|João Fraga de Oliveira

Condições de trabalho e de habitação: uma relação recíproca

Urge que politicamente se transforme de viciosa em virtuosa esta relação recíproca entre condições de habitação e condições de trabalho, em razão da qual sem trabalho digno não se pode ter casa e «sem casa não se pode trabalhar» dignamente.

CréditosManuel Fernando Araújo / Agência Lusa

«Sem casa, não posso trabalhar». Esta frase foi, há umas semanas, ouvida numa televisão da boca de uma trabalhadora da região de Lisboa, mãe solteira com dois filhos menores, queixando-se, já com pertences na rua, de ter sido despejada da casa onde vivia por, apesar de continuar empregada, ter deixado de conseguir pagar o aumento do valor da renda, alterado pelo senhorio.

Voltou-nos à memória nestes últimos dias de sábado e domingo de Junho (28 e 29), em que, em várias cidades do país, foram realizadas manifestações pelo direito à habitação. Um dos lemas dessas manifestações (expresso nos cartazes que desfilaram e também palavra de ordem dos manifestantes) foi o de: «A Habitação é um direito, sem ela nada feito».

«A habitação é um direito» é, como se sabe, uma formulação sustentada, com suporte constitucional: «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.» (Artº 65º da CRP).

O problema está em que a realidade demonstra que, como outros direitos (e também constitucionais, como é o caso dos associados ao trabalho), o direito à habitação carece de concretização com bom entendimento dessa garantia constitucional. Isto é, como direito social (de «todos»). 

Tal como o trabalho não é uma mercadoria (porque se consubstancia nas pessoas que trabalham), também a habitação não é uma mera mercadoria. Consubstancia-se nas pessoas que habitam (como habitantes e não meros «passantes»),com as implicações humanas e sociais daí decorrentes, como sejam as condições concretas de vida e as relações e memórias colectivas que a partir da habitação se constroem, contribuindo para (re)construir (a) sociedade. Logo, não pode ser o mercado a determinante principal (e muito menos a exclusiva) do entendimento, decisão e acção política e económica dos problemas de habitação.

«Sem habitação nada feito». É esta parte final do referido lema das manifestações que mais pertinente torna convocar para aqui a citação que inicia este texto.

«Há que reconhecer que a reflexão e decisão política sobre o(s) problema(s) de habitação exige a ponderação de muitos outros factores, desde logo os que, em concreto (económicos, financeiros, técnicos) e directamente, incidem na suficiência da acessibilidade a uma habitação digna para todas as pessoas. Mas é preciso ter em conta o quanto nela são importantes as questões do trabalho, de entre elas, sobretudo, os salários.»

 

A situação desta trabalhadora é, no essencial, idêntica à de muitas (sempre demasiadas) outras pessoas. Mas o seu lamento como tal, como trabalhadora, faz relevar algo que, não obstante se verifique no quotidiano da generalidade das pessoas, não só passa muito despercebido a elas próprias como é muito desprezado pelos decisores sociais, económicos e políticos: a centralidade social do trabalho.

O trabalho não é dissociável (de algum modo determinando-os e sendo por eles determinado) de qualquer domínio social e político (Economia, Saúde, Educação, Justiça ...), sendo isso consequência (se bem que também causa) de que o trabalho é central, factor e resultado, das condições de vida das pessoas e do funcionamento da sociedade. Naturalmente que, tanto elas são humana e socialmente importantes, também das condições de habitação.

Há que reconhecer que a reflexão e decisão política sobre o(s) problema(s) de habitação exige a ponderação de muitos outros factores, desde logo os que, em concreto (económicos, financeiros, técnicos) e directamente, incidem na suficiência da acessibilidade a uma habitação digna para todas as pessoas. Mas é preciso ter em conta o quanto nela são importantes as questões do trabalho, de entre elas, sobretudo, os salários.

É certo que a relação entre habitação e trabalho não se resume aos salários. Para o bem e para o mal, cada vez mais (e não está aqui apenas em causa a generalização do teletrabalho), «o trabalho tem um braço longo», «mexe» em todos os domínios e condições sociais. Mesmo quanto a pessoas com remunerações razoáveis ou até altas e morando em casas com boas condições de habitabilidade, pode haver uma relação perversa entre trabalho e «casa», na acepção da habitação como lar e, por este, quanto ao que se repercutem aí, na vida pessoal e familiar dos trabalhadores, as condições de trabalho de cada um, por exemplo, a sobre-intensificação (em ritmo e duração) e a penosidade do trabalho. Muita investigação e publicação há disponível sobre a conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar.

Mas, sendo como são baixos os salários e com o custo de vida em geral a aumentar, cresce o risco de, cedo ou tarde, as pessoas  não conseguirem suportar o desmesurado aumento das rendas (nos últimos sete anos, enquanto os salários aumentaram em média 36%, as rendas de casa aumentaram 80%), quanto mais das prestações de um eventual empréstimo bancário para adquirirem casa própria (cujo valor médio de mercado, nos mesmos sete anos, aumentou 97%, praticamente o dobro).

Sim, os salários baixos são uma importante causa de que, pelo menos nas grandes cidades, haja cada vez mais pessoas que, apesar de empregadas, em virtude de (já) não conseguirem pagar a renda de uma casa com mínimas condições de habitabilidade, moram em casas sobrelotadas, sem privacidade, sem o mínimo de conforto, mesmo de segurança, de dignidade. Ou então sujeitarem-se a morar muito longe do local de trabalho (o que não é irrelevante nas causas de muitos acidentes de trabalho in itinere). Para já não referir os que, mesmo empregados, comem e dormem na rua, em situação de sem-abrigo.

Sem salários dignos, «nada feito».

Depois, porque não têm uma habitação minimamente digna (que lhes possibilite as humanas necessidades pessoais e familiares de descanso, de sustento, de higiene, enfim, de dignidade), é muito difícil, senão mesmo a breve prazo impossível, a qualquer pessoa corresponder às crescentes exigências físicas, mentais e sociais do trabalho. 

«Sem habitação, nada feito».

É que, para o bem e para o mal, levamos o trabalho para casa (muitas vezes, mesmo literalmente) e «levamos» a casa para o trabalho.

Urge que politicamente se transforme de viciosa em virtuosa esta relação recíproca entre condições de habitação e condições de trabalho, em razão da qual sem trabalho digno não se pode ter casa e «sem casa não se pode trabalhar» dignamente.

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