«Sem casa, não posso trabalhar». Esta frase foi, há umas semanas, ouvida numa televisão da boca de uma trabalhadora da região de Lisboa, mãe solteira com dois filhos menores, queixando-se, já com pertences na rua, de ter sido despejada da casa onde vivia por, apesar de continuar empregada, ter deixado de conseguir pagar o aumento do valor da renda, alterado pelo senhorio.
Voltou-nos à memória nestes últimos dias de sábado e domingo de Junho (28 e 29), em que, em várias cidades do país, foram realizadas manifestações pelo direito à habitação. Um dos lemas dessas manifestações (expresso nos cartazes que desfilaram e também palavra de ordem dos manifestantes) foi o de: «A Habitação é um direito, sem ela nada feito».
«A habitação é um direito» é, como se sabe, uma formulação sustentada, com suporte constitucional: «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.» (Artº 65º da CRP).
O problema está em que a realidade demonstra que, como outros direitos (e também constitucionais, como é o caso dos associados ao trabalho), o direito à habitação carece de concretização com bom entendimento dessa garantia constitucional. Isto é, como direito social (de «todos»).
Tal como o trabalho não é uma mercadoria (porque se consubstancia nas pessoas que trabalham), também a habitação não é uma mera mercadoria. Consubstancia-se nas pessoas que habitam (como habitantes e não meros «passantes»),com as implicações humanas e sociais daí decorrentes, como sejam as condições concretas de vida e as relações e memórias colectivas que a partir da habitação se constroem, contribuindo para (re)construir (a) sociedade. Logo, não pode ser o mercado a determinante principal (e muito menos a exclusiva) do entendimento, decisão e acção política e económica dos problemas de habitação.
«Sem habitação nada feito». É esta parte final do referido lema das manifestações que mais pertinente torna convocar para aqui a citação que inicia este texto.
«Há que reconhecer que a reflexão e decisão política sobre o(s) problema(s) de habitação exige a ponderação de muitos outros factores, desde logo os que, em concreto (económicos, financeiros, técnicos) e directamente, incidem na suficiência da acessibilidade a uma habitação digna para todas as pessoas. Mas é preciso ter em conta o quanto nela são importantes as questões do trabalho, de entre elas, sobretudo, os salários.»
A situação desta trabalhadora é, no essencial, idêntica à de muitas (sempre demasiadas) outras pessoas. Mas o seu lamento como tal, como trabalhadora, faz relevar algo que, não obstante se verifique no quotidiano da generalidade das pessoas, não só passa muito despercebido a elas próprias como é muito desprezado pelos decisores sociais, económicos e políticos: a centralidade social do trabalho.
O trabalho não é dissociável (de algum modo determinando-os e sendo por eles determinado) de qualquer domínio social e político (Economia, Saúde, Educação, Justiça ...), sendo isso consequência (se bem que também causa) de que o trabalho é central, factor e resultado, das condições de vida das pessoas e do funcionamento da sociedade. Naturalmente que, tanto elas são humana e socialmente importantes, também das condições de habitação.
Há que reconhecer que a reflexão e decisão política sobre o(s) problema(s) de habitação exige a ponderação de muitos outros factores, desde logo os que, em concreto (económicos, financeiros, técnicos) e directamente, incidem na suficiência da acessibilidade a uma habitação digna para todas as pessoas. Mas é preciso ter em conta o quanto nela são importantes as questões do trabalho, de entre elas, sobretudo, os salários.
É certo que a relação entre habitação e trabalho não se resume aos salários. Para o bem e para o mal, cada vez mais (e não está aqui apenas em causa a generalização do teletrabalho), «o trabalho tem um braço longo», «mexe» em todos os domínios e condições sociais. Mesmo quanto a pessoas com remunerações razoáveis ou até altas e morando em casas com boas condições de habitabilidade, pode haver uma relação perversa entre trabalho e «casa», na acepção da habitação como lar e, por este, quanto ao que se repercutem aí, na vida pessoal e familiar dos trabalhadores, as condições de trabalho de cada um, por exemplo, a sobre-intensificação (em ritmo e duração) e a penosidade do trabalho. Muita investigação e publicação há disponível sobre a conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar.
Mas, sendo como são baixos os salários e com o custo de vida em geral a aumentar, cresce o risco de, cedo ou tarde, as pessoas não conseguirem suportar o desmesurado aumento das rendas (nos últimos sete anos, enquanto os salários aumentaram em média 36%, as rendas de casa aumentaram 80%), quanto mais das prestações de um eventual empréstimo bancário para adquirirem casa própria (cujo valor médio de mercado, nos mesmos sete anos, aumentou 97%, praticamente o dobro).
Sim, os salários baixos são uma importante causa de que, pelo menos nas grandes cidades, haja cada vez mais pessoas que, apesar de empregadas, em virtude de (já) não conseguirem pagar a renda de uma casa com mínimas condições de habitabilidade, moram em casas sobrelotadas, sem privacidade, sem o mínimo de conforto, mesmo de segurança, de dignidade. Ou então sujeitarem-se a morar muito longe do local de trabalho (o que não é irrelevante nas causas de muitos acidentes de trabalho in itinere). Para já não referir os que, mesmo empregados, comem e dormem na rua, em situação de sem-abrigo.
Sem salários dignos, «nada feito».
Depois, porque não têm uma habitação minimamente digna (que lhes possibilite as humanas necessidades pessoais e familiares de descanso, de sustento, de higiene, enfim, de dignidade), é muito difícil, senão mesmo a breve prazo impossível, a qualquer pessoa corresponder às crescentes exigências físicas, mentais e sociais do trabalho.
«Sem habitação, nada feito».
É que, para o bem e para o mal, levamos o trabalho para casa (muitas vezes, mesmo literalmente) e «levamos» a casa para o trabalho.
Urge que politicamente se transforme de viciosa em virtuosa esta relação recíproca entre condições de habitação e condições de trabalho, em razão da qual sem trabalho digno não se pode ter casa e «sem casa não se pode trabalhar» dignamente.
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