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Eu, Daniel Blake (2016): Um Marceneiro Exige os Seus Direitos (I)

A obra de Loach é uma poderosa contribuição para elevar a consciência sobre as relações sociais de classe no sistema capitalista.

Fotograma do filme «Eu, Daniel Blake», do realizador Ken Loach
Créditos / http://freshfromthetheatre.com

Quando o realizador britânico Ken Loach recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2016 por Eu, Daniel Blake (I, Daniel, Blake, 2016) já contava com um prémio igual no percurso profissional. Brisa de Mudança (The Wind That Shakes the Barley, 2006) tinha ganho o mesmo galardão uma década antes. Na verdade, os dois filmes mostram duas facetas da obra de Loach que não se opõem, antes se complementam: uma focada no presente, outra centrada no passado. São duas vertentes de um único projecto: o de dar a ver o conflito entre classes no capitalismo numa escala mínima, mesmo quando ganha uma dimensão nacional, enraizando narrativas no quotidiano detalhado de personagens da classe trabalhadora. 

Por um lado, o já mencionado Brisa de Mudança narra o combate organizado de trabalhadores irlandeses contra as tropas britânicas que tentavam impedir o processo de independência da Irlanda em 1920. Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995), no qual um comunista inglês participa na luta contra as forças fascistas na Guerra Civil Espanhola, é outro exemplo desta perspectiva a partir do passado. Por outro lado, Eu, Daniel Blake narra a história de um marceneiro de meia-idade impedido de trabalhar por causa de problemas cardíacos, a quem é negado apoio social, e demonstra uma visão com um foco no presente. O celebrado Kes (1969), sobre a vida árdua de um rapaz numa bacia mineira em Yorkshire, é outro exemplo. 

«São duas vertentes de um único projecto: o de dar a ver o conflito entre classes no capitalismo numa escala mínima, mesmo quando ganha uma dimensão nacional, enraizando narrativas no quotidiano detalhado de personagens da classe trabalhadora.»

Em síntese, a obra de Loach revela a actualidade da história e a actualidade como história. O cineasta britânico é um retratista realista que coloca o acento no substrato humano da arte como prática e fenómeno social. Entendida desta forma, a arte não é redutível a uma forma (não científica) de conhecimento, mas é uma criação humana que se pode manifestar através de estilos diversos. O realismo é uma dessas opções estilísticas, não podendo ser limitado à simples figuração, tratando-se antes de uma transfiguração, trabalho sobre as figuras para que expressem a realidade histórica da existência humana. O cinema humanista de Loach não toma, portanto, como ponto de partida um ser humano genérico, uma versão abstraída de pessoas reais, sejam homens ou mulheres, negros ou brancos, capitalistas ou trabalhadores, e por aí adiante. Trata-se, antes, de uma arte cinematográfica que procura entender as determinações históricas em jogo na vida das personagens que retrata na tela. O resultado é o abalo de ver dramas carregados de realidade no ecrã, algo infelizmente raro – e, por essa razão, muito valioso. Mais do que isso: a obra de Loach é uma poderosa contribuição para elevar a consciência sobre as relações sociais de classe no sistema capitalista.

Vindos do realismo social britânico com origem no final da década de 1950, tendo cineastas como Tony Richardson ou Karel Reisz como companheiros, os retratos de Loach assumem um olhar a partir da classe trabalhadora. Enquadram-se com mais rigor num movimento cultural e artístico mais vasto, o chamado kitchen sink realism (o realismo do lava-loiça, em português), concretizado em obras teatrais, literárias, cinematográficas, e televisivas, mas também pictóricas. Como o nome indicia, no centro dos filmes deste realismo – como Paixão Proibida (Look Back in Anger, 1959), baseado na peça com o mesmo título –  estavam situações domésticas de trabalhadores britânicos pobres, a viverem em habitações alugadas demasiado pequenas, geralmente nas zonas industriais do norte de Inglaterra. A representação era, no entanto, mais abrangente e procurava mostrar cenas da vida social, em especial os momentos vividos a beber e conviver nos pubs nas horas de folga. É com raízes profundas neste movimento que Eu, Daniel Blake e os outros filmes de Loach dão voz a personagens densas de humanidade e resistência. 

Durante o genérico inicial, é precisamente a voz de Daniel Blake (Dave Johns) que ouvimos ainda sobre o ecrã negro. Escutamos uma conversa entre ele e uma «profissional de saúde» contratada pelos serviços sociais britânicos para avaliar o seu caso. Começa aqui o seu trajecto penoso pelos meandros absurdos destes serviços em que as regras rígidas e desadequadas se sobrepõem ao tratamento humano. A distorção operada nos serviços é evidente. A avaliadora da sua aptidão para trabalhar pertence a uma companhia privada americana contratada pelo Estado. Ignorando um relatório médico e seguindo um guião de perguntas que nada têm a ver com a sua condição, classifica-o como apto, logo sem direito a apoio social. O sistema, burocratizado e privatizado, desmotiva quem procura os apoios que lhe são devidos, levando muita gente a desistir. 

«Vindos do realismo social britânico com origem no final da década de 1950, tendo cineastas como Tony Richardson ou Karel Reisz como companheiros, os retratos de Loach assumem um olhar a partir da classe trabalhadora.»

A presença de Johns é avassaladora desde o primeiro segundo. Ele era um comediante de stand-up com nenhuma experiência como actor de cinema, mas tinha o conhecimento da realidade que o filme queria expor e de pessoas como o protagonista. O sotaque também era o dele, porque nasceu em Wallsend, pequena cidade nos arredores de Newcastle. Como explicou o argumentista Paul Laverty sobre a escolha de Newcastle, cidade industrial colada ao rio Tyne, para filmar Eu, Daniel Blake: «O filme poderia ter sido ambientado em qualquer lugar, mas estou muito feliz por termos vindo aqui. É uma cidade vibrante com uma identidade forte. Há algo nela que me lembra Glasgow: uma energia. Já filmámos em Manchester e Liverpool antes e é bom quando uma cidade tem uma identidade e um sentido de si mesma – e eu adoro o sotaque.»

A voz de Dan, como é chamado pelos amigos, tem o sotaque que emergiu e circula nas comunidades populares em Newcastle. E esse é apenas um dos aspectos de um estilo atento e meticuloso que Loach foi apurando e que nem sempre é devidamente valorizado. Segundo o crítico de cinema Girish Shambu, o «sentimento de autenticidade que Eu, Daniel Blake exala, aparentemente sem esforço, é o resultado de uma miríade de decisões ponderadas feitas sobre cenário, elenco, filmagem e (especialmente) dialecto.

A sua voz é a expressão da solidaridade no interior de uma classe à qual ele dá corpo – com os seus antigos colegas de carpintaria e marcenaria, com o seu vizinho negro mal-pago que vende ténis desviados de fábricas chinesas, com outras pessoas necessitadas com quem se cruza na rua.

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