(para a Ana, para a Joana e para o João)
Não sei se não fui acometido por um intenso sentimento de nostalgia nos últimos meses. Depois dos anos do isolamento, regressaram todos à vida, mas deixou-se muito para trás. Talvez por isso relembre os dias em que ainda nos comprometíamos uns com os outros, em que nos permitíamos relações difíceis e nos superávamos, em que estávamos juntos e construíamos a vida coletiva com uma dinâmica complexa, mas concreta, real.
O acometimento nostálgico cresceu logo no início de abril, quando o mundo que conheci, da forma e do jeito que aprendi a viver, se diluiu no éter, sem tempo para a despedida. É sempre duro enterrar um amigo. Porque é nos amigos que nos vemos como num espelho. São eles que projetam aquilo que de melhor há em nós e não há conforto maior do que esse – a certeza de que continuamos a ser. Este sofrimento egoísta leva-nos sempre para a memória de um tempo que julgamos feliz, do qual esquecemos todas as mágoas gravadas no granito das paredes da cidade onde nos encontrámos.
Regresso, então, a esse Porto do qual não me canso de falar, com uma insistência tal que se torna entediante para quem já mal me ouve falar de outra coisa qualquer. Sempre a nostalgia do Porto, o granito, a melancolia... Admito o tédio. Mas tenho sempre receio que, se me esquecer, nada se mantenha no lugar, a memória acabe por evaporar e nos esqueçamos todos uns dos outros. Não é uma nostalgia saudosista, mas uma resistência que se viu agora um pouco mais fragilizada.
«Regresso, então, a esse Porto do qual não me canso de falar, com uma insistência tal que se torna entediante para quem já mal me ouve falar de outra coisa qualquer. Sempre a nostalgia do Porto, o granito, a melancolia... Admito o tédio. Mas tenho sempre receio que, se me esquecer, nada se mantenha no lugar, a memória acabe por evaporar e nos esqueçamos todos uns dos outros.»
No final dos anos 1990, entrei pela primeira vez no Pinguim Café para ver Joaquim Castro Caldas dizer poesia. Nessa época, a cultura do Porto fazia as ruas transbordar de gente, pela noite. Havia poesia em bares, música ao vivo e as habituais tertúlias informais do Piolho ao Pipas da Ribeira. O Pinguim ficava entre estes dois lugares de encontro, discreto e sereno. Depois do choque de ver o poeta deitado a dizer a «Tabacaria», regressaria poucos anos mais tarde, mais adulto, ao lugar que fez de mim o que sou hoje.
O balcão estendia-se pela primeira sala do bar e atrás dele um homem alto, com uma bela barba (de diferentes tonalidades de castanho e já a ficar ligeiramente grisalha) e uns olhos brilhantes, recebia-nos com um caloroso bom dia. A voz, de maturidade rara, seduzia-nos para a barra e ali ficávamos fascinados com aquela criatura simples, sem outra característica especial que não fosse aquele acolhimento cheio de calor e paz. Ao longo de três décadas, o Paulo Pires foi o maior exemplo daquilo que é um barman: elegante, discreto, comerciante arguto e o amigo de circunstância.
No Pinguim, durante esse tempo, o Porto conhecia um lugar de cultura insubstituível. Quando o Paulo pegou no bar, aberto um par de anos antes, percebeu que aquele não era um negócio como todos os outros. Ali já moravam as sessões de poesia mais antigas do país, conduzidas pelo génio do Joaquim; ali já pousavam os marginais das artes e do bairro, todos juntos no balcão à volta do Paulo, clamando pela sua atenção e pelo seu conselho; ali já se preenchia a substância dos dias que o poder local era incapaz de preencher. Mas o Porto resistia em espaços como o Pinguim, porque à invicta eram leais os seus filhos e o Paulo era um filho do Porto, era um filho da velocidade do Porto, das suas relações íntimas (bom dia, freguesa) cerzidas nos interstícios do quotidiano.
«No Pinguim, durante esse tempo, o Porto conhecia um lugar de cultura insubstituível. Quando o Paulo pegou no bar, aberto um par de anos antes, percebeu que aquele não era um negócio como todos os outros. Ali já moravam as sessões de poesia mais antigas do país, conduzidas pelo génio do Joaquim»
Foi o Paulo Pires que nos apresentou a todos, que criou as condições para que, durante 30 anos, clientes antigos e novos se conhecessem, se admirassem e fizessem, tantas vezes, coisas juntos. Ele via tudo, sabia cada particularidade nossa, cada característica, sem nos julgar um único momento. «Olha lá, tu é que podias…» – era assim que o Paulo começava uma ideia nova, a envolver, a jogar as peças, a iniciar o jogo da vida coletiva. Com ele aprendi aquilo que Vinicius nos tentou explicar «nunca vi amizade nascer em leitaria». Porque nos bares a amizade é pulverizada pela cultura comum e, no Pinguim (e na Gesto), Paulo Pires criou uma dinâmica não elitizada da cultura do Porto, em que todos podiam participar. Quando eu tocava naquela cave, todos tocavam, todos falavam e isso enchia-o de alegria. Mais tarde, cá em cima ao balcão, quando ficávamos só os dois, ele dizia «estás a ver como eu sabia que isto resultava». E às vezes não resultava, mas ele também não estava ali para ser rico, desde que os miúdos estivessem bem e a cidade se mantivesse para eles.
O papel de Paulo Pires na cultura do Porto não tem qualquer comparação. Porque para se fazer a cultura no Porto é preciso ser-se Porto; é preciso gostar da rua, gostar de toda a gente; é preciso ser humilde e ao mesmo tempo ter de assumir convictamente que nenhuma cidade se compara a esta. Porque é incomparável precisamente pela sua cultura de base, intensa, trágica, espalhafatosa e discreta, sofisticada sem obedecer aos cânones do cosmopolitismo fútil. Popular.
Escrevo furiosamente estas últimas linhas com a mágoa da memória e regresso ao último livro do Joaquim1, onde com nostalgia relembrou a infância e a inocência que a vida lhe foi tirando. Nessa ternura (rara) do Joaquim Castro Caldas encontro tantas vezes a cave do Pinguim e fico nesta angústia de nela desaparecer. Limpo as lágrimas, penso nos amigos com carinho e volto a olhar para a frente, deixando as lamúrias para trás, como numa canção do Tom Waits. São horas de fechar.
- 1. Mágoa das Pedras, Deriva Edirores, 2008.
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