Numa entrevista concedida ao Brasil de Fato esta segunda-feira, o economista, defensor da Reforma Agrária e fundador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sublinhou a gravidade da situação que o Brasil atravessa, que caracterizou como «a pior crise de toda a sua história».
«É uma crise estrutural da forma como o capitalismo domina a sociedade e a economia, e isso aparece na produção, na economia, cada vez mais concentrada. Antes da crise nós tínhamos 45 bilionários, hoje nós temos 65 bilionários», disse.
«Essa é a grande contradição do capitalismo brasileiro, dependente, e traz como consequências uma verdadeira tragédia social, que é o aprofundamento da desigualdade social. Essa é a chaga maior, a marca da nossa sociedade», alertou o economista.
«estes "tempos de precarização, de retirada de direitos desde o governo [Michel] Temer até agora são apenas sinais da crise e dessa ganância da burguesia brasileira, que, diante da crise, jogou todo o peso nas costas da classe trabalhadora"»
Para Stedile, «o importante é entender nesse momento da crise brasileira que ela é estrutural. Isso significa que ela ultrapassa o período dessa conjuntura e desse governo. Significa que nós temos que pensar depois do "Fora Bolsonaro" em mudanças estruturais para podermos tirar o país da crise e recolocá-lo em novos trilhos, que consigam garantir bem-estar para toda a população».
Questionado sobre o nível de precarização do trabalho no Brasil, o dirigente do MST sublinhou que os dados actuais não se devem apenas à pandemia de Covid-19, pois já existiam «esses sinais desde 2014».
Defendendo a necessidade de uma grande aposta na reindustrialização do país e de reconcentrar investimentos produtivos na agricultura familiar, Stedile afirmou que estes «tempos de precarização, de retirada de direitos desde o governo [Michel] Temer até agora são apenas sinais da crise e dessa ganância da burguesia brasileira, que, diante da crise, jogou todo o peso nas costas da classe trabalhadora», ao ponto de «chegarmos ao absurdo» de, num «país continental, com tanta potencialidade de produção de alimentos, termos ao redor de 20 milhões de brasileiros que estão passando fome».
«Não estão passando fome porque falta produção, estão passando fome porque não têm rendimentos, não têm recurso para comprar comida no supermercado ou na feira», frisou.
Segundo os investigadores, existem mais 70 milhões na chamada insegurança alimentar, «que significa alimentar-se da pior maneira possível, aquém das necessidades, ou com alimentos saudáveis, nutritivos, que lhe garantem inclusive saúde. Essa é a fotografia da crise», acrescentou.
«Bolsonaro é apenas o espelho da crise, ele é o espelho da burguesia»
Questionado sobre as mudanças na base de apoio ao governo de Bolsonaro e a possibilidade de um impeachment [destituição], o economista lembrou que os movimentos populares da Frente Brasil Popular e do MST têm dito que o «governo Bolsonaro é apenas o espelho da crise, ele é o espelho da burguesia; o Bolsonaro só está lá porque a burguesia brasileira o colocou lá».
«Bolsonaro só está lá porque as forças da burguesia, seja o poder económico, as suas manipulações, seja pelos media, seja pelos partidos burgueses, todos apoiaram o Bolsonaro e colocaram esse insano lá [...] Uma grande parte destes, agora, está «arrependida»
«Lembrem-se da campanha "Bolsodoria", da campanha da Globo, da campanha de outros governadores. Na minha terra [Rio Grande do Sul], o [Eduardo] Leite, que agora se acha todo independente, fez campanha para o Bolsonaro. O que isso revela? Que o Bolsonaro só está lá porque as forças da burguesia, seja o poder económico, as suas manipulações, seja pelos media, seja pelos partidos burgueses, todos apoiaram o Bolsonaro e colocaram esse insano lá», explicou.
Uma grande parte destes, agora, está «arrependida», disse, e «o Bolsonaro, em si, por ser espelho da crise, ele não tem força social organizada própria, não tem sindicato, não tem universidade, não tem intelectuais, porque ele não tem também projecto de país, ele não tem projecto de nação. E quem não tem projecto de nação não consegue aglutinar força aliada em torno do projecto», acrescentou.
Burguesia dividida e a viabilidade da «terceira via»
No actual panorama brasileiro, João Pedro Stedile sublinha que a burguesia tem vindo a manifestar-se diariamente contra Bolsonaro, mas que está dividida em relação ao que fazer, havendo diferentes correntes no seu seio.
Stedile entende que uma parte, minoritária, «aposta todas fichas ainda na manutenção do Bolsonaro, no acesso a recursos públicos e nessa política estúpida de privatização do estatal».
Um outro sector da burguesia, que, na opinião do economista, é amplamente maioritário, «já não aguenta o Bolsonaro». Este grupo, dominante a nível económico, precisa no entanto de «resolver uma incógnita antes de tentar tirar Bolsonaro, que é criar uma unidade entre eles sobre quem é a chapa da chamada terceira via. Assim que eles acertarem a chapa, sabem que a terceira via só tem viabilidade se eles afastarem o Bolsonaro», defendeu Stedile.
«[Entre o sector maioritário da burguesia] Assim que eles acertarem a chapa, sabem que a terceira via só tem viabilidade se eles afastarem o Bolsonaro»
Uma terceira corrente da burguesia, minoritária, é a que se tem expressado ao lado de Delfim Neto, «um intelectual orgânico da burguesia» e uma «referência histórica» para esta camada, que tem defendido a necessidade de apoiar o Lula já na primeira volta «porque o Lula vai ganhar as eleições».
«É possível que a burguesia chegue a um acordo logo sobre a terceira via e é possível que a burguesia então accione o seu poder económico, o seu poder mediático na Globo, as suas influências no Congresso, para encontrar a saída jurídica do afastamento do governo Bolsonaro», disse Stedile, sublinhando que, da parte da classe trabalhadora, se deve insistir na «palavra de ordem que nos une, que é Fora Bolsonaro».
Sobre a possibilidade de um golpe da parte de agentes da Polícia Militar, militares e milícias armadas, em apoio ao governo de Bolsonaro e rompendo com o enquadramento institucional, João Pedro Stedile disse que «pode haver provocações aqui e acolá», mas que não acredita que vá haver tentativa de golpe por parte das PM ou que a maioria dos militares nos quartéis vá entrar em aventuras golpistas.
«Um governo progressista, popular, não é só possível, é necessário»
Confrontado com a perspectiva de que Lula da Silva possa ser de novo presidente do Brasil – eleito, no mínimo, à segunda volta – e questionado sobre a possibilidade de um governo progressista numa eventual gestão petista, Stedile afirmou que «um governo progressista, popular, não é só possível, é necessário, para evitar a tragédia social que se acumula dia após dia».
«É impossível colocar o Brasil nos trilhos sem controlar o capital financeiro, que é o que fica com toda a riqueza. Não é possível botar o Brasil nos trilhos sem controlar as empresas transnacionais.»
Para viabilizar uma candidatura de Lula da Silva, o dirigente do MST entende que a questão fundamental não é a de siglas ou das figuras que o vão apoiar. Embora essa dimensão também seja importante, Stedile disse que «nós, como movimento popular e como militantes, deveríamos nos preocupar, depois do fora Bolsonaro, que é a tarefa número zero, em aproveitar o 2022 para fazer uma grande campanha nacional que mobilize a população, mobilize a classe trabalhadora para discutir um novo projecto de país».
Sublinhou a importância de discutir que «reformas estruturais são necessárias». «É impossível colocar o Brasil nos trilhos sem controlar o capital financeiro, que é o que fica com toda a riqueza. Não é possível botar o Brasil nos trilhos sem controlar as empresas transnacionais. Não é possível botar o Brasil nos trilhos sem ter um imposto sobre as fortunas», declarou.
Afirmou que o futuro governo tem que redireccionar o «capital sobrante, produzido pelo povo brasileiro, para a indústria, para a agricultura, para a produção de alimentos», impedindo que, como acontece agora, vá parar aos paraísos fiscais e às acções especulativas.
«Essas reformas estruturais não dependerão da boa vontade do Lula, nem das alianças partidárias, dependerão da capacidade do povo entender a sua necessidade de lutar por elas», frisou.
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