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Israel e a guerra às drogas na Síria

A queda de Assad e os recentes ataques de Israel à Síria envolvem também um complexo conflito relacionado com a produção de anfetaminas no sul do país.

Um elemento da Hayat Tahrir al-Sham (Al-Qaeda na Síria; liderada pelo actual presidente Jolani) numa fábrica de anfetaminas Captagon. 
CréditosAubin Eymard

As tensões intensificaram-se no sul da Síria quando aviões de guerra israelitas bombardearam o Ministério da Defesa em Damasco, algumas áreas em redor do palácio presidencial e aldeias em As-Suwayda no dia 16 de Julho de 2025, matando pelo menos 250 sírios nesses ataques aéreos. As autoridades de transição na Síria, lideradas pelo ex-chefe da Al-Qaeda Ahmed al-Sharaa, condenaram os ataques, que Israel justificou como necessários para deter os combates entre as forças sírias, as Quwwat al-Badu (ou Forças Beduínas), organizadas às pressas, e os drusos Harakat Rijal al-Karama (Homens da Dignidade).

«Sem o apoio aéreo dos EUA ou de Israel, os vários exércitos rebeldes – sendo os mais entusiasmados entre eles as forças da Al-Qaeda – não teriam sido capazes de prevalecer; isto garantiu ao Exército Árabe Sírio a possibilidade de os manter afastados.»

Em Dezembro de 2024, os Homens da Dignidade, as Forças Sheikh al-Karama e a Liwa al-Jabal (Brigada da Montanha) uniram forças na área de As-Suwayda para criar o grupo Ghurfat ‘Amaliyyat al-Janub (Operações do Sul) para defender a região das incursões israelitas e do novo governo sírio. No entanto, o grupo dividiu-se no início deste ano, o que enfraqueceu a sua capacidade de conter a incursão dos israelitas além da ocupação anterior das Montes Golã, ocupadas desde 1967. Desde então, Israel expandiu o seu controlo nas Montes Golã em direcção à área de As-Suwayda e tem sido acusado pelas forças locais de interferência em disputas locais para justificar novas invasões militares.

Desde 2012, a autoridade central do Estado sírio tem sido enfraquecida, num movimento que se estende desde a borda dos Montes Golã, passando pela cidade de Daraa, até as aldeias de As-Suwayda, formando um cinturão ao longo da fronteira sul da Síria e ao longo da fronteira com a Jordânia. As forças militares sírias permaneceram nesta zona, mas a sua legitimidade atingiu um nível historicamente baixo, causando o surgimento de várias forças militares nesse vácuo. Em 2013, a comunidade drusa da região, liderada pelo xeique Wahid al-Bal’ous, formou o Harakat Rijal al-Karama (Homens da Dignidade), ao passo que uma aliança de vários combatentes liderada por Murhij Hussein al-Jarmani (também conhecido como Abu Ghaith) formou o Liwa al-Jabal (Brigada da Montanha) no ano seguinte. Esses grupos foram criados para defender a comunidade drusa dos ataques do grupo Jabhat al-Nusra (Frente da Vitória), ligado à Al-Qaeda, que se tinha começado a deslocar para o sul a partir das montanhas de Qalamoun e parecia estar a receber ajuda da inteligência e das forças militares israelitas. O declínio do papel dos militares sírios nesta área levou ao aumento do papel político e securitário tanto dos Homens da Dignidade como da Brigada da Montanha, que combateram as forças da Al-Qaeda, os ataques posteriores do ISIS e os ataques dos israelitas.

A rede de fentanil no sul da Síria

Em 2012, quando me encontrei pela primeira vez com militares sírios ao longo da estrada junto às montanhas Qalamoun, já era evidente que a sua moral oscilava entre a extrema confiança e a exaustão completa, devido à natureza pírrica da guerra. Sem o apoio aéreo dos EUA ou de Israel, os vários exércitos rebeldes – sendo os mais entusiasmados entre eles as forças da Al-Qaeda – não teriam sido capazes de prevalecer; isto garantiu ao Exército Árabe Sírio a possibilidade de os manter afastados. No entanto, cada vez que o exército sírio avançava, tinha de o fazer com bombardeamentos e uma violência enormes, que atingiam alvos civis, reduzindo o seu sentimento de superioridade moral e destruindo as bases da economia síria. Uma economia em colapso e um aparato estatal em lento declínio deterioraram a moral do exército sírio. Em 2013, todos os lados do conflito mantinham o seu espírito de luta não por política ou ideologia, mas pelo influxo de grandes quantidades de anfetamina, conhecida na Síria pelos seus nomes comerciais, Captagon e Tramadol, ou, como os combatentes a chamavam, as pílulas brancas da morte.

«Esses homens, ao lado de Marei al-Ramthan e Raji Falhout, aproveitaram-se do colapso do sistema estatal sírio, estabeleceram laços com autoridades da Jordânia e libanesas por via de subornos e começaram a dominar o comércio de produção e venda de anfetaminas em toda a região (em Israel inclusive, maioritariamente para uso recreativo).»

Perto da fronteira com a Jordânia, na região de As-Suwayda, eu estava na zona onde a produção em grande escala desses comprimidos começou. Ex-militares que administravam essas fábricas entraram em negócios com organizações criminosas internacionais de tráfico de drogas. Há uma década, circulavam rumores de que o brigadeiro-general Wafiq Nasser teria desempenhado um papel importante na criação da rede de produção e distribuição de drogas através de uma série de pequenas aldeias na região de As-Suwayda. Nasser trabalhou com Abu Yassin Ahmad Jaafar e Jamil al-Balaas para construir o sistema de fazendas das aldeias de Busra al-Sham a al-Qurayya, a cerca de vinte quilômetros da Jordânia. Esses homens, ao lado de Marei al-Ramthan e Raji Falhout, aproveitaram-se do colapso do sistema estatal sírio, estabeleceram laços com autoridades da Jordânia e libanesas por via de subornos e começaram a dominar o comércio de produção e venda de anfetaminas em toda a região (em Israel inclusive, maioritariamente para uso recreativo).

As tensões aumentaram entre as unidades de autodefesa (principalmente os Homens da Dignidade drusos) e as gangues de tráfico de drogas, na medida em que os primeiros tentavam impedir os segundos de vender anfetaminas às pessoas da sua própria área. Em 2015, um carro-bomba em As-Suwayda matou Wahid al-Bal’ous, líder dos Homens da Dignidade. Circularam rumores de que ele teria sido morto pelo governo sírio e, posteriormente, pela Al-Qaeda (após a prisão de um homem chamado Wafi Abu Trabi). Mas, nos bastidores, era claro que al-Bal’ous era uma vítima da guerra contra as drogas. Três anos após o assassinato, os Homens da Dignidade capturaram Abu Yassin Ahmad Jaafar, que lhes confessou, diante de câmaras, que estava envolvido no assassinato de al-Bal’ous e que era um dos principais chefes do tráfico de droga da região. Posteriormente, foi executado pelos Homens da Dignidade.

Na mesma confissão em vídeo de Jaafar, ele menciona que Marei al-Ramthan tinha organizado um grupo de jovens beduínos para contrabandear as drogas pela fronteira com a Jordânia. Al-Ramthan, que era pastor antes de entrar no negócio das drogas em 2006, conseguiu absorver uma produção significativamente maior que se iniciou após 2012, tornando-se o maior transportador de drogas do Levante. Os tribunais da Jordânia condenaram-no à prisão várias vezes, mas nunca acabou preso.

A guerra às drogas

«Aproveitando-se das lutas pelas fábricas de drogas em Julho de 2025, os israelitas atacaram vários alvos, incluindo os prédios do governo em Damasco, mas não as fazendas de drogas, mais uma vez alegando que o fizeram para proteger os drusos.»

O lento colapso do Estado sírio levou à ascensão de autoridades locais como senhores independentes do tráfico de drogas. Em 2018, o major-general Kifah al-Mulhim substituiu Nasser. No início, a nomeação de Al-Mulhim levantava esperanças de que as redes de drogas fossem alvo de maiores pressões. Em seguida, desenrolou-se uma série de acontecimento. Em 2021, o Estado prendeu Raji Falhout, mas libertou-o poucas horas depois. Em Julho de 2022, funcionários do Estado, em conjunto com os Homens da Dignidade, invadiram a fazenda de Falhout e encontraram um laboratório de Captagon. Mais tarde nesse ano, em Dezembro, o governo prendeu al-Ramthan, mas acabou por o libertar. Ainda em 2022, o exército sírio, em conjunto com a milícia Liwa al-Jabal (Brigada da Montanha), combateu os grupos armados de Falhout perto da fronteira com a Jordânia e eliminou vários deles. De Janeiro a Março de 2024, a força aérea jordana atacou muitas dessas fábricas de Captagon na zona rural de As-Suwayda. Esses ataques mataram civis, o que levou o movimento Homens da Dignidade a pedir à Jordânia que suspendesse os ataques. O exército sírio, em público, permaneceu em silêncio.

Ou al-Mulhim fazia parte da vasta rede de drogas que ia de As-Suwayda a Damasco e outros lugares, ou ele não tinha autoridade para realizar uma limpeza adequada na região. Nos últimos dias do governo de Assad, al-Mulhim foi chamado de volta a Bagdá como director do Departamento de Segurança Nacional da Síria. Os Estados Unidos impuseram sanções pessoais a al-Mulhim devido ao seu papel no Estado sírio. Após a queda de Assad, essas sanções pessoais foram revogadas.

A queda do governo de Assad em Sezembro de 2024 ocorreu por várias razões: a guerra israelita contra o Líbano (que enfraqueceu o Hezbollah), os ataques aéreos contra posições militares sírias e uma blitzkrieg coordenada das antigas forças da Al-Qaeda da cidade de Idlib, no norte, até Damasco. Israel, aproveitando-se da situação, avançou das alturas dos Montes Golã, ocupados ilegalmente, para a região próxima a As-Suwayda. Os israelitas argumentaram que se tratava de uma nova barreira de segurança não apenas para Israel, mas também para a comunidade minoritária drusa. Mas isso era apenas uma desculpa. Aproveitando-se das lutas pelas fábricas de drogas em Julho de 2025, os israelitas atacaram vários alvos, incluindo os prédios do governo em Damasco, mas não as fazendas de drogas, mais uma vez alegando que o fizeram para proteger os drusos.

Mas vários líderes drusos, incluindo o xeique Sami Abi al-Muna, disseram que não precisavam da protecção israelita e que o genocídio de Israel contra os palestinos invalidava as suas alegações de humanitarismo. Na verdade, os ataques israelitas visavam pressionar o ex-chefe da Al-Qaeda Ahmed al-Sharaa, agora presidente interino da Síria (que tinha sanções dos EUA contra si, oficialmente suspensas em 30 de Junho de 2025). Al-Sharaa ainda não fez o que Israel espera que a Síria faça, que é reconhecer Israel. Ele expulsou líderes da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e do Hamas e prendeu lideranças da Jihad Islâmica, mas isso não é suficiente. Israel continuará a aproveitar-se de qualquer pretexto para atacar a Síria e conseguir o que quer. Não são as drogas nem os drusos que preocupam Israel; o que preocupa é que al-Sharaa não tenha derramado o histórico pró-palestina da Síria aos pés do regime israelense.

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