|Manuel Gouveia

TAP, ilegalidades de encomenda e outras liberalices

O que o País precisa é de deixar – finalmente – a TAP em paz, libertá-la das restrições à sua gestão operacional e colocá-la ainda mais ao serviço da economia nacional.

Duas recentes notícias sobre a TAP vêm mostrar, à exaustão, o quanto o Estado nas mãos das forças liberais é transformado numa máquina que se devora a si própria, que se amarra e amordaça primeiro, para depois se ir auto-mutilando até nada (nos) restar.

A notícia mais recente é sobre as ilegalidades detectadas pelo Tribunal de Contas (TdC) na gestão pública da TAP. Em todos os casos, trata-se de actos de gestão perfeitamente normais, mas que estão vedados às empresas públicas, que necessitam de visto prévio para executar esses actos. Já uma vez chamámos a atenção que em Portugal o governo não precisa de visto prévio do TdC para vender a TAP, mas a gestão da TAP precisa de visto prévio para fazer algo tão normal como comprar combustível para os aviões.

De há muito que esta situação podia e devia estar resolvida, até porque este não é o primeiro caso em que o TdC alerta para estas ilegalidades. Qualquer um dos governos que nos tem desgovernado podia ter feito uma de duas coisas: acabar com estas limitações à gestão pública substituindo o visto prévio (num conjunto de situações operacionais) pela fiscalização sucessiva ou, pelo menos, isentar a TAP dessas obrigações (como aliás fez para poder pagar aos seus gestores mais do que o limite legal dos gestores públicos.)

Mas os governos nada fizeram e o TdC vai fazendo o seu trabalho, e declarando ilegal o que de facto é, mas que se não fosse praticado a empresa já teria encerrado portas. Porquê esta inacção dos governos? Porque criar do nada notícias negativas sobre a TAP é algo que agrada aos desgovernos, pois o seu objectivo é liquidar a empresa pública. Até hoje estes processos têm-se limitado a um enorme desgaste de tempo e recursos, acabando todos por ser arquivados face à sua manifesta falta de senso. Depois de gerar notícias negativas. Mas chegará o dia em que um destes processos terminará com a condenação do gestor público que comprou combustível para um avião poder voar... no mesmo país onde o gestor privado que mete no seu próprio bolso milhões de euros do erário público é agraciado com todas as ordens e comendas da República, e o governante que ofereceu uma empresa pública escapa impune a qualquer punição.

A segunda notícia é o Projecto de Resolução (PJR) da Iniciativa Liberal (IL) a exigir a venda total da TAP. Tratar-se-ia de uma resposta ao facto de o programa do Governo ser omisso na quantidade de capital da TAP que o Estado vai vender. É o início de um truque onde a discussão é colocada toda no local errado: venda parcial ou venda total? Eliminando à partida uma das posições: porquê vender e para quê?

«Mas chegará o dia em que um destes processos terminará com a condenação do gestor público que comprou combustível para um avião poder voar... no mesmo país onde o gestor privado que mete no seu próprio bolso milhões de euros do erário público é agraciado com todas as ordens e comendas da República, e o governante que ofereceu uma empresa pública escapa impune a qualquer punição.»

 

Mas o PJR vale a pena ser lido. Por exemplo, quando repete a fraudulenta tese de que com «... estes lucros, nesta dimensão atual, seriam necessários 30 anos com resultados na média dos últimos 3 para recuperar os 3.2 mil milhões injetados na empresa no processo de nacionalização». (O que desde logo é uma impressionante preocupação numa força que assistiu ao escândalo da privatização do Novo Banco – onde o Estado perdeu 6 mil milhões – sem soltar um pio.) Mas voltando aos PJR e às suas mentirolas sobre a TAP: o que o Estado ganha com a TAP não se resume ao seu lucro operacional, tem que se lhe somar as outras realidades, por exemplo o facto da TAP contribuir com 1,4 mil milhões de euros para a Segurança Social em 10 anos, quando a Ryanair, no mesmo período, contribui com 40 milhões. 

É preciso ainda ter em conta que o Estado não injectou 3,2 mil milhões na TAP no processo de nacionalização, o Estado agiu face a uma pandemia que colocou todas as companhias aéreas do mundo no vermelho (os apoios a fundo perdido à escala mundial superaram os 150 mil milhões), evitou a falência a que a gestão privada tinha conduzido a empresa, e limpou o passivo de uma opção de gestão (a compra da Manutenção da Varig na privatização desta) que em 20 anos provocou um prejuízo de mil milhões de euros à TAP (sendo que o PCP e os trabalhadores, em cada um desses 20 anos, alertaram o desgoverno de turno para essa realidade, mas estes sempre optaram por nada fazer e deixar avolumar esse passivo).  Como já demonstrámos bastas vezes, esses 3,2 mil milhões decompõe-se, grosso modo, em 640 milhões de apoios covid, 1000 milhões para tapar o buraco aberto com a compra da manutenção da Varig, 600 milhões para pagar os prejuízos causados pela gestão privada da TAP e pela anterior tentativa de privatização à Swissair, 1000 milhões de capitalização pública, que permanecem na companhia. 

«É o início de um truque onde a discussão é colocada toda no local errado: venda parcial ou venda total? Eliminando à partida uma das posições: porquê vender e para quê?»

 

A opção que existia em 2020 era simples: (1) deixar falir a TAP, ficando o Estado a pagar cerca de 400 milhões de euros de apoios sociais durante os anos seguintes, perdendo ainda as receitas de SS e IRS, desaparecendo o maior exportador de serviços e o maior operador aéreo nacional, colocando o país nas mãos «do mercado» e fazendo cair o PIB entre 2 e 4%, (2) nacionalizar a TAP, com ou sem esta reestruturação (essa é outra discussão) e (3) entregar uns milhares de milhões a David Neeleman, mais o capital total da empresa, que é a opção que a IL propôs na altura e ainda hoje aplaudiria de pé. Isto, apesar de David Neeleman já ter, entretanto, colocado outra empresa em processo de insolvência (a Azul). 

Diz muito de a quem serve a IL, e para o que serve a IL, que esta exija que a gestão pública da TAP «devolva» os 3,2 mil milhões, mas depois não exija que a privatização devolva seja o que for, e muito menos os 3,2 mil milhões. E voltamos a recordar dois factos que a IL faz por esquecer: em cada processo de privatização a TAP quase entrou em insolvência; a gestão da operação aérea (a TAP SA no tempo do grupo TAP) foi lucrativa em quase todos os anos deste século, e os seus maiores prejuízos ocorreram nos poucos anos em que esteve sob gestão privada (ainda antes da covid). 

O que o País precisa é de deixar – finalmente – a TAP em paz, libertá-la (bem como as restantes empresas públicas) das restrições à sua gestão operacional, e colocá-la ainda mais ao serviço da economia nacional (apesar das brutais limitações operacionais que sofre devido à desastrosa e criminosa privatização dos aeroportos).

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