu pai é o escritor Ruy Duarte de Carvalho que teve um percurso semelhante. Vinha de uma família aristocrata que entretanto perdeu o seu estatuto. Vai para Angola, tem o mesmo gesto de recusa da portugalidade, com o abraçar do nacionalismo angolano. E ele, sim, permanece fiel ao projecto, mesmo quando descamba, e só sai de Angola dois ou três anos antes de morrer na Namíbia. Havendo raiva e havendo desilusões, como há em todas as relações filiais, há também um assumir com honestidade o peso que esta figura teve em mim, sem me sentir esmagado por ela. E em relação à minha mãe, a mesma coisa.

Toda a escrita é uma forma de sedução, vê a sua escrita como quê?

Miguel Esteves Cardoso, uma referência inusitada desta conversa, diz que ao escrever se é capaz de dizer aquilo que não se consegue confessar ao melhor amigo. Há uma espécie de balanço consigo próprio, que só é balanço quando é exposto ao mundo, de uma forma que pode até ser violenta e dura. Admite-se uma série de medos e traumas. A mim interessa-me o exercício da escrita e o que permite. O registo teórico e literário permite dizer coisas que a escrita académica não permite. Uma tentativa de sedução de outro que não significa dizer: que especial que eu sou, mas vai no sentido do que defendia Luckács quando afirmava que na expressão do mais íntimo se ia à procura também do mais universal.

Há uma certa reserva na escrita dos episódios sexuais.

Até pode ser conservadorismo, mas aí entraria em questões que são feridas abertas. Há uma espécie de recusa de entrar por aí, porque seria muito fácil. Se este meio é libertino e voraz em tudo o que faz, certamente que nas dimensões afectivas e sexuais também o é. E aí havia um perigo de se tornar uma coisa folhetinesca e telenovelesca. Não quer dizer que não pudesse ser tratado literariamente e não fosse crucial para o pleno entendimento da experiência que estou a relatar, mas nesse momento foi uma espécie de escolha, não tenho ainda a capacidade de falar disso sem que se torne uma coisa que não queria que fosse. Posso referir «o gajo foi lá, mandou-lhe dois bananos e duas raias de quetamina e depois partiu uma montra», mas seria necessário algo muito diferente para tocar nesses assuntos. Acho que a dimensão afectiva é tão íntima e mexe com tantas coisas que me falta ainda a linguagem para a descrever.

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