|Inês Pereira

Se as crianças são o futuro, não lhes escondam o passado

A tentativa de apagamento da História, alimento para a criação de falsas narrativas, é uma das lutas a travar e uma das matérias em jogo, nas eleições do próximo domingo, para que ninguém esconda dos mais novos o chão que pisam.

CréditosNuno Veiga / Agência Lusa

Sexto ano, disciplina de História e Geografia de Portugal, que os miúdos abreviam para «HGP». O 25 de Abril já passou, mas não no estudo. Numa escola de Lisboa ainda se testam os conhecimentos sobre a passagem da Primeira República para o período negro do golpe militar, seguido da ditadura de Salazar, que o manual grafa como «ditadura». 

«Quando o poder fica concentrado nas mãos de uma pessoa (ou grupo) diz-se que essa pessoa é um "ditador" e que a sua maneira de governar é uma "ditadura".», lê-se no livro. Pelo contrário, Estado Novo sempre surge sem aspas. Mas nós conhecemos o propósito das aspas. Raramente se aceitam os epítetos dos regimes (palavra hoje usada para caracterizar governos desalinhados com a ordem imperialista), mas, no nosso país, o «Estado Novo» que Salazar (tal como Getúlio Vargas, no Brasil) adoptou continua a ser a expressão usada acriticamente para falar dos 41 anos em que o povo sobreviveu agrilhoado pelo fascismo e a sua censura, tortura, negação da liberdade de dizer e fazer oposição a quem aumentou as reservas de ouro do Banco de Portugal com as exportações de volfrâmio e de produtos agrícolas, na Segunda Guerra Mundial, como refere o manual, apesar de omitir a miséria a que o povo ficou votado, designadamente as crianças, descalças, desnutridas, analfabetas. 

Outro aspecto em que, se orientados apenas pelo livro, os miúdos ficam arredados da História, passa pela resistência à ditadura. No capítulo dos «movimentos da oposição» lê-se que «a oposição ao Estado Novo organizou-se em segredo e clandestinamente», sem dizer exactamente quem é que realmente abdicou da identidade para mergulhar na clandestinidade, sem dizer que apenas o PCP o fez. Refere (e bem) movimentos de oposição, como o Movimento de Unidade Democrático (MUD) e outros que integraram pensadores, cantores, artistas e intelectuais, como Lopes Graça e Zeca Afonso, mas passa ao lado de lutas incortornáveis e que abalaram o regime, como a Revolta dos vidreiros da Marinha Grande, boicotada pela fome, à qual Salazar respondeu com a abertura do Campo da Morte Lenta (Tarrafal), de onde vários já não saíram com vida. 

A tentativa de apagamento da História, alimento para a criação de falsas narrativas, é uma das lutas a travar e também uma das matérias em jogo, nas eleições do próximo domingo, para que ninguém esconda dos mais novos o chão que pisam.

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