Pelas onze da manhã já tinha chegado gente à sede da claque. A luz entrava pelas grandes janelas altas e iluminava o chão que denunciava a celebração da noite anterior. No Belenenses, e em particular na sua claque, a Fúria Azul, as vitórias do clube são muito mais do que os resultados de um jogo em qualquer uma das modalidades.
Todos os campos que disputamos da nossa vida coletiva, e que resultam na nossa vitória, são motivo de celebração. Na noite de 17 de outubro de 2020 celebrou-se a confirmação de um caminho, a confirmação de que a maioria dos sócios do Belenenses continua a acreditar nesse caminho e a defender a história e a dignidade deste clube centenário. Mas o dia anunciava uma nova jornada, disputada com o histórico rival e amigo Atlético Clube de Portugal – o derby da zona ocidental de Lisboa.
Por estes dias, a sede da Fúria Azul já não conhece aquelas enchentes, a mesma mobilização dos domingos eufóricos. Privados de assistir aos jogos, alguns ultras, que lutam hoje, não apenas pelo clube, mas pelo direito a assistir a competições desportivas nos estádios e pavilhões, insistem no ritual de acompanhar as equipas onde quer que elas vão.
O percurso, desta vez, seria feito a pé, caminhando pelas ruas da soalheira Belém, enchendo a rua com a alegria e a cor que lhe tem faltado. Destemida e a reivindicar a via pública, a Fúria Azul fez uma primeira paragem no banco onde o Belenenses foi fundado, a 23 de setembro de 1919, seguindo pela Rua do Embaixador – uma rua de grande simbolismo para a memória do clube.
Foi nesse momento que, parados em frente à casa do grande impulsionador do clube, Artur José Pereira, se soltaram os cachecóis e as bandeiras, a gaita de foles deu o mote e entoou-se o hino. Carros parados, voluntariamente, curiosos nas janelas e vizinhos que ainda sentem a importância do Belenenses na vida social destes dois bairros – Belém e Ajuda – compunham um cenário raro por estes dias de medo e restrições.
A rua era agora tomada por uma pequena, breve, mas muito significativa onda de esperança. Pelo caminho, as Salésias e alguns ecos dos resultados das eleições do dia anterior, que haviam dado a vitória à lista onde figuravam os membros da atual e futura direção do Belenenses.
Estas eleições foram encaradas como um referendo à real vontade dos sócios. As três listas concorrentes representavam, também, três formas diferentes de estar no Belenenses: os que arriscaram a inscrição da equipa de futebol nos campeonatos distritais; os que, acompanhando a vida do clube, não conseguiram cortar com a equipa que ficou na I Liga a representar uma sociedade anónima desportiva (SAD), que já não tem qualquer ligação ao clube; e uma terceira corrente que queria retomar essa ligação, tendo desistido de acompanhar o clube nestes dois últimos anos.
Essa desistência, essa recusa em ver o Belenenses a frequentar patamares mais populares do nosso desporto nacional, criou uma animosidade com esta lista e transformou as eleições em algo muito maior do que uma simples escolha de órgãos sociais. Era tempo de recordar para poder abrir o futuro.
«Essa desistência, essa recusa em ver o Belenenses a frequentar patamares mais populares do nosso desporto nacional, criou uma animosidade com esta lista e transformou as eleições em algo muito maior do que uma simples escolha de órgãos sociais.»
Há dois anos, o Clube de Futebol «Os Belenenses» iniciou a mais longa e difícil caminhada da sua história, com o único apoio de que precisava: os seus sócios. E eram estes que naquele dia confirmariam essa escolha.
Não é fácil para ninguém compreender como é que um clube desportivo abdica de estar representado na competição mais importante do futebol nacional, onde construiu a parte mais significativa da sua história e do seu património.
Para os Belenenses, começar da última divisão distrital foi um passo de grande coragem, porque foi uma escolha sua e não uma consequência desportiva. No meio de tudo isso, manteve-se o assédio constante de uma SAD incapaz de aceitar a escolha dos sócios, a vontade do património social do clube, aquele que é o seu coração.
Ignorando que os clubes são feitos por pessoas, por sócios, a empresa de Rui Pedro Soares, que havia já registado como BSAD a equipa que ocupa um lugar na I Liga, sem qualquer base social, sem património, sem história, tentou anular a venda dos 10% das ações que o Belenenses ainda detinha dessa sociedade desportiva (um mínimo exigido por lei para a constituição da SAD) e que resolveu alienar.
O clube, com um parecer favorável de uma das maiores especialistas em matéria de sociedades comerciais, e em especial em sociedades desportivas, Maria de Fátima Ribeiro, não encontrou na lei, como será de fácil confirmação, qualquer impedimento à venda daquelas ações. Mas os acionistas maioritários, que olham para o desporto como uma mercadoria e para o complexo do Restelo como uma oportunidade de negócio, não querendo este resultado, recorreram aos tribunais para suspender a venda das ações. Uma vez mais, os tribunais negaram a intenção da SAD.
Apesar dos esforços da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) para serenar os ânimos entre as duas organizações (no início deste ano, a FPF tinha obtido um acordo entre as partes para a suspensão de todas as ações judiciais), o nome do Belenenses continua a ser utilizado de forma abusiva.
O clube acabou por exigir o cumprimento de decisões judiciais passadas, mas um erro processual não permitiu que esta pretensão fosse, para já, procedente. Parece, porém, inevitável a condenação de várias entidades que continuam a usar as marcas do Belenenses para identificar uma empresa que detém uma equipa de futebol na I Liga.
A própria Liga de Clubes tem sido responsável por essa violação das decisões judiciais, mesmo tendo conhecimento de todo o processo. Essa prevaricação é impulsionada por alguma comunicação social, incluindo o serviço público de televisão, que continua a associar o nome do Belenenses à sociedade anónima.
Tendo em conta as práticas pouco claras e alguma falta de transparência por parte da SAD, os sócios sentem que o nome do clube está a sofrer uma agressão e seria difícil reagir de forma pacífica. As caixas de comentários dos jornais, sobretudo nas redes sociais, enchem-se de discussões e trocas de insultos. Os jornais vão ignorando e continuam a contribuir para uma confusão perfeitamente evitável, mas que é conveniente para quem gere milhões de euros.
Compreende-se que a opção dos sócios, a sua escolha, faça alguma confusão a quem está de fora. Abdicar do status quo é algo impensável dentro da nossa sociedade. A admiração por um clube com o palmarés do Belenenses sair para a estrada ao domingo à tarde, para jogar com clubes que o adepto de futebol de primeira divisão considera menores, é uma reação à qual nos vamos habituando, no Restelo, e à qual respondemos com a bonomia possível.
Porque a alegria que sentimos nesses domingos, aquilo que temos aprendido com os outros clubes, o carinho e a amizade com que somos tratados em todos os campos e o nosso contributo possível, levando milhares de pessoas a recintos sem tanta massa adepta, tudo isso vale por todo o status quo do mundo. Com o tempo, o Belenenses será o único clube português campeão em todas as divisões e sê-lo-á por escolha própria.
«O percurso que o Belenenses escolheu fazer é, também, uma forma de reclamar esse lugar associativista e popular do futebol, mostrando como é possível devolver a alegria às ruas, o prazer do convívio, a competição sem disputas mediáticas que vêm de fora para dentro dos clubes.»
O sol de outono está, agora, mais forte e a subida da Aliança Operária custa mais um pouco. A polícia começa a rondar, desconfiada, mas a marcha vai seguindo até à Tapadinha onde, infelizmente, não se vê ninguém.
Os muros do estádio do Atlético são altos, impedindo-nos de ver o jogo. Subimos a colina e tentamos um ponto mais alto com vista para o relvado. Nada. O jogo vai decorrendo com transmissão em duas plataformas1 online dedicadas ao desporto popular. Descemos novamente para a Tapadinha e espalhamo-nos ao longo do parque de estacionamento, sempre observados pela PSP. Lá de dentro, confirmam-nos que a nossa voz é ouvida e, pouco depois, os gritos de golo. Mais uma vitória na primeira divisão distrital, mais um degrau.
Num ano atípico, sem público, receamos que o apoio dos adeptos faça falta aos jogadores. Não cremos que esta proibição de jogos com público seja apenas justificada pela pandemia.
Há vários indícios de um ataque concertado contra adeptos organizados e contra a alegria do futebol popular. Esse ataque está materializado no Cartão de Adepto, um instrumento segregacionista que levanta sérias dúvidas constitucionais. Acresce ainda que neste mundo do futebol-negócio, estádios cuja receita não paga sequer a despesa não serão convenientes para as SAD. Os direitos televisivos e a publicidade são suficientes para quem não compreende o futebol como uma atividade desportiva emancipadora das comunidades.
O percurso que o Belenenses escolheu fazer é, também, uma forma de reclamar esse lugar associativista e popular do futebol, mostrando como é possível devolver a alegria às ruas, o prazer do convívio, a competição sem disputas mediáticas que vêm de fora para dentro dos clubes. Cada vez mais livre do seu passado recente, o Belenenses concentra-se, agora, nas competições e pensa sobretudo num futuro consagrado e popular.
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