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Pedro Peralta: «Há lições que podemos e devemos tirar da História»

No rescaldo da Guerra Civil Espanhola, uma mãe decide amamentar a sua filha, sabendo que seria a última vez. Pedro Peralta deteve-se neste complexo dilema e levou-o ao ecrã em Noite Perpétua.

CréditosNoite Perpétua / Terratreme

Na noite de 7 de Maio de 1939, em Castuera, na Estremadura espanhola, a professora primária republicana Matilde Morillo Sánchez foi levada de casa por guardas falangistas para «dar um passeio». Percebendo que iria ser executada, pediu para amamentar a sua filha antes de sair. 

O corpo de Matilde, com 31 anos e mãe de três filhas, nunca foi encontrado, sendo uma das milhares de vítimas da repressão franquista. O dilema que viveu naquela noite é retratado em Noite Perpétua, escrito e realizado por Pedro Peralta, com quem conversámos antes da estreia em solo nacional, esta terça-feira, 6 de Outubro, no festival internacional de cinema Curtas de Vila do Conde.

Era conhecida a sua expectativa relativamente à reacção do público, no Festival Internacional de San Sebastián, onde o filme se estreou, no passado dia 23 de Setembro. Como foi?

Nós estivemos presentes apenas numa das apresentações do filme. Nessa sessão a reacção foi óptima, acima das minhas expectativas francamente. Do ponto de vista da imprensa saíram alguns artigos e alguns comentários, todos eles bastante positivos e, de certa forma, acho que a sublinhar um lado, uma boa impressão por esta perspectiva que o filme propõe ter sido levada a cabo por um português. E por abordar o tema da Guerra Civil Espanhola, do pós-guerra e da repressão franquista na actualidade, e suponho que esta forma se prenda um bocadinho, por um lado, com a estética do filme e, por outro, com este olhar feminino. Ou seja, o que o filme conta e como conta, que seja do meu conhecimento não há nenhum filme semelhante, há muitos filmes que retratam este período, mas desta forma não. Juntando o público e ecos da imprensa e de pessoas mais especializadas, acho que foi um bocadinho isso que acabei por reter. 

Atendendo à temática do filme, que importância teve para si a estreia no País Basco?

Para mim houve várias dimensões de felicidade. A primeira, por ter sido San Sebastián, ou seja, isto tem mais a ver com um ponto de vista do próprio trabalho, por ser um festival muito relevante em termos internacionais, e por ter sido um ano muito especial onde não houve outros festivais, como Cannes e Locarno, na edição física.

E Veneza e San Sebastián, aqui na Europa, acabaram por ser os primeiros grandes festivais com esta dimensão de mercado. E portanto, ter o filme lá em competição foi excelente. Por outro lado, o facto de ser o País Basco, e este ser certamente um bastião de resistência, até simbólica, contra o regime franquista foi cereja no topo do bolo, por assim dizer. Claro que este filme tem uma dimensão política que não quero de todo dissociar. E se o filme puder promover algum tipo de diálogo neste âmbito é o meu intuito.

Trabalhou com não actores, como foi o processo de selecção?

Foi um processo híbrido. Houve um casting mais normal, no sentido em que entrámos em contacto com instituições, com meios de comunicação, divulgámos o casting, houve uma chamada. Mas da minha experiência nesta curta-metragem, como nas minhas curtas-metragens anteriores, eu nunca escolhi ninguém que viesse desse tipo de chamada, pelo contrário. Mas claro que converso com as pessoas. Até no caso da protagonista, foi alguém que eu conheci de uma forma completamente casual, na rua. Ou seja, tem mais a ver com promover encontros através de instituições, que pode ser a casa do povo, uma associação de músicos, de grupos de folclore. Tento, por espectros de semelhança, relacionar as personagens com características que as pessoas reais por ventura possam ter. Por exemplo, um dos requisitos para os guardas falangistas era ter cumprido serviço militar, era de certa forma ter um trabalho que tivesse esta dimensão de relação com o público, portanto, bombeiros, polícias, militares, inclusivamente fomos falar com a Guardia Civil.

Sabe-se que o ponto de partida deste filme foi uma notícia publicada em 2010 sobre a noite em que levam Matilde e o branqueamento da repressão franquista. Como se desenrolou o trabalho a partir daí?

Houve dois momentos que levaram eventualmente à feitura deste filme. Um primeiro momento foi de facto em 2010, após essa notícia, e eu pensava que iria fazer este filme como tese de mestrado. Mas quando comecei a compreender o quão complicado seria o processo de preparação, quão oneroso seria todo o processo de produção, rapidamente concluí que não conseguiria fazê-lo no âmbito da tese de mestrado. E, portanto, parei, fui fazer outro filme, e então em 2017, depois já de o projecto ter sido financiado, retomei alguns contactos, nomeadamente com a Associação para a Recuperação da Memória Histórica da Extremadura (ARHMEX), onde me deram contactos e sugeriram locais a visitar, pessoas com quem falar e aqui foi uma abordagem também um bocadinho multidisciplinar, ou seja, desde ler livros, ir a museus e no fim do dia falar com pessoas. Às vezes de uma forma mais informal, ou seja, pessoas que encontrava na rua ou habitantes das aldeias, outras vezes um bocadinho mais institucional, via câmaras municipais ou outras associações. No processo de casting nós trabalhámos desde a Filmoteca da Estremadura, há também uma associação que promove a amamentação, isto porque eu procurava uma mãe com uma filha e a questão da amamentação ser real era muito importante. 

A ARHMEX foi muito importante no desenvolvimento deste filme, sobretudo numa parte mais inicial da pesquisa. Eles têm um campo de acção que é multidisciplinar, convocam pessoas de diferentes especialidades, e também estão presentes na associação, desde pessoas de Antropologia, História e até de Direito. A impressão que retive sempre do contacto com eles é que era uma tarefa muito complicada que estava a ser levada a cabo. 

Porquê? 

É um fenómeno se calhar complexo para explicar numa entrevista mas, sucintamente, por uma estratégia de instituições oficiais, das câmaras municipais e do próprio Estado, a um certo nível, que de uma forma dissimulada promovem uma política de não acção, de silenciamento. Ou seja, são tudo estratégias altamente sofisticadas e dissimuladas de apagar a memória histórica e de, activamente e de uma forma disruptiva, destruir qualquer movimento que possa ser feito a abrir esse diálogo com a memória histórica ou até levar a cabo trabalho de um ponto de vista mais sério. Por exemplo, o campo de concentração que houve em Castuera, todas as centenas de milhares de pessoas que foram perseguidas e assassinadas naquilo que o Noite Perpétua retrata, que são os passeios. Nem há números oficiais, ou seja, existem imensas valas comuns que continuam a não ser investigadas.

E depois cada região, no fundo, acho que está a um tempo diferente. A Galiza é uma coisa, o País Basco é outra, a Catalunha é outra. Enfim, na Estremadura e na Galiza, que foram regiões que desde cedo, estrategicamente, eram muito importantes para o regime franquista, foram logo conquistadas, no início da guerra eram controladas pela falange. 

Acho que hoje em dia também se sente, de uma forma mais activa, desde o planeamento urbanístico, por exemplo em Badajoz, onde houve a famosa e trágica matança [14 de Agosto de 1936], em que cerca de um terço da população foi assassinada, o que é bizarro. Ainda hoje em dia, oficialmente, há muita gente que nega, numa espécie de fake-news. Porque na altura só houve duas investigações jornalísticas, uma delas levada a cabo por um português [Mário Neves], curiosamente, e há pessoas que negam, que dizem que aquilo são provas falsas, etc. E depois também, sei lá, desde a Praça de Touros, em que mudaram a fachada toda, enfim.

Há uma reconstituição.

Isso mesmo. Também do ponto de vista da educação, na escola a coisa é abordada muito ao de leve. Porquê? Acho que existem muitas razões, a primeira delas é, e se calhar comparado aqui com Portugal, sendo processos históricos absolutamente distintos, em Portugal a transição da ditadura para a democracia actual foi feita com uma Revolução, em Espanha a coisa não se passou da mesma forma, foi uma transição muito suave e muitas das pessoas que estavam ligadas ao antigo regime, de uma forma ou de outra continuaram ligadas a uma certa elite, seja económica, financeira, institucional e… com consequências.  Nunca houve uma restituição, e isso eu compreendi claramente no longo processo de casting em que fui a algumas aldeias na região da Estremadura onde de facto tinham acontecido muitos destes episódios, e senti uma divisão muito clara. Uma vez acho que não fui agredido por acaso. Insurgiram-se contra mim: «O que é que estás aqui a fazer, és um português, isso não interessa, a História está enterrada.» Fiz o casting há dois anos, foi quando o Vox começou a emergir e eu acho que no fundo acaba por ser sintomático também deste processo histórico e destas histórias mal resolvidas. Claro que é tudo muito mais complicado do que isto, eu tenho essa consciência, mas acho que existe uma clara ligação entre estes processos históricos e o fascismo e os regimes autoritários e ditatoriais, e estes novos partidos populistas e de matriz essencialmente neofascista, nalgumas das suas propostas. 

Mark Twain dizia que a história nunca se repete, mas por vezes rima. Como olha para o recrudescimento da extrema-direita?

Acho que existem lições que podemos e devemos tirar da História, mas aquilo que se repete, e acho que vem dessa frase que citou, são os padrões da natureza humana. Aquilo que muda, de certa forma, é o molde como as ideias são aplicadas e essencialmente estamos a falar de ideologias e estamos a falar de ideias que habitam corpos, habitam existências, e que depois têm consequências reais e com acções reais. Isto também para dizer que é impossível dissociar o actual momento histórico com a emergência de novos poderes profundamente disruptivos, e neste caso estou a falar das redes, da internet e de todas as plataformas que alteraram a forma como a gente interage, acede à informação e processa essa mesma informação.

«Existe uma relação entre o capital e as notícias. As notícias têm que dar lucro e nada dá mais lucro do que notícias falsas ou desinformação»

Há um lado fantástico, sobretudo do ponto de vista da comodidade, que este novo mundo digital proporciona. Por outro lado, são ferramentas que acho que são super bem feitas, estes algoritmos são super bem feitos e permitem formas de, não só captar informação sobre as pessoas, como também manipular a opinião individual e colectiva.

Depois, a interacção com os media tradicionais, que também estão em diálogo e interacção com estas novas plataformas, e que de certa forma exponencia ideias e movimentos que de outra forma não teriam espaço, não teriam habitat. Acho que estamos a falar de uma questão, e fazendo um paralelo com a ecologia, com toda a problemática ecológica, da mesma forma que estamos a assistir à perda de biodiversidade, estamos também a assistir [a uma perda] em termos culturais e a ficar cada vez mais aprisionados em grupos de comunicação. 

Acho que estes partidos mais populistas e de direita estão a dar voz a emoções e sentimentos que já existiam em muitas pessoas e os meios de comunicação tradicionais têm muita culpa. Ou seja, existe uma relação entre o capital e as notícias. As notícias têm que dar lucro e nada dá mais lucro do que notícias falsas ou desinformação, ou notícias chocantes que causam ira, medo, raiva, e isso é válido, seja no Facebook e no Twitter, seja nas notícias. 

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