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A lógica da sopa de tomate

Os protectores do património a todo o custo, que votam em partidos que nada fazem pela cultura, batalham verbalmente com os ecologistas convictos, que acham que a guerra não polui e defender a paz é algo vazio.

CréditosJust Stop Oil Handout / EPA

Como entrada, uma sopa de tomate. Para primeiro prato, como não podia deixar de ser, vem sempre o torresmo da barriga do patrão, embora seja apenas para sua engorda, conquanto meta muita gente a salivar. Como sobremesa, há sempre uma boa dose de mediatismo para adoçar a boca – replicando-o, soltam-se as amarguras da vida própria, até ficar azedo.

Uns activistas, de uma organização chamada Just Stop Oil, têm vindo a sujar obras de arte, ou, em maior rigor, as suas molduras e vidros de protecção. Com sopa de tomate, puré de batata ou bolo, almejam, segundo dizem, espoletar o debate acerca da rápida destruição ambiental e chamar a atenção das pessoas, para que estas tomem posição e ajudem a combater a catástrofe. Caí eu na esparrela. E vim para aqui falar mais ou menos acerca disso.

Os activistas admitem que o acto em si é algo de absurdo, no entanto, alegam ter chegado o momento de agir absurdamente porque o estado a que se chegou requer medidas extremas. Valorizam a arte, mas sem vida na terra não existirá arte, e este é o momento de despertar as consciências e abrir o debate. Ora, o debate já foi aberto há muito tempo, e a abertura foi de tal maneira lassa que o grande capital entrou por ele adentro e dominou-o.

Todas as grandes empresas afirmam que têm preocupações ecológicas. Cimeiras são patrocinadas e organizadas por instituições pouco inocentes. Grandes objectivos são delineados, metas definidas – lirismos verdejantes. Contudo, o esforço para cumprir com todos esses pontos fica muito aquém do necessário. Greenwashing é a definição de todo este encapotar do capitalismo – que por definição prática (e teórica, se honesta) é impossível tornar-se verde.

É provável que toda essa audácia de sujar obras de arte seja motivada por uma preocupação genuína. É possível que as doações milionárias, como a de Aileen Getty, neta de J. Paul Getty, magnata do petróleo, sejam sinceras lavagens de consciência (como dizem no seu site, a maior parte do seu financiamento vem do Climate Emergency Fund1, co-fundado pela dita herdeira).

Sou céptico quanto a tudo isso, mas não importa para esta reflexão. Interessa, embora parcamente, especular em torno da eficácia dessas acções. Há que perceber, caso os seus protestos cumpram com o despertar que desejam, o que se seguirá. Mas uma coisa é certa, os grandes financiadores não querem o fim do sistema capitalista – despiciendas as pequenas doações do cidadão comum. E, por norma, quando investem o seu dinheiro em alguma coisa é com o proveito próprio em vista, tão-pouco seja para distrair os olhares de outros assuntos.

«É provável que toda essa audácia de sujar obras de arte seja motivada por uma preocupação genuína. É possível que as doações milionárias, como a de Aileen Getty, neta de J. Paul Getty, magnata do petróleo, sejam sinceras lavagens de consciência.»

Para darmos seguimento ao mediatismo, que várias vezes relevou o valor financeiro das obras de arte embodegadas, façamos um paralelismo pouco interessante entre o mundo/mercado da arte e o Ambiente.

As obras estão em museus, mas mesmo assim fala-se dos seus preços milionários. Quem atribui, ou desenvolve, o preço às obras de arte, está-se borrifando para as obras enquanto arte – ser estrume ou ser arte é indiferente, desde que renda.2

Bem como se estão marimbando para a catástrofe ambiental iminente. No topo da pirâmide das classes sociais cultiva-se apenas o próprio umbigo. Porém, os protestos têm o intuito de chamar a atenção da base, do cidadão comum que também se «importa» com a arte, para combater as decisões do topo, e é nesta relação dialéctica entre a base e o topo que reside a complexidade que dificulta a tarefa de cumprir os objectivos enunciados pelos activistas.

A concentração dos meios de produção nas mãos de alguns dá o poder a essa minoria de decidir o destino da maioria a todos os níveis, económico, cultural, ambiental, educação, saúde... – prova de que a pluralidade publicitada, ufania dos corifeus, é uma mera manobra de marketing.

Se o ambientalismo serve de sabonete, a arte serve de esfregão para lavar a imagem do grande capital. Os capitalistas adquirem a sua fortuna prejudicando o ambiente. Alguns gastam parte das suas fortunas em obras de arte, hiper-valorizando para fins especulativos, poluindo também o mundo da arte e da cultura (devido a essa financeirização, também as instituições públicas obedecem às leis do mercado, e estão sujeitas a mecenatos interesseiros). O capitalismo tem a capacidade de conspurcar tudo aquilo em que toca. Como o sistema dominante, globalmente, é o capitalismo, o dedo porco chega a todo o lado.

«Se o ambientalismo serve de sabonete, a arte serve de esfregão para lavar a imagem do grande capital. Os capitalistas adquirem a sua fortuna prejudicando o ambiente.»

Enquanto as vidas das gentes vão sendo determinadas noutras instâncias, o povo fica perdido no mar de revoltas minúsculas e moralismos anódinos. Os raivosos que não admitem o desrespeito pelas criações do génio humano digladiam-se com os defensores da natureza que não querem abdicar do seu estilo de vida. Os protectores do património a todo o custo, que votam em partidos que nada fazem pela cultura, batalham verbalmente com os ecologistas convictos, que acham que a guerra não polui e defender a paz é algo vazio. Por vezes, tudo isto na mesma pessoa.

Não se pode concluir destas indignações que se valorize, no geral, mais a arte que o ambiente. Mais não seja porque o mundo das artes e da cultura também não está de grande saúde, no que à sociedade em geral diz respeito. Seguindo o absurdo que é reclamado como necessário pelos activistas: se cortar um dedo, vou dar muito mais importância a essa dor, do que aos pulmões que destruo com o tabaco; mesmo sabendo que sem dedo sobrevivo e sem pulmões não. A imediatez da dor relativa ao dedo sobrepõe-se à possibilidade de doença, no futuro. É uma questão dialéctica entre o abstracto e o concreto.

Uma situação específica facilmente descritível, contrastando com uma situação que, por muito que esteja fundamentada cientificamente, não é percebida de forma objectiva pela maioria. Porém, tal como a dor, o mediatismo dilui-se no tempo, mesmo quando o dedo é posto na ferida; permanecem a memória e as preocupações mais enraizadas, que quase nunca são ponto de ignição da mudança, de hábitos e de lutas.

Os activistas têm tido sucesso em chamar a atenção para eles. Também é verdade que, no seu site, têm alguma documentação e investigações que sustentam as preocupações que movem os protestos. Inclusive, apresentam várias medidas que devem ser tomadas para se acabar com o uso de combustíveis fósseis, mas nada de abrangente e, no geral, pouco estratégico.

Mesmo que se pare todo o consumo de combustíveis fósseis, já ou num prazo alargado, o que, dentro do capitalismo só é possível se o lucro for substituído por algo que renda tanto ou mais, a natureza não fica a salvo, nem em menor risco, apenas num estado periclitante diferente. Defender o Ambiente sem a proposta de um programa político consistente e radical, no sentido de ir à raiz dos problemas sistémicos, não passa de espectáculo para dar azo a manchetes de jornal e troca de raivas nas redes sociais.

As preocupações são legítimas. Puseram-nos a falar. Como outros já o tinham feito. Bandeiras políticas foram hasteadas nesse sentido – quase sempre para iludir. Ainda assim, a causa ambiental não pode estar desligada de uma visão socioeconómica revolucionária. De nada vale apelar à consciência enquanto esta for embater apenas na tabuleta publicitária e ficar lá colada.

«Mesmo que se pare todo o consumo de combustíveis fósseis, já ou num prazo alargado, o que, dentro do capitalismo só é possível se o lucro for substituído por algo que renda tanto ou mais, a natureza não fica a salvo, nem em menor risco, apenas num estado periclitante diferente.»

A consciência deve ser desperta para dar seguimento à acção estratégica visando a alteração profunda do sistema. O sistema não se muda de um momento para o outro, mas o caminho deve ser trilhado, agindo, transformando. (Pegando no exemplo de Portugal, cumprir a constituição – um documento fruto de uma revolução – é parte fundamental desse caminho. A nível internacional, o cumprimento da Carta da ONU e da Acta Final de Helsínquia vai nessa direcção – sabendo que uma bomba polui tanto na Ucrânia como na Síria. Acabar com os blocos militares, cuja função é a conquista de recursos, energéticos e não só. Encurtar as cadeias de produção e de distribuição. Soberania alimentar dos países. Primazia dos pequenos negócios. Controlo público dos recursos. Taxar os grandes lucros...)

Apele-se ao debate, mas que o debate seja feito de forma rica e com fundamento, não com base em superficialidades instigadas pelo próprio capitalismo para se auto-proteger. Podem continuar a sujar obras de arte, e mandar bolo à cara do boneco de cera do Carlos III, tirarão o sono apenas aos que têm de limpar o chiqueiro. Que continuem os protestos. Que chamem a atenção para as causas ambientais. No entanto, se continuarmos a debater e a protestar apenas as consequências do sistema, por muito que avancemos nesses aspectos, uns mais urgentes do que outros é certo, vamos sempre voltar a cair nos mesmos problemas. Estaremos apenas a adiar o triste fim – uma morte lenta e dolorosa, como alertam os maços de tabaco.

  • 1. «Most of our funding for recruitment, training, capacity building, and education comes from Climate Emergency Fund. We also receive donations from members of the public who support the campaign and from foundations and groups who are as terrified as we are about the unfolding climate crisis.» («A maior parte do nosso financiamento para recrutamento, formação, capacitação e educação provém do Fundo de Emergência Climática. Também recebemos doações de membros do público que apoiam a campanha e de fundações e grupos que estão tão aterrorizados como nós com o desenrolar da crise climática.») Em Just Stop Oil.
  • 2. «Viewed from the standpoint of the objective relations of capitalist society, the greatest work of art is equal to a certain quantity of manure.» Lifshitz, Mikhail (1976), The Philosophy of Art of Karl Marx, London, Pluto Press, p. 93.

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