Numa reunião, e aproveitando o facto de eu ser professora de Português, os encarregados de educação de uma turma levantaram diversas preocupações com as leituras que os filhos iam fazendo. O problema residia no conteúdo violento e sexual que uma autora da moda, muito apreciada pelos jovens, faz questão de manter e repetir nas dezenas de livros que publica anualmente. Trocadas algumas ideias, num misto de consolo com discussão sobre estética literária, uma mãe lá se saiu com um desabafo: «bom, ao menos lê».
As leituras que fazemos ao longo da nossa vida não precisam de percorrer única e exclusivamente os grandes clássicos da literatura universal. Aliás, o próprio Fernando Pessoa admitiu a uma dada altura que já só lia policiais. A leitura é uma atividade extremamente difícil, requer empenho, concentração, obriga a um conhecimento prévio que nem sempre o leitor domina ou tem condições para o fazer. Tentar ou persistir numa leitura é mais difícil do que desistir. É aqui que reside um dos maiores desafios dos professores.
Na disciplina de Português existem duas divisões no domínio da educação literária: as obras que são lidas e estudadas através de excertos ou de forma integral, e as escolhidas pelos alunos para apresentarem à turma, para efeitos de avaliação, lidas e analisadas de forma autónoma. A lista de obras presente no Plano Nacional de Leitura (PNL) constitui uma ferramenta fundamental no campo educativo. Mais do que um selo na capa que garante a qualidade da obra e o seu público-alvo, são muitas vezes os seus excertos que compõem os manuais escolares. Excerto esse que, quando bem escolhido, aguça o desejo de uma leitura mais extensa.
«Havendo uma lista, há também uma obrigação. A obrigação de que exista uma biblioteca com exemplares em número suficiente para a comunidade escolar, que exista um professor bibliotecário e um auxiliar. Não tem sido pouco comum encontrar a biblioteca com horários reduzidos devido à falta de pessoal.»
A título de exemplo, a propósito de um excerto do Diário de Anne Frank, é possível abordar a questão histórica que está na sua base mas, também, a importância de um diário como forma de escrita mais íntima, regular e muito ao gosto dos leitores daquela faixa etária. A ida à biblioteca da escola para pesquisar outros diários é uma consequência natural do trabalho realizado em aula e que tem tido sucesso. Outro exemplo é o trabalho que se faz com a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen, O Cavaleiro da Dinamarca, onde através de um trabalho interdisciplinar é possível estudar a localização absoluta e relativa (lecionado em Geografia) o Renascimento na disciplina de História e/ou a Educação Visual. A obra, por si só, pode ser muito, ao ser trabalhada dentro e fora da sala de aula, vai para além dela e ganha significados e dinâmicas para outras leituras.
É por isso que o PNL é uma boa ideia, apesar de limitado. Sendo uma lista em permanente atualização, permite balizar as escolhas que professor e alunos são convidados a fazer durante o ano letivo. Mas, havendo uma lista, há também uma obrigação. A obrigação de que exista uma biblioteca com exemplares em número suficiente para a comunidade escolar, que exista um professor bibliotecário e um auxiliar. Não tem sido pouco comum encontrar a biblioteca com horários reduzidos devido à falta de pessoal. Tal como já não é pouco comum, para fazer falta aos exemplares que deviam existir na biblioteca, a obra que os alunos estão obrigados a ler, conhecer, aprofundar, ser projetada (quando há internet na sala, quando o projetor funciona, quando há projetor) deixando de fora a experiência do aluno de abrir um livro, procurar uma página ou encontrar um capítulo. E faz muita falta esta experiência. São turmas inteiras que já não sabem procurar uma palavra no dicionário ou encontrar um texto através do índice. O PNL é um meio para professores, alunos, encarregados de educação exigirem a biblioteca a que têm direito e de que tanto precisam.
A preocupação dos professores pelo fim do PNL é justa, mas não surpreendeu ninguém. A destruição da escola pública, a desvalorização da cultura, do seu elemento emancipador, tudo o que esteja relacionado com a formação do indivíduo, tem sido alvo de fortes ataques há décadas. Este ano não é excepção, tendo este Governo aumentado pelo segundo ano consecutivo as verbas para o ensino privado. É um programa de destruição da escola pública em curso. Mas temos sabido resistir, com o pouco que temos, o muito que fazemos e o que conseguimos semear. E assim continuaremos. Parafraseando Saramago: não subiremos ao céu, se à luta pertencemos.
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