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O país acordou ontem com uma «resposta aberta à cultura» assinada por António Costa, em que se anuncia um reforço de 2,2 milhões de Euros no montante disponibilizado para o financiamento às artes, no quadro dos «apoios sustentados».

É cedo para perceber em que medida este reforço vai permitir atenuar os efeitos devastadores sobre a criação artística nacional para que apontam os resultados provisórios que foram sendo anunciados nas últimas semanas. Mas é muito claro que se trata de uma medida tardia e insuficiente. Chega demasiado tarde porque os concursos decorreram num quadro de miserabilismo orçamental (reiteradamente justificado pelo Governo com a insuficiência de meios) que obviamente condicionou quer a ambição das candidaturas, quer a avaliação que os júris delas fizeram. É insuficiente porque, mesmo após os três «reforços» sucessivamente anunciados pelo Governo (à medida da mobilização popular que não pára de crescer), o valor global aproxima-se do montante disponibilizado para o mesmo efeito há 10 anos, sem ter em conta nem o aumento do custo de vida nem (o que é mais importante) a evolução da dinâmica cultural e artística do país neste período e as expectativas dos cidadãos, legitimamente criadas.

Enquanto membro de uma das estruturas artísticas que foi a concurso, procurando assegurar as condições para continuar a prestar serviço público nesta área, não posso deixar de olhar para esta «resposta aberta» como mais um momento de um processo lamentável e particularmente humilhante, não apenas para quem trabalha nas artes, mas para a generalidade da população e até para os órgãos de soberania que estão a conduzi-lo.

Importa lembrar que, anunciando desde o início a intenção de reformar o modelo de apoio às artes, o actual Governo adiou para a segunda metade do mandato a sua aplicação, justificando a demora com uma suposta «discussão pública» que mais não foi do que um expediente para adiar o inevitável: a questão orçamental, por todos reconhecida como uma emergência.

Nessa discussão, em que o sector aceitou participar, foram ignorados (e em alguns casos ostensivamente contrariados) os principais contributos da sociedade civil. O montante global do financiamento, a aberração de continuar a colocar no mesmo concurso estruturas de criação e de programação e a necessidade de acautelar a qualificação e o reconhecimento público dos membros do júri (postos em causa pelo novo modelo de recrutamento, feito a partir de uma «bolsa de especialistas» em que os interessados se inscrevem) são apenas três dos muitos e graves exemplos de desrespeito do Governo pelas opiniões que afirma ter «ouvido».

A insistência – agora também do Primeiro-Ministro – em afirmar que este modelo «não foi definido unilateralmente» e «resulta de um processo que teve a participação da comunidade artística de todo o país» é portanto ridícula e soa a desculpa de mau pagador perante o comprovado descalabro da sua «invenção».

É igualmente humilhante todo o triste espectáculo à volta do orçamento e desta política de reforços «aos bocadinhos». Porque demonstram que a dotação inicial estava completamente desfasada da realidade e não foi pensada em função das necessidades do país; porque o Governo se fartou de justificar que não havia dinheiro, alimentando – directa ou indirectamente – a narrativa do «não há pão». Afinal havia, afinal há. Sempre o soubemos, mas o Governo obrigou-nos a vir gritá-lo para a rua, transformando em esmola o que é um direito, não dos artistas, mas da generalidade da população.

Esta inaceitável forma de fazer política produz efeitos muitíssimo perversos, à cabeça dos quais está a quebra de confiança entre governantes e governados e – no actual contexto – entre governantes e «parceiros» parlamentares. Esta humilhante forma de tratar a relação com os artistas com quem formalmente se contratualiza a prestação de um serviço público reproduz e amplifica a ideia da subsidio-dependência, numa altura em que era preciso erradicá-la de vez. Mais do que isso, ela comprova que há efectivamente quem seja subsidio-dependente. Mas não são os artistas: são os sucessivos governos (entre os quais, pelos vistos, o actual), que não conseguem conceber outra maneira de tratar do assunto que não seja a mera distribuição de dinheiro, à medida dos incómodos com que vão sendo confrontados.

Diz o Primeiro-Ministro na sua «resposta aberta», que está disponível para ponderar melhorias futuras e uma «eventual correcção» do modelo que, comprovadamente, não serve. É um sinal positivo que tem de ser seguido de passos concretos: o arranque de uma verdadeira discussão pública, que poderá começar, por exemplo, pela publicação das respostas integrais que os agentes culturais deram ao inquérito promovido pela DGArtes (e não apenas a criteriosa e instrumental selecção de respostas que foi difundida na altura); a garantia de um reforço consistente, já em 2019, da globalidade do orçamento para a Cultura (que inclui mas é muito mais amplo do que os «apoios às artes»), tendo como valor mínimo 1% do Orçamento Geral do Estado.

Sem estes passos concretos, e por mais simpática que seja a «admiração pessoal e institucional» do Primeiro-Ministro pelo nosso «valioso trabalho», continuaremos apenas humilhados e mal pagos. 

Mas a dizê-lo – nas ruas e nos palcos e onde mais for preciso.

Pedro Rodrigues
A Escola da Noite – Grupo de Teatro de Coimbra