Cheila tem 33 anos, trabalhou como bartender em vários bares. Desde o fim do Verão passado que está em casa. «A pandemia obrigou a fechar tudo. O abre não abre, as restrições de funcionamento por motivos de saúde levaram quase todo o sector às cordas. Muitos provavelmente não vão conseguir abrir depois deste segundo confinamento». Os apoios do Estado incidiram sobretudo no lay-off e os outros são muito limitados.
Paulo é proprietário de um bar em Lisboa que explora com o seu filho e encontra-se na mesma situação, «por todo e por junto os apoios que me deram, quase num ano, não ultrapassaram os 200 euros.»
Em casa, Cheila vai esperando que a pandemia passe para voltar a trabalhar. «Não desisti de ter um espaço meu e de trabalhar, mas para já estou a gastar as economias que amealhei para sobreviver», diz.
Stefan é instrutor de artes marciais na Pontinha. O confinamento obrigou-o repetidamente a encerrar provisoriamente o ginásio em que dá treinos e teve o efeito de um tsunami na sua vida. «Este abre e fecha ao longo do ano e os receios de contágio levaram as pessoas a desistir de treinar e a descontinuar os pagamentos. Não há apoios para nós que continuamos a ter que sustentar a família e pagar as rendas. E este é um tipo de actividade que, por muitas aulas zoom que possamos fazer, não nos permite funcionar e ganhar devidamente».
Cheila, Paulo e Stefan são três exemplos das muitas pessoas que perderam rendimentos no ano de 2020. Os economistas e cientistas sociais têm a nítida percepção que a crise parou muita gente e que há um crescimento significativo das desigualdades, mas ainda não há dados fidedignos que façam o retrato desta tempestade.
Uma crise que produz desigualdades
Na semana passada, a Universidade Nova lançou o estudo «Portugal, Balanço Social 2020» em que se trabalham e analisam muitos dos dados e estudos parcelares que saíram sobre o crescimento da pobreza e das desigualdades no nosso País, com o intuito de «traçar um retrato socioeconómico das famílias portuguesas, com ênfase nas situações de privação e, quando possível, no acesso às respostas sociais existentes em Portugal».
A professora da Nova SBE Susana Peralta é uma das coordenadoras do estudo. «O relatório, que se chama “Portugal, Balanço Social 2020”, tem uma caracterização bastante cuidada da situação em Portugal. Fizemos esse trabalho com as limitações existentes, porque só é possível fazer uma caracterização dessas passado um ou dois anos, que é quando aparecem os dados representativos daquele período. Nós analisamos os dados do INE que nos permitem fazer uma caracterização representativa e cuidada daquilo que é a situação das famílias em 2019. Mas depois fomos à procura de todas as fontes de informação possíveis, com que tentámos fazer um possível retrato de 2020», assinala Susana Peralta ao AbrilAbril.
O estudo demonstra os impactos da pandemia a vários níveis. O efeito que teve a nível da saúde, «em Abril de 2020 foram apenas realizadas 182 cirurgias, face a 13 000 em Abril de 2019», e que essas restrições no campo da saúde não foram iguais para todos. «A pandemia afectou particularmente a saúde (…) dos mais pobres, dos menos escolarizados e dos desempregados».
Segundo o relatório, os efeitos da pandemia agravaram também os problemas de desigualdade no ensino, «com o encerramento das escolas, as aulas presenciais foram substituídas pelo ensino à distância. Esta substituição afectou de uma forma mais negativa os alunos das famílias mais pobres», esclarece o documento, que explica que no ano lectivo de 2017/2018, «apenas 62% dos alunos com apoio dos Serviços da Acção Social Escolar (SASE) tinham computador e 52% tinham acesso à internet, o que compara a uma taxa de 71% de acesso à internet e computadores para os alunos sem SASE.»
Do ponto de vista do emprego, verificou-se que «as condições no mercado de trabalho alteraram-se profundamente em resposta à pandemia. Dependendo dos sectores, as medidas de confinamento fizeram aumentar a prevalência do teletrabalho, ou levaram ao encerramento das empresas», afirma o documento, contabilizando que «no final de Abril de 2020, o número de trabalhadores em lay-off simplificado era de 1,2 milhões, o que compara com cerca de 70 mil no final de Março».
Susana Peralta sublinha ao outro dado importante: «os sectores mais afectados pela crise são aqueles que as pessoas não puderam fazer a migração para o teletrabalho e têm comparativamente os salários mais baixos».
Um resultado que confere com outro dado presente nas conclusões do relatório: «estudos não representativos mostram que as pessoas que se identificam com os mais pobres são as que reportam maior perda de rendimento».
Buscar dinheiro a quem o tem
O título de uma recente entrevista de Susana Peralta ao jornal i, em que supostamente defenderia que era preciso taxar «a burguesia do teletrabalho», levantou uma tempestade nas redes sociais. A economista nega a simplificação, mas reafirma que são precisos recursos para combater o crescimento da pobreza e das desigualdades, e que cabe ao Estado a escolha política de onde ir buscar esse dinheiro.
«Eu nunca disse que é para cobrarem apenas às pessoas que estão em teletrabalho. Aquela fórmula da “burguesia do teletrabalho” é uma imagem e pretende transmitir que houve uma determinada “tecnologia” de escapar a esta crise. Tal como a crise anterior tinha a fuga do biscate e do pequeno trabalho, e da emigração; nesta crise, o teletrabalho foi a escapatória», argumenta, acrescentando que «isso protege mais as pessoas com maior rendimento e com maior nível digital. E não faz nenhum sentido que essas pessoas não possam contribuir mais para as que perderam quase tudo».
Para a economista, a escolha política não pode prescindir de taxar a totalidade dos rendimentos. Não nega a necessidade de conseguir que o capital pague a sua parte, mas relembra que há uma urgência em conseguir já os recursos necessários para combater os efeitos da crise.
«Estamos neste momento numa situação de emergência social, e perante isto há duas formas de agir: ou o Governo se endivida e depois pensa, com tempo, num potencial imposto sobre a riqueza para poder ir buscar recursos aos mais ricos, que não têm estado a contribuir a sua justa parte. Ou usamos agora a máquina que temos para ir buscar dinheiro, que é a máquina dos impostos sobre o rendimento. E aí inclui-se o trabalho e capital, em sede de IRS e também de IRC», explica.
É essa reforma sempre adiada de taxar devidamente o capital, que o professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais João Rodrigues afirma, ao AbrilAbril, ser cada vez mais necessária. Para isso é preciso conhecimento social e acção política. «O problema da esquerda é que conhece razoavelmente a pobreza, mas muito mal a riqueza para saber como são as formas mais eficientes de a taxar», ironiza. O investigador do CES sublinha a necessidade de uma política justa que possa minimizar os efeitos da crise pandémica.
«Vivemos numa sociedade brutalmente desigual, em que há ricos a aforrar e a ver os seus activos valorizarem à boleia da política monetária europeia, que não tem tido direcção orçamental no sentido de aumentar o investimento público e, no fundo, acaba sobretudo por valorizar os activos financeiros. Tudo isto fazendo com que as desigualdades de riqueza estejam a crescer», afirma, juntando que para além de tudo isso, os sucessivos governos têm sido alérgicos a taxar a riqueza e o capital. «O PCP e o BE insistem e bem que é necessário o englobamento de todos os rendimentos, em pé de igualdade, para efeitos de IRS. Para além disso, é preciso pensar na criação de outras formas de impostos que possam onerar aqueles que têm muito património», defende o economista de Coimbra.
É preciso defender quem trabalha
O deputado comunista Bruno Dias está de acordo: «temos de ter um sistema fiscal que consiga ajudar a redistribuir a riqueza. Neste momento, os estudos internacionais demonstram que há um forte crescimento das desigualdades e da pobreza. Mesmo que só daqui a alguns anos seja possível quantificar o impacto da pandemia na pobreza e desigualdades em Portugal, é indesmentível que ela se tem acentuado». O deputado sublinha, ao AbrilAbril, propostas feitas pelo PCP para atalhar alguns aspectos mais gravosos desta crise, como a falência de muitas micro, pequenas e médias empresas e a defesa dos rendimentos de quem trabalha. Realça ter-se conseguido que, ao contrário do que aconteceu no primeiro confinamento, o lay-off seja igual ao salário do trabalhador, e a importância de garantir que os apoios cheguem atempadamente às pequenas empresas.
«Uma coisa é disponibilizar e assegurar uma verba significativa para as micro e pequenas e médias empresas e outra coisa é mostrar o dinheiro e de facto ele chegar a essas empresas. Os apoios são comunicados com pompa e circunstância, mas depois verificou-se que as verbas não chegavam às empresas por dificuldades tremendas de acesso às linhas de apoio e por um conjunto muito grande e crescente de exigências burocráticas. Nós conseguimos aprovar uma medida de não discriminação para as micro, pequenas e médias empresas que permite que mais gente possa ter acesso a esses apoios, infelizmente ainda persistem muitos bloqueios para que se apoiem devidamente as pessoas», alerta.
Por seu lado, a dirigente da CGTP-IN Andrea Araújo sublinha, em declarações ao AbrilAbril, a incidência da crise pandémica nas condições de vida de quem trabalhar e a necessidade de haver uma política que aumente os apoios sociais, e que se concentre, sobretudo, na defesa dos postos de trabalho.
«As consequências, desta crise, para os trabalhadores e para as suas famílias ainda não estão totalmente calculadas. Mas, por aquilo que conhecemos, podemos dizer que as remunerações de muitos trabalhadores reduziram-se no ano 2020. De acordo com o relatório sobre salários da OIT, Portugal foi, dos 28 países europeus estudados, daqueles em que ocorreram as maiores perdas salariais no segundo trimestre de 2020».
Para a sindicalista, a resposta governamental falhou nas prioridades: «desde o início que houve uma clara desproporção entre as medidas anunciadas para as empresas e as medidas tomadas para apoiar os trabalhadores e as famílias, com a agravante de se ter verificado, no que diz respeito às grandes empresas, um grande favorecimento em relação às micro e pequenas empresas. A CGTP-IN defendeu que era preciso actuar para preservar os postos de trabalho. O Governo deveria ter proibido todos os despedimentos e não o fez, o que levou a que nos primeiros meses fossem despedidos milhares de trabalhadores que se viram a braços com uma situação muito complicada, até porque mais de metade desses trabalhadores nem sequer tinha direito a prestações e apoios sociais. Tinha sido fundamental que o Estado exigisse às empresas que está a apoiar que não fizesse despedimentos».
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