Amor Fati, expressão latina que significa «amor ao destino» ou «aceitação do real», foi o título escolhido pela realizadora Cláudia Varejão para a sua última longa-metragem. A pedra de toque foi a curiosidade pela fisionomia, que mantém desde criança. «O que aconteceu depois foi uma grande surpresa», confessa ao AbrilAbril.
Atendendo ao período nebuloso e castrador da liberdade de afectos em que nos encontramos, a realizadora assume que a escolha do título para um filme onde o amor e a intimidade suportam o guião, «parece que foi brincar com o fogo, de aceitar o destino».
O projecto começou com a ideia de fotografia, em torno de outro, de Thomas Struth, denominado «Family Portraits». E a fotografia volta a ser cartão de visita de um dos futuros projectos de Cláudia Varejão, mas já lá vamos.
Existencialista e altamente filosófico, Amor Fati aborda relações entre pares e como, através da convivência e da proximidade, começam a ter comportamentos e gestos semelhantes. Um cenário extensível aos tutores de animais, que «começam a ter comportamentos e gestos semelhantes aos animais de companhia».
«Dizem que os rostos daqueles que se amam tendem a ficar parecidos. As pessoas atraem-se e repelem como se fossem elementos químicos. Mas como reconhecer a pessoa e o caminho certo?», ouvimos da voz do jovem Ringo, num dos momentos do filme, depois de bater este excerto na sua máquina de braile.
No processo de construção deste «atlas de histórias e emoções», Cláudia Varejão percorreu o País, do continente às ilhas, ao longo de dois anos, lançou castings nas redes sociais e na rua, encontrou centenas de pares e seleccionou os «invisíveis da sociedade», aqueles «com menos representatividade nos media em geral», desde a comunidade queer, passando pela cigana, duas idosas de Pitões das Júnias (Montalegre), uma família arménia, entre vários outros retratos em que o amor cimenta as relações, a partir de um compromisso entre todas as partes.
No caso da família cigana, «queria perceber como as mulheres viviam», sendo que «toda a ideia de liberdade de escolha é um cenário afastado», admite. O filme propõe-se acompanhar a intimidade destas mulheres, nomeadamente de Antónia e Samira (mãe e filha), e de como o contexto opressor em que se movem ajuda a fortalecer a relação de ambas.
Mas há um momento que não aparece no filme. Durante o casamento de uma «menina muito nova», as mulheres juntam-se para ver se a virgindade ainda está lá. Apesar de ter sido convidada para filmar o momento, Cláudia Varejão recusou.
A estreia mundial de Amor Fati aconteceu na edição online do festival suíço Visions du Réel, em Abril. Como tal, os primeiros ecos do público chegaram à realizadora na ante-estreia, esta quarta-feira, no DocLisboa. O elenco, que até então não se conhecia, participou neste 'fecho'. «Os filmes só se fecham quando são devolvidos às pessoas», diz, convicta.
«Foi muito comovente», realça, «talvez porque o filme nos faz recuar a um passado muito recente, onde era possível abraçarmo-nos, beijarmo-nos, houve pessoas a chorar. Este período está a deixar-nos a todos muito sensíveis».
Solidária com a luta travada recentemente a propósito da nova lei do cinema, Cláudia Varejão critica a falta de investimento no sector e assume que Amor Fati é um acto de resistência seu, mas também da produtora Terratreme e dos próprios cinemas, que se mantêm abertos.
«A cultura não tem um retorno imediato e a nossa sociedade perde muito com a falta de investimento» nesta área, critica Cláudia Varejão, a quem o insuficiente apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) obriga a procurar financiamento noutras paragens para a realização dos seus projectos.
E há novos na calha. Lobo e Cão é uma longa-metragem, «mais virada para a ficção», em que a realizadora está a trabalhar na Ilha de São Miguel, nos Açores. A que se junta Kora, uma curta que equivale a uma descoberta de Cláudia: os jovens também andam com fotografias dos seus amigos ou familiares na carteira. Um hábito que «a modernidade não deixou cair por terra».
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