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A «uberização» do cinema

Substituir a exibição em sala pela difusão em plataformas próprias de «conteúdos», seja na Internet seja nos serviços de televisão por cabo, tem vindo a ser uma tendência que, neste momento, se transforma em norma.

A curta-metragem «Menina» (15 minutos), de Simão Cayatte, é um dos filmes disponíveis na «quarentena cinéfila». A poucos anos do fim do regime fascista em Portugal, uma jovem «fada do lar» da classe média confronta-se com a dupla vida do seu cônjuge.
A curta-metragem «Menina» (15 minutos), de Simão Cayatte, é um dos filmes disponíveis na «quarentena cinéfila». A poucos anos do fim do regime fascista em Portugal, uma jovem «fada do lar» da classe média confronta-se com a dupla vida do seu cônjuge. Créditos

O encerramento das salas de cinema provocado pela pandemia do Covid-19 é uma situação inédita. As respostas do setor foram igualmente inéditas. Alguns realizadores, produtores e distribuidores, e até exibidores e festivais, optaram por partilhar os seus filmes direta e gratuitamente como forma de manter o contacto com o público e, mais importante, como gesto de solidariedade dirigido a todos aqueles que, com o isolamento voluntário primeiro, e as medidas do estado de emergência depois, se isolaram em suas casas.

Foi o caso, entre nós, da Medeia Filmes, da Terratreme Filmes, da Agência da Curta Metragem, do IndieJúnior Allianz, ou a Zero em Comportamento, bem como de pelo menos uma trintena de realizadores (lista em atualização no À Pala de Walsh; seleção comentada pelo Cineclube de Viseu).

Muitas cinematecas fizeram o mesmo, ora recordando que já tinham várias centenas de horas de imagens disponíveis em linha (ver a lista compilada pela Federação Internacional dos Arquivos de Filmes; ou o exemplo da Cinemateca Portuguesa), ora criando canais novos para partilhar temporariamente filmes recentemente digitalizados (como a Cineteca di Bologna, ou a Filmoteca Española).

Estes exemplos não se limitam ao cinema. Vários museus, bibliotecas e também teatros (como, entre nós, o Museu Nacional de Arte Antiga ou o Teatro Nacional D. Maria II) partilharam as suas coleções e os seus espectáculos, em emissões em direto ou através dos seus arquivos de gravações.

«Substituir a exibição em sala pela difusão em plataformas próprias de «conteúdos», seja na Internet seja nos serviços de televisão por cabo, tem vindo a ser uma tendência que, neste momento, se transforma em norma»

O acesso fácil a estes «conteúdos» culturais que nos entram em casa pela janela do computador é um gesto importante que deve recordar a todos que a cultura, também ela, é um «bem essencial». Mas não pode fazer esquecer as enormes dificuldades que os setores das artes, dos espectáculos e do património enfrentam já, continuarão a enfrentar enquanto durar a pandemia, e não desaparecerão quando tiver início a dificílima retoma destas e de tantas outras atividades.

Regressemos ao exemplo do cinema. Com as limitações ao funcionamento dos cinemas e as limitações de circulação de pessoas, as produtoras não podem continuar as rodagens e a pós-produção de filmes que tinham agendadas, os distribuidores não têm a quem vender os seus catálogos e os exibidores não conseguem mostrar os filmes que compraram. A situação afeta todos conforme a sua dimensão, volume de negócio e número de trabalhadores. Será que os exibidores independentes que fecharam agora conseguirão voltar a abrir portas? Será que as produtoras terão a liquidez suficiente para pagar salários até poderem retomar a sua atividade? E será que os pequenos exibidores e distribuidores que não falirem entretanto conseguirão resistir às regras que as grandes empresas em situação de monopólio e de concentração vertical desreguladas imporão a todos quando as salas voltarem a abrir?

Na verdade, as grandes empresas que concentram os vários setores, desde as comunicações e a televisão por cabo, às cadeias de exibição e à fatia de leão da distribuição, conseguem adaptar-se com alguma facilidade às novas regras do jogo. No caso das plataformas de video-on-demand (VOD), o panorama é ainda mais animador: algumas diversificam a oferta, aumentam os períodos de oferta promocional e diminuem a largura de banda para compensar o aumento da procura; vários blockbusters recentes veem drasticamente antecipado o hiato entre a estreia em sala e a sua difusão em VOD; outros filmes estrearão primeiro, ou muito provavelmente apenas, em VOD (contornando a lei ou forçando a aprovação de legislação especial que o permita).

«finda esta pandemia, arriscamo-nos a que o cinema seja maioritariamente on-demand, trazido pela Internet ou pela televisão; com sugestões personalizadas adaptadas ao nosso «gosto»; dispensando-nos cada vez mais a ida (mais cara, menos cómoda) à sala escura; ultrapassando todos os intermediários e degradando as condições de trabalho de quem não tiver sido entretanto posto em lay off “simplificado” ou sumariamente despedido»

Estas respostas em estado de emergência não fazem mais do que tornar clara a posição hegemónica das plataformas VOD e das grandes distribuidoras e uma das direções preferidas do seu «modelo de negócio» nos últimos anos. Substituir a exibição em sala pela difusão em plataformas próprias de «conteúdos», seja na Internet seja nos serviços de televisão por cabo, tem vindo a ser uma tendência que, neste momento, se transforma em norma. Coloca-se, pois, a questão: quando reabrirem as salas, quem terá a força suficiente para dizer que as regras do jogo em vigor durante o estado de emergência não deverão continuar a aplicar-se? Será o mesmo Estado que nunca regulou o setor da distribuição? Provavelmente, não.

Assim, a solidariedade de quem disponibiliza o seu trabalho gratuitamente pode transformar-se no «período experimental» que nos oferece uma plataforma VOD antes de começar a cobrar as suas mensalidades. Estaremos todos a contribuir para «testar» em massa, mais depressa, e sem outra opção —ainda que com as melhores das intenções— a machadada final na exibição e distribuição independentes pelo VOD e a grande distribuição, imposta por quem sempre ditou todas as regras do setor do cinema e do audiovisual?

Este tem que ser o momento, também, para experimentar outras soluções e preparar a retoma da atividade em condições que não sejam as que acabei de descrever. Não vale a pena, por exemplo, diabolizar a tecnologia em si mesma. Neste período de exceção, vários exibidores independentes na Europa e nos EUA têm tentado chegar diretamente aos seus espectadores, partilhando com eles os filmes que não chegaram a estrear ou que tinham acabado de estrear (veja-se o exemplo de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, na iniciativa Kino Marquee), pagando o preço de um bilhete normal, evitando transferir os seus catálogos para as plataformas VOD mais populares e com maior peso no mercado, e gerando receita para a sala e não só para o distribuidor.

De outro modo, finda esta pandemia, arriscamo-nos a que o cinema seja maioritariamente on-demand, trazido pela Internet ou pela televisão; com sugestões personalizadas adaptadas ao nosso «gosto»; dispensando-nos cada vez mais a ida (mais cara, menos cómoda) à sala escura; ultrapassando todos os intermediários e degradando as condições de trabalho de quem não tiver sido entretanto posto em lay off «simplificado» ou sumariamente despedido.

O tempo da pandemia tem que ser, assim, além do tempo das medidas excecionais que protejam todos os trabalhadores e as empresas mais frágeis — e que são as que mais contribuem para a diversidade do cinema que vemos—, o tempo em que se prepara a luta contra a futura, mas evitável, «uberização» do cinema.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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