O 46.º vice-presidente dos EUA e ex-secretário de Defesa, formado em Ciência Política, tornou-se um dos principais teóricos da doutrina de poder presidencial e uma das caras da Guerra do Golfo, com a Operação Tempestade no Deserto, e da Invasão do Iraque, além de ter sido promotor da tortura como método de interrogatório por parte da CIA, assim como da vigilância de cidadãos.
A vida de Cheney foi marcada pela ambição pelo poder e a perversão das ditas instituições democráticas. Além da sua actividade política, a sua passagem pelo sector privado foi, de certa forma, reveladora dos seus objectivos, tendo sido CEO da Halliburton Company, uma das maiores empresas de serviços petrolíferos do mundo, já depois da sua passagem pela secretaria da Defesa e da Guerra do Golfo, beneficiando de um contrato de 1,2 mil milhões de dólares para a reconstruir a indústria petrolífera no sul do Iraque; membro do Conselho de Administração da Bradley Fighting Vehicles, empresa ligada ao sector de defesa responsável pela fabricação de veículos blindados; e presidente da The Bradley Woods & Co., consultora financeira e de investimentos focada em ajudar empresas a contornar questões regulatórias e governamentais.
O norte-americano era, assim, um dos rostos da promiscuidade entre o poder económico e o político, porém foi muito mais do que isso, com um pesado legado que fala por si, somando-se morte, destruição e a violação de direitos humanos.
Operação Tempestade no Deserto
Enquanto secretário da Defesa do presidente George H. W. Bush, a Operação Tempestade no Deserto foi uma «resposta» à invasão do Kuwait pelo Iraque. Cheney foi fundamental na construção de uma aliança internacional para a promoção da guerra e, desta forma, conseguiu a autorização para os EUA utilizarem bases militares de países do Médio Oriente, como a Arábia Saudita.
O seu papel, no entanto, não foi só logístico e, juntamente com o General Colin Powell, estabeleceu uma cooperação civil-militar, deixando para o militar as operações no terreno e, para si o papel o no Pentágono, com a avaliação política e a aprovação final da operação, servindo como elo de ligação crucial com a Casa Branca.
O trabalho de Cheney acaba por ser pioneiro na comunicação política moderna com a criação de narrativas assentes na pós-verdade. Através de métodos qualitativos, criava espaços de estudo como focus groups para testar e afinar a mensagem política mediante objectivos específicos.
O então secretário da Defesa contratou a consultora The Wirthlin Group e através dela e dos tais focus groups, descobriu que o eleitorado americano era profundamente céptico em relação à guerra em curso, dada a memória colectiva profundamente negativa em relação à guerra no Vietname. Foi aqui que Cheney foi profundamente inovador e, através dos dados recolhidos nos estudos de opinião realizados, começou a fazer ajustes na mensagem da Casa Branca para justificar a guerra em curso. Em vez de falar em «ataque» ou «invasão», a linguagem oficial centrou-se em «libertar o Kuwait» e restaurar a «soberania». Foi também por esta via que o ex-governante norte-americano entendeu que personalizar a guerra com um «inimigo mau» (Saddam) era mais eficaz do que falar de um país abstrato (Iraque).
O papel de Dick Cheney nesta guerra vai além da questão da articulação diplomática e política e teve consequências claras: a de 20 000 a 50 000 soldados iraquianos e de quase 3500 civis. Além disso, o Iraque foi alvo de diversas sanções económicas, viu as suas infra-estruturas destruídas, assim como a pilhagem e saque dos seus recursos foi acelerada.
Invasão do Iraque
Se a Guerra do Golfo em 1991 foi apenas um primeiro acto, a invasão do Iraque foi o segundo e derradeiro. Neste momento, em 2003, Dick Cheney ascendera a vice-presidente de George W. Bush tinha com ele um poder de influência nunca antes visto, muitas vezes ofuscando figuras como o secretário de Estado Colin Powell.
Com as tácticas desenvolvidas na Operação Tempestade no Deserto, Cheney criou a narrativa que justificou a invasão do Iraque: desenvolveu-se a tese da suposta existência de armas de destruição massiva no país; aproveitou o ataque às torres gémeas para criar a ideia de uma ligação operacional entre Saddam Hussein e a Al-Qaeda; e defendeu a doutrina da «guerra preventiva», argumentando que os EUA não podiam esperar que a ameaça se materializasse.
Dick Cheney foi, assim, o «arquitecto-chefe» da invasão. Pressionou os serviços de inteligência a elaborarem relatórios que corroborassem os seus objectivos políticos, influenciou directamente a actuação de Bush e afastou opositores dentro e fora da Administração norte-americana.
Embora não haja prova de que Dick Cheney tenha enriquecido directamente através de corrupção, ele beneficiou economicamente de forma massiva e indirecta. A sua fortuna pessoal, intimamente ligada ao valor das acções da Halliburton, viu um aumento explosivo precisamente quando a empresa que ele liderou recebia contratos milionários sem concorrência para a guerra que ele, como vice-presidente, foi fundamental em arquitectar.
A tese do poder pleno do Executivo
Se o trabalho de Dick Cheney, do ponto de vista da comunicação, foi pioneiro, o mesmo se pode dizer da forma ardilosa com que encontrou uma justificação política e jurídica para fazer tudo o que fez.
Enquanto chefe de gabinete da Casa Branca sob o presidente Gerald Ford, Cheney acreditava que, após o escândalo de Watergate e a Guerra do Vietname, o Congresso havia usurpado os poderes do Executivo, enfraquecendo a autoridade presidencial. Neste sentido, fez uma leitura da Constituição dos EUA e retirou uma interpretação própria, à luz do processo de construção do documento.
Importa relembrar que os chamados «Founding Fathers» não eram necessariamente democratas liberais modernos. A Constituição dos EUA foi, assim, fruto de um pensamento anti-monárquico que resulta do pensamento republicanismo, do liberalismo clássico e do racionalismo iluminista. Foram estas doutrinas que marcaram o pensamento independentista americano e moldaram a Convenção da Filadélfia em 1787, espaço que criou as condições para a elaboração da Constituição Americana tal como a conhecemos.
Neste documento, o Artigo II da Constituição, que estabelece o Poder Executivo, é fruto de tal pensamento anti-monárquico, mas não necessariamente de um desenho democrático liberal no sentido moderno. Assim foi escrito: «O Poder Executivo será conferido a um Presidente dos Estados Unidos da América».
Com esta frase, «Founding Fathers» queriam um executivo forte o suficiente para governar e, admirando a eficiência do executivo monárquico, queriam colocá-lo em um quadro republicano, afastando por outro lado a igualdade entre os Homens, mantendo o poder nas elites.
Tendo em conta a história americana, Cheney fez uma leitura literal e expansiva do Artigo II da Constituição e desenvolveu a tese do «Poder Executivo Pleno». Com esta visão, Cheney defendia que o presidente dos EUA e a sua Administração têm controlo total e sem limitações do Congresso; podem interpretar leis conforme julgarem necessário para proteger a segurança nacional; podem agir sem autorização legislativa em áreas como guerra, vigilância e interrogatórios; e têm imunidade contra interferência judicial em decisões ligadas à segurança e à política externa.
Neste sentido, a visão desenvolvida por Cheney afirmava que o presidente detém todo o poder executivo, de forma unitária, que o Congresso deve cooperar e não restringir a acção governativa, e não deve haver qualquer tipo de fiscalização, levando a uma concentração absoluta de poderes.
Usando argumentos constitucionais e histórico, como o apoio de juristas como David Addington, John Yoo e Antonin Scalia, Cheney tornou-se o verdadeiro presidente sombra graças à sua influência sobre Bush. Violando o equilíbrio de poderes e subvertendo o controlo democrático e judicial, a Administração Bush, após o 11 de Setembro passou a recorrer à vigilância eletrónica em massa sem mandado judicial através da NSA; criou um programa de tortura da CIA; criou tribunais militares especiais; e expandiram-se os signing statements, instrumentos pelos quais o presidente declarava que certas leis aprovadas pelo Congresso não seriam aplicadas se violassem, segundo ele, seus poderes constitucionais.
Dick Cheney, o homem que deu o maior contributo para os EUA serem a força opressora tal como a conhecemos hoje, faleceu esta terça-feita aos 84 anos.
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