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Uma mão que filma a outra (II)

A forma de filmar tornada possível pelas pequenas câmaras digitais permite eliminar a artificialidade enraizada nos modos de operar do cinema industrial e construir uma ética e uma estética cinematográficas que antes não conseguira alcançar. Em 10 sobre Dez Abbas Kiarostami faz a apologia daquelas.

Fotograma de «O sabor da cereja», de Abbas Kiarostami (1997). Fonte: «Taste of cherry», por Ümit Özmen, em aykirisinema.com.
Fotograma de «O sabor da cereja», de Abbas Kiarostami (1997). Fonte: «Taste of cherry», por Ümit Özmen, em aykirisinema.com.Créditos

Abbas Kiarostami, cineasta iraniano, foi também um pioneiro que entendeu, tal como os membros do Dogma 95 de quem se falou em artigo anterior, as potencialidades do novo material associado à pequena escala. Particularmente após o lançamento do seu filme 10 sobre Dez (10 on Ten), em 2004, Kiarostami tornou-se notado por fazer a sua apologia.

Naquele filme, composto por dez sequências1, o autor tomou como ponto de partida o seu filme anterior, Dez (Ten, 2002), para explicar os seus procedimentos habituais na realização de um filme e a sua conceção de cinema. Neste discurso, Kiarostami observou de que modo os novos equipamentos digitais, em particular as pequenas câmaras MiniDV que utilizara no filme de 2002, pareciam adaptar-se de forma mais fiel à sua escrita fílmica e permitir-lhe a construção de uma ética e de uma estética cinematográficas que antes não conseguira alcançar.

Foi ao volante do seu carro, percorrendo o trajeto físico do protagonista de O Sabor da Cereja (T'am e Guilass, 1997) – outro filme da sua autoria em que, pela primeira vez, utilizara o registo digital –, que o cineasta apresentou os seus argumentos. Kiarostami relatou que, após os registos do epílogo de O Sabor da Cereja, feitos em película, terem ficado irremediavelmente estragados no laboratório de revelação, lhe ocorreu utilizar, para concluir o filme, as imagens captadas com uma câmara MiniDV no intervalo das rodagens daquela sequência.

Assim, o episódio final do filme apareceu como um objeto estranho ao anterior registo2: uma imagem granulada e de aspeto cromático distinto – é bastante visível a transição da película de 35 mm para a cassete MiniDV – mostrava a equipa a planear a filmagem e o cineasta a dar instruções aos atores. Para o autor, essa câmara «naturalizada», quase invisível dada a sua pequena dimensão, apagava a artificialidade do dispositivo cinematográfico e a réplica igualmente simulada dos atores.

Kiarostami referiu que, nos seus últimos filmes, já tentara obliterar a evidência do artifício – por exemplo, deixando de gritar «ação!» para dar início à rodagem ou reduzindo a um número mínimo as equipas. Contudo, na sua opinião, apenas as pequenas novas câmaras haviam permitido concretizar esse objetivo (Kiarostami, 2004). «Como um deus omnipresente», afirmou, estas câmaras tinham a possibilidade de tudo registar sem se intrometer na realidade filmada (2004). Era agora possível, portanto, fazer filmes sem realizador.

Para Kiarostami, esta noção foi reforçada, em 2001, com outro filme da sua autoria, ABC África (ABC Africa). O cineasta e a sua equipa realizaram uma visita exploratória ao Uganda, destinada a reconhecer cenários e protagonistas de um futuro filme sobre as crianças desse país, órfãs em resultado da guerra civil e do vírus da SIDA. Durante essa visita, usaram duas câmaras digitais com intuito de tirar notas para preparar uma posterior filmagem. Regressados ao Irão, compreenderam que a edição dessas notas filmadas se convertera no próprio filme. De acordo com Kiarostami, as imagens captadas mostravam uma verdade que deixaria de estar presente um registo mais planeado e, como tal, encenado (Kiarostami, 2004).

Fotograma de «Dez», Abbas Kiarostami (2002). Fonte: «The women in Abbas Kiarostami’s cinema», Tina Hassannia, em tinahassannia.net.

Pelas razões apontadas, o cineasta concluiu, na sua exposição em 10 sobre Dez, que a forma de filmar tornada possível pelas pequenas câmaras digitais permitia eliminar a artificialidade enraizada nos modos de operar do cinema industrial. Este facto originava, na sua opinião, a oportunidade de dilatação do próprio conceito de cinema, assim, liberto dos seus lugares-comuns (Kiarostami, 2004). A nova maneira de filmar possibilitava um olhar livre, sem barreiras de produção, e uma interação espontânea com as personagens. Por isso, quando utilizou câmaras digitais no filme Dez, fê-lo de modo deliberado e consciente (2004).

Dez é composto, como o título indica, por dez segmentos. Os acontecimentos narrados ocorrem todos no mesmo cenário, o interior de um automóvel em movimento, que circula pelas ruas de Teerão. Colocadas no tablier do automóvel numa posição fixa, duas câmaras MiniDV acompanham, em registo de plano-contraplano, os diálogos das personagens. O enquadramento é fixo, imutável, não se adaptando aos atores, independentemente do espaço que estes ocupam em campo. Para Kiarostami, esta câmara é ausente, porque quase impercetível, não interfere no desempenho dos atores e dispensa a presença do realizador, fatores esses que contribuem para uma atmosfera íntima e para um maior realismo (2004). A atuação é feita sem guião e sem acessórios (Kiarostami deixou que os atores usassem as suas próprias roupas durante a filmagem, para tornar as personagens mais realistas). Todos os momentos podem ser registados porque os custos com consumíveis são diminutos (isso esbate a distinção entre os momentos de rodagem e os de pausa: a câmara filma em permanência). Este filme, concluiu o autor, teria sido «impossível de concretizar sem câmaras digitais» (Kiarostami 2004).

A expressão mais enfática do seu depuramento digital terá sido o filme FIVE Cinco Longos Planos Dedicados a Yasujiro Ozu (Five Dedicated to Ozu, 2003) para o qual, inspirado conhecido minimalismo do cineasta japonês a que se alude no título, elaborou cinco planos fixos de 15 minutos cada, sem cortes, procurando alcançar um olhar direto sobre o real. Como afirmou já em 2012, após a realização de Cópia Certificada (Copie Conforme, 2010) e Like Someone in Love (2013), filmes em que continuou a filmar em digital, mas com equipamentos profissionais muito distintos da câmaras MiniDV a que antes se referira, e após ter manifestado alguma desconfiança em relação a algumas utilizações do digital: «o registo digital é uma tipologia específica de filmagem em que estamos livres, totalmente livres de qualquer constrangimento» (Kiarostami, 2012).

  • 1. Cada sequência do filme correspondente a uma lição sobre um aspeto específico da prática cinematográfica, a saber (pela mesma ordem do filme): 1) introdução; 2) a câmara; 3) o tema; 4) o guião; 5) os cenários; 6) a música; 7) o ator; 8) os acessórios; 9) o realizador; 10) a última lição.
  • 2. Nas exibições comerciais do filme em vários países, Kiarostami optou por mostrar o filme sem o epílogo. Em Portugal, o filme foi exibido na sua versão integral.

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