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Liga dos Campeões: mais uma farsa da UE

Está aí a final da Liga dos Campeões. No Estádio do Dragão, Chelsea e Manchester City defrontam-se para poder erguer o mais prestigioso troféu de clubes em futebol.

CréditosJosé Coelho / Lusa

Como o título da peça deixa adivinhar, o texto que se segue não será para fazer uma análise desportiva da final e da competição, havendo muitos mais qualificados que eu para o fazer. Também não serão abordadas questões mais circunstanciais, como a relação entre a Champion’s e a abortada Superliga Europeia ou a polémica em torno da presença de adeptos nesta final e a diferença para com as competições e o desporto nacional. O que se pretende é demonstrar como o «projecto europeu», substanciado na União Europeia, teve um efeito negativo no mais popular desporto do mundo, através do seu impacto na Liga dos Campeões a partir de uma pequena mudança.

Os alicerces do Futebol Moderno

A construção da CEE/UE como Mercado Comum assenta em quatro «liberdades»: de providenciar serviços, e de movimento de capitais, mercadorias e pessoas. Se as primeiras três liberdades enunciadas facilmente revertem para a esfera económica e se consegue perceber como facilitam a concentração da riqueza das periferias para os centros económicos, a liberdade de movimento de pessoas sempre foi apresentada com uma máscara mais virada para faceta «humana» da UE, um sinal do progressismo da UE que alguns que gostam de se assumir à esquerda imediatamente levantam como bandeira de quão generoso e avançado este projecto europeu é, e o quão retrógrados serão os que a ele se opõem. Na verdade, esta liberdade de movimentos de pessoas podia ser perfeitamente integrada na liberdade de movimento de mercadorias, mas não seria boa publicidade que ficasse explícito como os construtores do Mercado Comum vêem os seus «cidadãos europeus». Vamos aqui falar de futebol, mas o mesmo se pode aplicar a diversos sectores da actividade humana, feita indústria.

O aumento de capital nos contratos de direitos televisivos, os valores milionários das transferências e contratos, e a compra dos clubes por magnatas, saltam à vista e enchem manchetes. Mas esse dinheiro todo não faria uma diferença gigante dentro das quatro linhas se a pseudoliberdade de circulação não estivesse contida no Tratado de Maastricht, que fundou a União Europeia em 1992. A partir de Maastricht, aos poucos, as legislações nacionais tiveram que ser alteradas para se ajustarem aos ditames da nova superpotência.

Saltando para 1995, o Tribunal Europeu da UE, a partir de uma queixa justa do futebolista Jean-Marc Bosman, toma duas decisões que irão alterar profundamente o futebol: impõe a liberdade do jogador poder sair do clube após expirar o seu contrato, dando mais poder aos jogadores sobre os empregadores (os clubes), e mais importante, eliminou a restrição de número de jogadores «comunitários» (nascidos num país da UE) a poder jogar por um clube, colocando as regras do futebol em harmonia com as leis da UE.

Se a primeira se pode assumir como benéfica para os principais protagonistas do jogo, apesar de ter tido como efeitos colaterais a ascensão dos agentes e a mentalidade mercenária, fruto da evolução do futebol como negócio, a segunda foi completamente desastrosa.

Concentração do capital desportivo

Até este ponto, de forma geral, quase todas as federações nacionais impunham restrições ao número de estrangeiros que podiam actuar por uma equipa. Se isso não impediu o surgimento de «grandes» a dominar o futebol nacional em alguns países, acumulando o melhor talento disponível em cada país, ainda assim existia um certo equilíbrio do nível das equipas nas competições nacionais e muito mais nas competições europeias, onde gerações recheadas de talento, muitas vezes surgidas de uma cantera, projectavam países e clubes ao mais alto nível europeu. O «sonho europeu» podia de facto ser uma realidade, conseguindo juntar as peças certas.

A partir de 1996, esse sonho rapidamente se começou a esfumar. Com a noção de «estrangeiro» a ser estendida para os «extra-comunitários» (afinal, parece que o progresso é nacionalismo com fronteiras mais alargadas), os clubes com mais recursos financeiros começaram a açambarcar o talento existente em clubes mais pequenos e de países com menos capacidade económica. Caso paradigmático de um clube prejudicado com estas novas regras é o Ajax. Clube histórico reconhecido mundialmente, com uma organização e academia que parece ter uma fonte inesgotável de talento, sofreu já por duas vezes um processo de rapina, encurtando o que podiam ser duas gerações de ouro do clube.

Enquanto os tribunais discutiam sobre o caso Bosman, Ajax ganhava a Liga dos Campeões em 1995 frente ao Milan e foi finalista em 1996 contra a Juventus. Pelo meio, perdia apenas Seedorf para um Sampdória de meia tabela da liga italiana. A partir do Verão de 1996, foi este o resultado:

Em 1998, já tinha perdido a maioria dos jogadores titulares das duas finais europeias, e em 2000 já nenhum estava a jogar no clube, sendo o único a não ter saído, o capitão veterano Danny Blind, que se reformou. Em 98/99, fariam o seu segundo pior resultado na história. Ressalvar que o Seedorf após uma época em Itália rumaria ao Real Madrid, confirmando a tendência de açambarcamento. Na imagem também fica patente o poderio económico que a Itália tinha nos anos 90, que para além das equipas mencionadas, clubes como a Fiorentina, Lazio, Roma ou Parma conseguiram formar equipas recheadas de talento, com Lazio e Parma a aproveitarem bem o Mercado Comum de jogadores.

Mas o Ajax voltaria a passar pelo mesmo processo mais recentemente. Com uma prestação muito mais modesta nas competições europeias desde os anos 90, atingiria em 2017 a final da Liga Europa, que perderia frente ao Manchester United. Desde esse regresso, a um nível menor, às finais europeias, isto aconteceu:

Volvidos quatro anos, apenas dois jogadores que pisaram o solo na final da Liga Europa ainda permanecem no clube. A final de uma competição secundária ou a meia-final da Champion’s é a que está reduzida a ambição de um dos clubes mais importantes da história do futebol. De realçar o peso crescente das equipas inglesas, com equipas com uma sala de troféus modesta como o Crystal Palace ou o Brighton a entrarem na pilhagem da academia holandesa, não pelo mérito desportivo que os tenha projectado a um nível superior, mas devido à tal concentração de riqueza permitida pelas «liberdades» da UE.

Apesar de ter usado o Ajax como exemplo, os adeptos de futebol em Portugal conhecem bem a realidade de ter plantéis quase em permanente reestruturação porque qualquer prestação mais bem-sucedida na montra europeia é sinónimo de pilhagem dos melhores talentos pelas ligas dominantes. No Futebol Moderno, o talento nos pés já não chega para criar lendas dos clubes.

Mas para ficar bem demonstrado o desequilíbrio que a «lei Bosman» provocou no futebol europeu, não nos vamos deter por o exemplo de um clube. Comparemos diversos espaços temporais para perceber a variação na diversidade de clubes e países presentes nas finais da Taça dos Campeões Europeus/Liga dos Campeões ao longo do tempo:

Antes de mais, irei colocar já de lado um contra-argumento que pode ser levantado. É verdade que só a partir de 97/98 (portanto, mais ou menos em linha com o início da «lei Bosman») é que puderam participar mais do que um clube por país na competição, pelo que à partida significaria mais diversidade antes dessa data. No entanto, e como os dados e a análise do futebol recente mostra, mesmo que nas últimas edições da Champion’s pudessem participar apenas 1 equipa por país, isso pouco alteraria o domínio das principais ligas europeias e de clubes como Real Madrid, Barcelona no contexto europeu ou o domínio interno de equipas como PSG, Bayern e Juventus. Pouco mudariam as caras a aparecer nas fases finais da Champion’s. A absoluta raridade de equipas fora das chamadas cinco principais ligas (Espanha, Inglaterra, Itália, Alemanha e França) nas meias-finais, mostra que, mesmo se o formato fosse o anterior, poucas alterações existiriam em termos de diversidade.

Como os dados mostram, retirando os anos fundadores da competição com o penta do Real Madrid, nenhuma década foi tão desequilibrada como a última que passou. Mesmo nos anos 80, em que houve menos campeões, a diversidade de clubes que atingiram as finais foi a maior de qualquer período. E se analisarmos década a década, vemos uma relativa estabilidade no número de campeões/presenças em finais tanto de clubes como de países. Não possível verificar no gráfico, está também uma elevada variedade de clubes que surgem em cada período, por exemplo, as equipas espanholas são uma visão rara nos anos 70 e 80, e por outro lado temos décadas onde surge o futebol romeno, noutras o jugoslavo ou escocês. A partir de 96/97, nota-se a progressiva diminuição tanto no número total como na variedade de clubes e países que atingem as fases finais desta competição, concentrando-se estas progressivamente no binómio Real Madrid/Barcelona e Premier League, que preenchem a maioria das presenças.

Para além da concentração do talento desportivo, uma coisa que fica clara quando vemos os plantéis das equipas é a distância da identidade dos clubes com os seus próprios países. A força do Benfica nos anos 60 corresponde a um dos períodos historicamente mais fortes da selecção nacional, a Laranja Mecânica é inseparável dos sucessos de Feyenoord e Ajax, o mesmo para a forte presença das equipas alemãs nos anos 70, que andou lado a lado com um Mundial e dois Europeus da Mannschaft. Hoje em dia, temos o absurdo de a convocatória espanhola para o Euro 2020 (realizado em 2021, o tempo é mais uma vítima do branding…) não contar com um único jogador do Real Madrid, que dominou a última década do futebol europeu. No entanto, haverá cinco jogadores da convocatória espanhola na presente final da Liga dos Campeões, disputada entre duas equipas inglesas.

Imperialismo também no futebol

Os danos que as regras comunitárias do Mercado Comum provocaram no futebol não ficaram limitados apenas dentro dos países que o integram. Se a perda de competitividade dos clubes de países do leste europeu se deve a questões mais estruturais que a mudança de regras no futebol, por outro lado é possível observar uma correlação muito forte entre a adopção das regras a partir de 1996 e o empobrecimento das competições nacionais e continentais sul-americanas.

Sendo as vagas que restringiam os estrangeiros, agora, apenas aplicáveis a extra-comunitários, isso significou um aumento considerável daquelas que podiam ser preenchidas por talento sul-americano, subtraindo assim a qualidade das equipas sul-americanas. Podemos verificar isto em dois campos. Por um lado, nos embates entre equipas vencedoras da Taça dos Campeões Europeus/Liga dos Campeões e os vencedores da Copa Libertadores na Taça Intercontinental/Mundial de Clubes:

Como se vê, a diferença entre um antes e após a «lei Bosman» é abissal. E não se pense que as equipas europeias anteriormente jogavam com as segundas linhas. Foi o quarteto lendário de Panucci, Baresi, Costacurta e Maldini que levou três golos dos paulistas Palhinha, Toninho Cerezo e Müller. A dupla de Merseyside Rush-Dalglish não conseguiu qualquer golo perante a raça dos argentinos do Independiente, e a mesma história Law-Charlton-Best podem dizer dos Estudiantes. Até o King Eusébio perdeu no confronto com o Rei Pelé (um vs cinco golos a duas mãos).

Outra forma de ver o evidente declínio está nas convocatórias da Canarinha. Vejamos a diferença da convocatória para os Mundiais em três períodos, o de 2002, último Mundial ganho, o de 2014, em casa, e para termos de comparação anterior ao período Bosman e com espaço temporal semelhante, 1990, em Itália:

Fora da análise da imagem, mas para se ter uma noção da evolução do processo, dos cinco mundiais conquistados pelo Brasil, três foram sem ter qualquer jogador a jogar na Europa. Estrelas como Carlos Alberto, Djalma Santos, Didi, Pelé, entre tantos outros, jogaram no seu auge unicamente no Brasil. Julinho, ponta-direita de enorme qualidade que jogava na Fiorentina em 1958 quando o Brasil conquistou o seu primeiro Mundial, sendo verdade que o próprio se recusou a ser convocado precisamente por sentir que tinha que jogar no Brasil para estar no escrete, mesmo que fosse convocado, seria o suplente de Mané Garrincha, situação praticamente impossível de imaginar aos dias de hoje. A primeira convocatória de jogadores a jogar no estrangeiro foi apenas no Mundial de 1982, com apenas duas presenças.

Olhando então para a tabela, vemos que em 1990, já há uma porta aberta para os brasileiros no futebol europeu, com diversos craques a jogarem no estrangeiro, casos de Careca e Alemão que faziam companhia a Maradona no Nápoles, ou Romário que brilhava num PSV muito forte nos finais dos anos 80. Mas não se nota a presença de jogadores nas equipas que se apelidam de «tubarões europeus». A larga maioria jogavam nos «3 Grandes», por regras próprias entre Portugal e Brasil, ou nas equipas italianas, que tinham o dinheiro e uma mentalidade mais aberta a jogadores estrangeiros. Se virmos a selecção que ganha em 2002, já se nota mais a presença dos maiores craques em equipas no topo do futebol europeu, como o Rivaldo no Barcelona ou Roberto Carlos no Real Madrid onde cedo se juntaria, respectivamente, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo. No entanto, a maioria dos jogadores convocados jogavam ainda no Brasil. Chegados ao Mundial no Brasil, a verdade é que o país anfitrião já não é a casa da maioria dos convocados, com apenas quatro em vinte e três, e já se nota o efeito da concentração, com a liga mais representada a ser a Premier League. Foi certamente humilhante para os jogadores terem perdido 7-1 contra a Alemanha, mas para a maioria, os dias seguintes foram de fazer as malas e rumarem para a Europa.

Da mesma forma que muitas crianças de países exportadores de cacau nunca comeram chocolate na vida, também muitas crianças sul-americanas nunca irão ter a oportunidade de ver ao vivo os maiores craques dos países, aqueles cujos posters decoram as paredes do quarto. A espectacular produção desta final da Liga dos Campeões pouco dirá aos miúdos brasileiros que sonham um dia ser o próximo Ederson ou Thiago Silva, que certamente os preferiam ver a ganhar a Libertadores a representar um São Paulo ou Fluminense.

Considerações finais

Este texto não trata de romantizar o passado, nem de procurar eras de ouro do futebol que parecem longe e desprezar a actual. Ao longo dos tempos, sempre houve graves problemas a atravessar o desporto, cada um sendo reflexo da sociedade de cada tempo, e em todos os tempos a natureza do jogo jogado conseguiu manter acessa a paixão em milhões espalhados pelo mundo. Mas entre passado e presente uma coisa é inegável: o jogo continua a começar 0-0 e a bola continua a ser redonda, mas nunca o campo foi tão desequilibrado como hoje em dia, e a final de hoje prova-o.

Com o caso particular do futebol, é possível perceber como até os supostos avanços civilizacionais adquiridos com a União Europeia e o Mercado Comum são um embuste, que nada mais fazem que avançar os interesses da classe exploradora. A matriz da UE está presa ao sistema económico vigente, e por isso, irreformável. Em capitalismo, a liberdade de circulação de pessoas é apenas a liberdade de mais um mercado. E este Futebol Moderno também não cai sem cair o capitalismo.

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