Anda muita gente preocupada com a «qualidade» dos motoristas TVDE. E produzem-se muitas e bem intencionadas propostas de alteração da lei para melhorar essa «qualidade» dos motoristas. A campanha é similar à que acontecia há uns anos, exactamente quando se tentava impor o modelo TVDE, só que então o que surgia como «necessário» era melhorar a «qualidade» dos motoristas de táxi. Da mesma forma que então se generalizou a caricatura do «taxista», quando o que interessava era promover a entrada da modernaça Uber, agora generaliza-se a caricatura do motorista TVDE, quando o que interessa é concentrar no motorista a atenção que se devia focar num modelo falhado e daninho. A diferença, para pior, é que a primeira caricatura era só estúpida, e a nova caricatura é estúpida, xenófoba e racista.
Colocar o foco no motorista é completamente errado. O problema é a multinacional e a liberalização que lhe escancarou o caminho. E o problema não é o comportamento da multinacional, é o facto de o modelo ter colocado a multinacional (e os seus interesses) no centro da política de transportes. É como colocar uma raposa no galinheiro e depois andar a chorar que andam a comer as galinhas. Bem podem fazer leis a dizer que as raposas põem ovos e quantos ovos devem pôr. As raposas continuarão a comer galinhas e a não pôr ovos. E se colocarem uma Autoridade Reguladora sobre o galinheiro (ARG), as raposas vão continuar a comer galinhas, diga o que disser a ARG, até se retirar a raposa do galinheiro... ou já não existirem galinhas, nem ovos.
Ora, a liberalização de um sector como o táxi – como todas as liberalizações, e o TVDE é um passo no caminho da liberalização do táxi – provoca três consequências inevitáveis: promove a concentração e centralização da propriedade; degrada os rendimentos dos empresários do sector; intensifica a exploração dos trabalhadores do sector. Pode fazer baixar o preço numa primeira fase, à custa dos profissionais do sector, mas o preço sobe novamente assim que o domínio de mercado pela multinacional esteja estabelecido, altura em que sobe para aumentar as rendas extraídas pela multinacional enquanto o produtor (de serviços neste caso) continua com os preços esmagados, primeiro pela concorrência e depois pelo monopólio. No caso TVDE, tudo agravado pelo facto de a dependência da multinacional ser um dado de partida, pois são estas quem detém as plataformas.
«Essas leis, mesmo quando têm origens bem intencionadas, não resolvem o problema. E continuam a colocar o foco no local errado: no motorista.»
Bem se podem fazer leis a exigir que os motoristas falem 14 línguas, tenham residência estabelecida em Portugal há seis anos e a mais perfeita formação profissional. E que só vistam roupa de marca, já agora. Ninguém com essas características vai trabalhar num sector que paga 400/500 euros de remuneração e anda 8/10 horas a trabalhar durante 6/7 dias por semana. E ainda bem. Essas leis, mesmo quando têm origens bem intencionadas, não resolvem o problema. E continuam a colocar o foco no local errado: no motorista.
É preciso colocar limites. Limites legais. Os mesmos que havia antes de se ter aberto a porta à liberalização. Limites ao número de carros. O limite de um preço mínimo compatível com os custos de produção, incluindo nestes custos de produção a justa remuneração de todos os profissionais. Um preço máximo que impeça o abuso e a especulação. Dignas condições remuneratórias para os motoristas que têm de deixar de ser tratados como falsos empresários, só para os despirem dos mais elementares direitos laborais.
No fundo, é preciso destruir, escavacar a essência do regime jurídico TVDE imposto em 2019. A sua visão liberalizante só serve as multinacionais, como é típico desse modelo, oferecendo-lhes o mercado português, a exploração dos trabalhadores portugueses, e a penúria e precariedade dos empresários portugueses.
Alguns dirão, como é costume nestas circunstâncias, que se assim fizermos as multinacionais «abandonam o país». E então? Não há em Portugal informáticos suficientes para desenhar um sistema de plataforma, instalá-lo nos Centros de Dados nacionais e fazer funcionar uma plataforma por muito menos que 25% do preço pago pelos clientes do TVDE? Claro que há. E até há quem possa financiar essa operação: um Estado que coloque como objectivo contribuir para criar riqueza social. Só assim nos libertaremos destas multinacionais que intervêm no mercado para se apropriarem, para si próprias e para os seus accionistas, de uma parte cada vez maior da riqueza produzida pelos outros.
Difícil? Sim, muito. Principalmente de nos convencermos a nós próprios, povo português, de que é possível sermos livres. Mas muito mais fácil do que ensinar raposas a pôr ovos!
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