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|Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)

A bazuca atira ao lado da Cultura (I)

A cultura, que deveria ser elemento central na formação da consciência das identidades nacionais e das soberanias, dialogando de igual para igual com a cultura de todos os povos do mundo, tornou-se numa vulgar mercadoria.

As meninas (1957), de Pablo Picasso. Óleo sobre tela, 129 x 161 cm. Ref.ª MPB 70.463, Museu Pablo Picasso, Barcelona. Doação do autor ao museu, em 1968
As meninas (1957), de Pablo Picasso. Óleo sobre tela, 129 x 161 cm. Ref.ª MPB 70.463, Museu Pablo Picasso, Barcelona. Doação do autor ao museu, em 1968Créditos / Pablo Picasso/Museu Picasso

No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) a Cultura é silenciada, o que naturalmente provocou reacções imediatas em duas cartas endereçadas ao primeiro-ministro e à ministra da Cultura; uma, inicialmente subscrita por meia centena de personalidades e entidades artísticas implicadas na produção cultural, que continua aberta a recepcionar subscritores – rapidamente ultrapassou o meio milhar –, outra das Associações dos Arqueólogos Portugueses (AAP), dos Conservadores-Restauradores de Portugal (ARP), dos Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação (BAD), dos Conselhos Internacional de Museus (ICOM Portugal) e Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS Portugal), em que se manifesta «estupefacção» pela «insustentável ausência» da Cultura no PRR e se reclama a resolução de tão «grave lacuna».

A resposta de António Costa a esses desapontamentos foi célere, lembrando que o PRR estava em consulta pública e que «tem por objectivo a recuperação económica e social, mediante reformas e investimentos exequíveis no curto prazo, mas de efeito estruturante nas áreas que são elegíveis: resiliência e dupla transição climática e digital», pondo o acento tónico no «curtíssimo prazo de execução até 2026; só apoia reformas e investimentos que acelerem a dupla transição climática e digital ou reforcem a resiliência (…) apesar desta forte temática, a cultura não está excluída de acesso aos fundos do PPR (…) investimentos na eficiência energética ou na infraestrutura digital de equipamentos culturais ou na capacitação digital dos agentes culturais são objectivos óbvios» e dava como exemplo que «entre as Agendas/Alianças Mobilizadoras de Investimento e Inovação, a produção cultural e as indústrias criativas constam como áreas estratégicas que integram um programa de investimento em criatividade e inovação, com a dotação de 558 milhões de euros (…) mas também no campo das Qualificações e Competências, o programa Impulso Jovem STEAM (140 milhões de euros) pretende promover iniciativas com vista a aumentar a formação superior de jovens nas áreas das Ciências, Tecnologia, Engenharia, Matemática e Artes».

«as políticas culturais que os estados deviam promover subordinam-se às normas do mercado, que não conhece outra lógica que não seja a do que é vendável, o seu único critério de excelência, que reduz o juízo crítico a uma espécie de crónica de promoção publicitária das artes e dos artistas sem colocar questões de ordem estética, poética ou até relacionadas com as histórias de arte»

António Costa, de bazuca em punho, aponta para onde Bruxelas lhe manda apontar mas bem podia procurar apontar para um alvo que não existe, o de uma política cultural estruturante que não se consegue enxergar por não existir, depois de décadas de desinvestimento na cultura enquanto serviço público, atirando-a para a fogueira unidimensional do mercado. Uma deriva vulgar do capitalismo neoliberal, comum aos partidos que se alternam no poder, em que o mercado de bens culturais de consumo se sobrepõe à intervenção estatal, mesmo e quando o Estado continua a subsidiar algumas dessas actividades, sempre abdicando de promover políticas culturais e de democratização da cultura, em que a política não deve colonizar a cultura, fazendo desta um fim da outra, mas sem criar uma fractura magmática entre as duas. A mantra é a de uma neutralidade cultural, como se a cultura não tivesse nada a dizer sobre a política, nem a política à cultura. O que resulta são uns sucedâneos culturais, os eventos culturais que navegam nas ondas das modas geracionais e multiculturais, com a consequente universalidade de uma uniformidade cultural em que os produtores são subalternizados pelos consumidores.

A cultura, que deveria assegurar o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural, ser elemento central na formação da consciência das identidades nacionais e das soberanias, dialogando de igual para igual com a cultura de todos os povos do mundo, tornou-se numa vulgar mercadoria, sujeita à lógica mercantilista que o capitalismo neoliberal procura impor a todas as esferas da actividade social e humana, pelo que as políticas culturais que os estados deviam promover subordinam-se às normas do mercado, que não conhece outra lógica que não seja a do que é vendável, o seu único critério de excelência, que reduz o juízo crítico a uma espécie de crónica de promoção publicitária das artes e dos artistas sem colocar questões de ordem estética, poética ou até relacionadas com as histórias de arte. Essa acaba por ser a questão central subjacente nas preocupações e nas frustrações expressas nas duas cartas, que sentem estar a ser perdida a oportunidade de dar um futuro e um novo rumo à cultura depois de uma longa paragem que deveria ter servido para pensar e reflectir de como alterar um universo que tem estado centrado numa produção cultural predominante consumível em que o entretenimento, pronto a usar e a esquecer, é dominante drapeado com as cores da moda de garantida obsolescência impressas nas máscaras do carnavalesco desfile de auras artísticas das Indústrias Culturais e Criativas (ICC), em que as actividades e produções criativas com um fundo e uma preocupação estética e artística são cada vez mais raras, são cada vez mais excepções no panorama geral da oferta cultural, bem representadas pelos agentes, artistas e personalidades culturais subscritoras da carta à ministra da Cultura e ao primeiro-ministro.

«A cultura tornou-se numa vasta pantomina em que se justifica o desinvestimento público ao se argumentar que o seu peso económico leveda quando se liberta da tutela do Estado»

O predomínio das ICC é o estado de sítio da cultura pós-moderna sob o comando do de um baixo clero que se passeia, das suas veredas às autoestradas, calçado com os sapatos de pó de diamante de Andy Warhol, para que não subsistam dúvidas sobre a falta de profundidade, para a superficialidade mais literal do fetichismo que assalta as artes e a cultura convertendo os seus objectos e produções em mercadorias de um universo cosmopolita, pluralista e relativista, de uma permissividade em que se afunda tanto o processo criativo como o da recepção crítica onde, sublinhe-se mais uma vez e a traço grosso, as excepções são cada vez mais raras para melhor confirmarem a regra de uma cada vez maior submissão às leis do mercado bem expressa numa, por enquanto, falhada tentativa na União Europeia de fazer depender as actividades artísticas e culturais dos critérios e ditames da Organização Mundial do Comércio.

A cultura tornou-se numa vasta pantomina em que se justifica o desinvestimento público ao se argumentar que o seu peso económico leveda quando se liberta da tutela do Estado, o que, em Portugal é, directa e indirectamente, plasmado nos vários estudos realizados por Augusto Mateus & Associados, Sociedade de Consultores Lda, para o Ministério da Cultura, que depois os vende a retalho a autarquias e Comissões de Coordenação Regional, em que na matriz swot do Plano Regional de Lisboa 2014-20201, se lêem coisas extraordinárias nos Pontos Fortes, «oportunidades de novos empreendedores criativos ainda desconhecidos»; nos Pontos Fracos «falta de uma cultura de mercado dos agentes»; nas Oportunidades,«desemprego como oportunidade»; «economia de “royalties”»; «aproveitamento de elementos históricos e culturais para a criação de marcas (Fado, Pessoa, Oceanos…)» e nas Ameaças «pouca sistematização do conhecimento sobre a realidade das ICC em Portugal, inclusive grande confusão sobre o conceito e categorias, importação de modelos (sobretudo aplicação da definição de Adorno) obsoletos e desajustados da realidade portuguesa» – perdoa-lhes, Adorno, porque é deles o reino dos céus.

«esse saco onde os valores imateriais da cultura, a sua capacidade de inovação e criação, de transmissão, difusão e debate de ideias, o seu peso simbólico e estruturante na memória colectiva de um povo, são sacrificados nos altares da mercantilização, para triunfo do mercador do arroz de Brecht que não sabe o que é o arroz, nunca viu o arroz, do arroz só conhece o preço»

Critérios mercantilistas bem expressos nos alhos e bugalhos que se misturam no elencar das ICC pela UE ou quando se lê, na última Conta Satélite da Cultura em Portugal, que o sector com maior impacto é o dos Livros e Publicações, não só pela dimensão como pelo número de empregos que gera. Números grossos que ocultam que a produção de livros é bem menor do que a das publicações e que nas publicações, em Portugal, as duas de carácter cultural, o semanário JL e a revista Ler, além de serem uma quase excrescência no conjunto das publicações, têm tiragens desprezíveis, 10 mil e 7 mil respectivamente, se comparadas com Maria, 167 mil, ou os três jornais diários desportivos, A Bola 120 mil, Record 70 mil, O Jogo, 30 mil. Por essa amostra se vê a grande mistificação que são as Contas Satélites da Cultura, num país conhecido pela iliteracia e em que o sector editorial e livreiro se debate com gravíssimos problemas de sobrevivência. Os outros sectores de actividade seguem o mesmo caminho e critérios. No Audiovisual e Multimédia equivalem-se videojogos e filmes publicitários aos filmes documentais e de ficção. Sintomaticamente as áreas de actividade com menor expressão são o Património, as Bibliotecas, Arquivos e Artes de Espectáculo, ainda que nas Artes de Espectáculo coexistam Gil Vicente e Tony Carreira, as óperas no São Carlos e os Festivais no Sudoeste.

Não pode causar algum espanto que a Publicidade apareça como relevante actividade cultural nesse saco onde os valores imateriais da cultura, a sua capacidade de inovação e criação, de transmissão, difusão e debate de ideias, o seu peso simbólico e estruturante na memória colectiva de um povo, são sacrificados nos altares da mercantilização, para triunfo do mercador do arroz de Brecht que não sabe o que é o arroz, nunca viu o arroz, do arroz só conhece o preço.

(Conclui no próximo artigo)

  • 1. Plano de Acção Regional de Lisboa 2014-2020; Grupo de Trabalho/Crescimento Inteligente; Meios Criativos e Indústrias Culturais; Swot e Ficha Contributos; CCDRLVT, Comissão Coordenadora da Região de Lisboa e Vale do Tejo

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