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|escola

Um lugar de encontrar

Aquilo que o grupo de crianças com quem trabalho me vai mostrando é que quando não se lhes rouba o tempo e o espaço para brincar, elas os transformam em caminhos de uns até aos outros. E, nisto, em perguntas sobre o mundo.

Créditos / Maria Lis

Na sala que construí com as crianças, dia após dia, entre os tempos lectivos, brincamos.  No princípio, havia um esqueleto: uns tantos móveis, alguns brinquedos, jogos, paredes despidas, folhas, canetas e lápis, tesouras e colas, revistas e jornais antigos, um sofá e umas poucas almofadas. Cada vez que terminavam um desenho que lhes enchia as medidas, pediam-me que o pusesse na parede. Era um desenho para a nossa sala – e logo as paredes se encheram desses mundos imaginados e objectos estrambólicos. As estações do ano a passar. 

Quando há uns meses decidimos ir caçar gambozinos escola fora, também deixámos nas paredes os projectos, em forma de pergunta – como seria, afinal, o bicho que procurávamos? Que tamanho teria? O que comia? Precisaríamos de uma gaiola, de uma lanterna, de uma rede, de cordas, de um microscópio? Como poderíamos guardá-lo, para depois o espiolhar?

Numa das nossas paredes, diz: ter tempo para fazer o que me apetecer.

Noutra, anuncia-se: este é um lugar ao sol, só para estar.

E numa outra (entre respostas à pergunta, «o que pensas sobre este espaço?») diz: é um lugar onde estamos em família, com os amigos.

Se as paredes guardam lembretes e caminhos de dias passados, no chão e nas mesas da nossa sala fazemos os dias novos. 

Com o passar do tempo, passei a considerar-me uma brinconauta. No fundo, um adulto que brinca, que pensa sobre brincar, que ajeita condições e derruba impedimentos, que motiva e anima estes momentos preciosos. Espero, um dia destes, demorar-me um pouco mais sobre estes adultos que brincam, sobre a identidade de um brinconauta, mas não agora. 

Todo este preâmbulo me pareceu necessário apenas como forma de mapear a nossa sala, e a nós, dentro dela. 

Num dos armários da sala temos sempre cartão, ao alcance dos dedos. Caixas e pedaços de cartão, grandes e pequenos, que as crianças vão usando como material primordial ou complementar na construção de brinquedos e brincadeiras. Uma delas, que achei singularmente curiosa, motivou-me a ocupar estas linhas.

«Com o passar do tempo, passei a considerar-me uma brinconauta. No fundo, um adulto que brinca, que pensa sobre brincar, que ajeita condições e derruba impedimentos, que motiva e anima estes momentos preciosos.»

A brincadeira em causa partia de um amontoado de caixas enfeitadas, que davam forma a uma loja. A primeira a surgir na nossa sala era uma loja de desenhos e origamis. Prepararam a sua abertura ao longo de semanas, desde a composição de uma estrutura em cartão até aos desenhos e origamis para dar aos amigos que lá fossem. 

Entretanto, acharam que os amigos precisariam de dinheiro inventado para a troca – podiam ser notas feitas num qualquer papel, com um qualquer valor, e que cada qual teria as suas próprias notas, inventadas e feitas por si. Não seria sobre isto que nos falava Diane Di Prima na sua Carta Revolucionária #9?

… comecemos sem dinheiro e inventamo-lo

se nos fizer falta

ou que tal mimeografá-lo e toda a gente

imprime o quanto quiser

e logo vemos o que acontece

A abertura dessa loja motivou a abertura de uma mão-cheia de outras nas semanas seguintes. Tivemos uma pizzaria famosa, um salão de beleza animado por meninas que contava com uma fila de rapazes que diziam à chegada: «queria ser bem penteado e ficar cheiroso, queria pintar as unhas». Tivemos mais uma ou duas lojas de desenhos que não vingaram, um posto dos correios e, mais recentemente, uma loja de piadas e desenhos para «como se está».

Passo a explicar: distribuíam-se desenhos, feitos na hora, conformes a como cada pessoa se estivesse a sentir. Desenhos para a euforia, para a inquietação, tristeza, encanto, para o amigo que se estava a sentir engraçadinho e para o que se sentia irrequieto. Disseram-me que as piadas eram «o mais baratinho, só uma moeda ou assim».

Entretanto, uma das crianças apercebeu-se de que os amigos passavam muito tempo a desenhar notas e moedas, pelo que muitas vezes o tempo de brincadeira acabava sem que conseguissem ir às lojas – assim sendo, decidiu criar um lugar a que chamou multibanco, onde ele próprio fazia muitas notas, moedas e cartões de pagamento, para serem utilizados pelos amigos. 

A maravilha é esta: espreitar a construção destes mundos, através dos quais as crianças pensam aquilo que apreendem do mundo que conhecem. São lugares protegidos, mais amplos e elásticos, onde levam a teste, questionam, redimensionam, repensam, mas também propõem. Uma loja enquanto lugar que provém, onde cada um pode encontrar um olhar atento e atencioso sobre a forma como se sente naquele dia. Onde cada um cria possibilidades de acordo com a sua necessidade, onde as fronteiras de uma sociedade de classes não encontram sentido. Que tamanho artifício de torcer – de torcer a realidade, mostrando-nos (aos adultos) quão bem a integram enquanto a desconstroem. 

Esta história das lojas ficou a caldear dentro do meu lugar de pensar, e em razão disso pensei dois pensamentos. E os dois pensamentos que pensei foram:

a) temos estado desinvestidos em proteger os espaços de brincadeira

Se, por um lado, qualquer espaço pode, em potencial, ser um espaço para brincar ou onde se brinca, é inegável que os anos recentes decididamente transformaram aqueles que eram os espaços, e sobretudo os tempos, que mais se prestavam a brincar. O lugar de encontro na rua, pelo menos no contexto urbano, passou a ser mais raro. O tempo passado na escola, regra geral, estendeu-se – os miúdos já não têm a casa dos avós que não trabalham e que ficava à mão de semear, a escola já não deixa livres as tardes, para que possam fazer o que lhes apeteça, como lhes apeteça. A escola foi dilatando as horas que lhe cabem para assegurar que as famílias nucleares, o pai, a mãe, um ou outro tio, alguns avós, possam continuar a trabalhar, sem que se preocupem demasiado quanto ao que farão as crianças ou onde poderão ficar, em segurança. Sem menosprezar a utilidade deste movimento à luz da realidade que temos e de como nos organizamos dentro dela, não podemos ignorar que o resultado passa por atafulhar o dia dos mais pequenos, preenchendo-o com actividades o mais das vezes estruturadas por alguém, repartidas em momentos amigos do que é ordeiro, linear, encarreirado. 

Isto acontece a par de um notório desinvestimento nos espaços de brincadeira das próprias escolas. Em geral, os espaços de recreio são sumariamente desinteressantes, carentes de espaços de privacidade, de material para construir, de esconderijos, de passagens secretas e mágicas para o mundo do lado de lá. 

Os adultos presentes são também, na sua maioria, tão intrusivos quanto desinteressados – ou seja, não pautam a sua presença nos espaços lúdicos pela observação e pelo profundo desejo de que as crianças brinquem tão profundamente quanto possível. Pelo que me tem sido dado a ver, apoquentam-se essencialmente com a segurança física dos pequenos, interessam-se por perceber se comeram e não deixaram lixo pelo chão, se não se pegaram à bulha, e pouco mais. Adoraria debruçar-me com maior profundidade também sobre estes adultos, tema que fica como promessa de início de uma próxima reflexão.

b) quando as condições óptimas se encontram e as crianças se deparam com o tempo, o espaço, e a possibilidade de brincarem umas com as outras ou sozinhas, de forma ainda assim balizada, protegida e segura, é muito fácil mostrarem-nos a elasticidade do seu pensamento mágico.

O pensamento mágico espelha a capacidade de acreditar numa proposta alternativa à realidade que se conhece. Habitualmente extinto por volta dos seis/sete anos de idade, é o pensamento mágico que nos leva a não duvidar que um dia destes conseguiremos mesmo levantar voo, estalar os dedos numa labareda, dormir em Saturno e comer croissants com manteiga nos seus anéis, ao pequeno-almoço. Idealmente, só a partir dessa idade nos vamos progressivamente distanciando de um acreditar absoluto, até à dúvida, até ao facto, até àquilo que é como é. Mas a forma saudável, ou não, como este processo acontece ditará potencialmente a elasticidade da nossa imaginação, a forma como – sendo adultos funcionais, que compreendem e integram a realidade – poderemos ser igualmente capazes de torcer os dias e os factos, a bel-prazer da alegria, da magia, do artifício, da capacidade de ir arredando as dores de crescer.

«Habitualmente extinto por volta dos seis/sete anos de idade, é o pensamento mágico que nos leva a não duvidar que um dia destes conseguiremos mesmo levantar voo, estalar os dedos numa labareda, dormir em Saturno e comer croissants com manteiga nos seus anéis, ao pequeno-almoço.»

Aquilo que o grupo de crianças com quem trabalho me vai mostrando é que quando não se lhes rouba o tempo e o espaço para brincar, elas os transformam em caminhos de uns até aos outros. E, nisto, em perguntas sobre o mundo. E ainda dobram o que conhecem, como uma folha de papel, que depois desdobram em mundos novos, em manhãs, em propostas – tanto continuam a pagar com moedas e notas os artigos disponíveis nas lojas, explorando claramente a lógica do quotidiano real, como logo arranjam forma de todos poderem aceder àquilo de que precisam, criando a sua própria moeda e a sua própria sorte, acedendo não à acumulação de objectos feitos necessários, mas a um desenho reconfortante e concordante com os seus sentimentos num dado momento. E, depois de tudo isto, «logo vemos o que acontece», como nos sugeria Di Prima.

Destas voltas e reviravoltas, uma coisa tomo como segura: a brincar, estas crianças terão reunido melhores condições de interpretação da realidade nas suas tantas artérias, e de leitura dos outros e de si mesmas, no contacto com ambos. Alguém que aprende a experimentar-se mais facilmente encontrará um lugar para se perguntar sobre si e sobre o que tem ao redor – e este é um exercício fundamental para a gente crítica com quem me pretendo encontrar no futuro, com quem espero traçar o que está por vir, engendrar planos de reconstrução, abrir caminhos até lá, sem esquecer de desdobrar todos os entretantos.

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