A história do entretenimento é também uma história das relações de poder, onde a sobrevivência da criação e produção artística concorre com a necessidade de o detentor do poder ser entretido ou entreter as massas.
Já muito se ensaiou sobre a importância do entretenimento na relação entre os detentores do poder e as massas, mas a relação dos artistas com o poder, ao longo do tempo, também nos pode ajudar a caracterizar o modelo económico, social e cultural dominante.
No modelo atual, a televisão desempenha um papel essencial e através dela define-se muito o território onde a arte e a cultura têm ou não lugar. Saltando aqui uma velha discussão sobre arte e entretenimento, sobre fronteiras e limites entre ambos, importa olhar para o entretenimento como o objeto preferencial da mercadorização da cultura de massas e a televisão como o seu veículo controlado.
«importa olhar para o entretenimento como o objeto preferencial da mercadorização da cultura de massas e a televisão como o seu veículo controlado»
Foi neste cenário, e numa velha tradição do «mundo do espetáculo», que nasceram os concursos de talentos, nos quais aspirantes a artistas ou a figuras públicas tentam a sua sorte, cantando ou tocando para um júri que decidirá o seu futuro. Se para muitos adultos esta é a última oportunidade, para muitos jovens pode ser o ponto de partida. Ainda assim, contam-se pelos dedos das mãos os que conseguiram impulsionar uma carreira artística sólida, independente e singular. Uma parte significativa destes concorrentes acaba refém da televisão ou da sempre periférica indústria discográfica portuguesa e das suas imposições e chantagens. Mas no meio de todas estas circunstâncias nasce uma artista invulgar que se tornou uma de nós, uma figura acarinhada por todos, não só pela substância das suas canções, mas também pela sua genuinidade, resistência e desprendimento.
Em 1994, uma adolescente Sara Tavares chegava a nossas casas para interpretar uma canção de Whitney Houston, num dos mais populares concursos de talentos da televisão portuguesa, Chuva de Estrelas – um programa do canal privado SIC, em que os concorrentes tinham de imitar o melhor possível o intérprete de uma canção. Aos 15 anos, Sara Tavares tornava-se numa celebridade e um alvo imediato dos marchands do entretenimento, que em poucos meses a conduziram para a vitória no Festival da Canção.
«Não demorou muito até Sara Tavares começar a revelar a sua natureza artística, a sua curiosidade e o caminho que estava disposta a fazer [...] deu de imediato a indicação de que não estava interessada em servir a canção ligeira portuguesa»
Ali estava uma apetecível galinha dos ovos de ouro – uma adolescente negra da periferia, com uma voz admirável e o sonho de ser cantora. À partida, Sara Tavares seria um produto fácil de trabalhar, garantindo um bom retorno e representando o papel de mascote lusotropical para deslumbrar o mundo branco da canção ligeira. O poder estabelecido esquece-se, porém, que nem todos somos permeáveis ao deslumbramento e à subserviência. Não demorou muito até Sara Tavares começar a revelar a sua natureza artística, a sua curiosidade e o caminho que estava disposta a fazer. Ao iniciar o seu percurso criativo com os Shout, no universo dos espirituais negros e do gospel, que à época começavam a penetrar na cultura portuguesa através das incursões de outros artistas pop à procura de prestígio e reconhecimento artístico no jazz, na soul ou no blues, Sara Tavares deu de imediato a indicação de que não estava interessada em servir a canção ligeira portuguesa. A sua voz era eco de algo supranacional, como se andasse à procura de uma identidade que nem a própria sabia muito bem qual era.
É nesse percurso de busca da identidade artística (e também pessoal, claro) que Sara Tavares chega até ao seu primeiro disco, Mi Ma Bô (1999), um álbum onde a cada canção sentimos a sua vocação artística a querer libertar-se do lugar-comum da música popular portuguesa, a querer romper por outros caminhos. O disco, com produção de Lokua Kanza, reforça o que outros artistas, como os Cool Hipnoise ou General D, tinham já introduzido em Portugal, ainda que com clichés da produção musical pop de outras geografias e com uma influência significativa daquilo que se convencionou como «world music» – um lugar familiar para Kanza.
Insisto ainda nessa ideia de que Mi Ma Bô é um disco fundamental para compreender o processo de descoberta de uma artista, a sua inquietação latente, por entre sons e vozes, amarrada a diversos estilos (predeterminados), sem que nenhum seja aquele a que possa chamar verdadeiramente seu, e nessa procura libertar-se lenta e intuitivamente do lugar-comum da canção ligeira portuguesa ou da soul americana.
Demorou, por isso, algum tempo até Sara Tavares encontrar uma direção para o caminho que estava a percorrer. Só seis anos após o lançamento de Mi Ma Bô voltaria a gravar. Em 2005, numa produção sua, Sara Tavares deixa a multinacional Sony-BMG e junta-se à World Connection (EMI) – uma editora holandesa vocacionada para a «world music».
«O caminho de Sara Tavares é, por isso, o da disputa do espaço social e cultural, da igualdade no acesso à cidade e na rejeição de o fazer com as regras dos outros. Fê-lo, ainda assim, com uma inesgotável alegria, lembrando outro amigo que nos deixou também nas últimas semanas – o poeta Manuel Gusmão.»
Em Balancé (2005), surge-nos uma espécie de fénix: uma artista renascida, libertada das condicionantes comerciais, a navegar na sua própria geografia consciente da sua raiz cabo-verdiana e do património que uma mulher nascida e criada na periferia de um país europeu periférico como Portugal traz na bagagem. Este é, então, um disco que resulta da resistência e do horizonte de uma artista, no qual a voz já não procura apenas um maior alcance em escala, mas uma profundidade sensível, um caminho para ternura, para o amor e para a felicidade; é um disco onde se afirma a cantar em crioulo; um disco cheio de urbanidade, que anuncia uma cidade nova onde aqueles que haviam sido escondidos reclamam agora um lugar, nos seus próprios termos, no esteiro da sua cultura.
O caminho de Sara Tavares é, por isso, o da disputa do espaço social e cultural, da igualdade no acesso à cidade e na rejeição de o fazer com as regras dos outros. Fê-lo, ainda assim, com uma inesgotável alegria, lembrando outro amigo que nos deixou também nas últimas semanas – o poeta Manuel Gusmão. Porque é «contra todas as evidências» que a alegria nasce nos territórios mais hostis e é com ela que descobrimos novos horizontes, que nos encontramos e partilhamos o comum. É por tudo isto que Sara Tavares é um ente querido, uma de nós que parte demasiado cedo deixando a sensação que não a abraçámos o suficiente, que não fomos suficientes no agradecimento pela sua imensa coragem e alegria. Mas o legado que nos deixa obriga-nos a continuar a transformar o mundo com o otimismo da vontade, sorrindo.
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