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Como nossos pais

Um ano está para fazer desde a última vez que ao meu pai foi permitido almoçar com os filhos, passear na rua, tomar um café, dizer tontarias em família.

Idosa à janela. Bombarral, 17 de Fevereiro de 2021
Os dias foram sendo passados assim. Sem o calor do abraço, sem o carinho do beijo. Sem a dignidade de decidir.CréditosManuel de Almeida / LUSA

Foi com o meu pai que visitei o jardim zoológico pela primeira vez. As ruínas de Conímbriga, Viana do Castelo, Guimarães, a Régua, entre outros tantos sítios. Foi pela mão do meu pai que participei pela primeira vez nas jornadas de trabalho da construção da Festa do Avante!. Na escola primária, foi o meu pai que me ajudou a montar um pequeno jornal dos alunos, onde já questionávamos os atrasos das obras na área circundante à escola. O meu pai, homem curioso, desapegado dos bens materiais e amante da cultura, da música, das terras e dos povos, vive hoje numa estrutura residencial de apoio a idosos. A vida, a vida dele assim o ditou. Tem 71 anos e o AVC, do qual já recuperou, não o impediu de continuar a contar histórias.

«Ultimamente, não tem havido espaço para histórias nem malandrices. As conversas, ora cara a cara ora na internet, foram mais pesadas e o tempo, sempre cronometrado, foi-se gastando; um ano, mais coisa menos coisa»

Conta uma, de que gosto particularmente, sobre o meu bisavô, nos seus tempos de emigrante em França. O meu pai usa esta história para falar de um povo que cultiva a arte do desenvencilhar. Então, ao meu bisavô, certa vez em França, pela primeira vez numa obra, foi-lhe dada a tarefa de construir um pequeno muro. Como a ferramenta tardava e o parco conhecimento da língua não ajudava, o meu bisavô começou a fazer o muro com o que tinha à mão. Quando o encarregado francês apareceu com a ferramenta, já o muro ia alto. Deu-se um momento de tensão entre os dois mais um colega que ia traduzindo a conversa. Dizia o encarregado que «agora vai ter que se deitar o muro abaixo que não está aprumado, que desperdício, ó homem que foi fazer». E o meu bisavô lá explicava que não, que o muro estava bem; que, na falta de ferramentas, tinha usado uma malga com água para verificar o nível e que, com uma pedrinha atirada de cima, se tinha certificado do alinhamento dos tijolos.

O meu pai conta histórias sobre tudo um pouco, mas, nos últimos anos, mais da Guiné, onde foi voluntário à força nos anos 70, às custas do Fascismo. Iluminam-se-lhe os olhos, abre um sorriso traquinas e lá nos conta mais umas peripécias. Entre feitos e feitios, é uma pessoa genial que, aos 71 anos, conserva a beleza da ingenuidade de uma criança com a matreirice e o voluntarismo de um adolescente. Foi sempre assim e não seriam os anos a mudá-lo.

Ultimamente, não tem havido espaço para histórias nem malandrices. As conversas, ora cara a cara ora na internet, foram mais pesadas e o tempo, sempre cronometrado, foi-se gastando; um ano, mais coisa menos coisa.

Um ano está para fazer desde a última vez que ao meu pai foi permitido almoçar com os filhos, passear na rua, tomar um café, dizer tontarias em família.

Os dias daqueles que têm mais de 60, mais de 70, mais de 80, foram sendo passados assim: sem brincadeira, nem passeio, nem conversa. É assim para aqueles que vivem em lares e para aqueles muitos milhares que vivem sozinhos. Sem o calor do abraço, sem o carinho do beijo. Sem a dignidade de decidir.

Quase doze meses depois de o Governo ter decretado o primeiro estado de emergência, pergunto-me se o último ano foi mesmo de vida, se foi mesmo vivido. Não soube a vida; foi antes uma espécie de purgatório. Pergunto-me se desistimos de viver; se tudo aquilo de que abdicamos no último ano valeu a pena.

Pergunto-me se um país pode abdicar tão facilmente da vida. Se uma nação que valoriza os seus trabalhadores, e cujo objetivo fundamental é o bem-estar dos seus cidadãos, lhes pode suspender a vida.

Lembro-me do vídeo que circulou na internet de um agente de segurança a mandar uma mulher mais velha para casa com violência. Recordo a pressão praticamente consensual, no início de tudo isto, sobre os mais velhos, para que não saíssem – que era para o bem deles que lhes falávamos alto e que por eles decidíamos.

Primeiro, a culpa vestiu-se de anos; depois, virou-se para a juventude rebelde que se juntava nas ruas; mais recentemente, atirou-se às famílias que se juntavam em convívios ao domingo ou que jantaram na noite de Natal.

«pergunto-me se o último ano foi mesmo de vida, se foi mesmo vivido. Não soube a vida; foi antes uma espécie de purgatório. Pergunto-me se desistimos de viver; se tudo aquilo de que abdicamos no último ano valeu a pena»

Lembro-me que, no verão, o bicho não explicava o acréscimo de mortes – então alguém explicou que era o calor: um pico de calor que matava muitos velhinhos. Mas em Janeiro, quando as coisas apertaram, a terrível vaga de frio que entrou casa adentro não teve nenhuma importância – o problema era afinal o Natal. Não importou para as explicações que as nossas casas sejam de construções fracas ou que não tenhamos aquecimento ou dinheiro para o pagar – estas coisas não têm influência nenhuma nos problemas respiratórios e nos sistemas imunitários, como se sabe.

Recordo também que, no início, ainda o Governo andava de lá para cá sem saber muito bem o que fazer, já as pessoas na rua usavam máscaras e desinfetavam as mãos. Malditos portugueses, sempre tão insurretos e pouco civilizados!

Lembro-me que, a certa altura, se afirmou que, na falta de mãos ou estrutura, se obrigaria os privados a ajudar no combate à pandemia. Ora, a requisição transformou-se em contrato chorudo, enquanto aos pais que ficaram em casa com crianças pequenas se roubou 34% do salário.

Lembro-me ainda do choro de Agosto pelo turistar dos ingleses. A quem lhes suplicou, não foi atribuída nenhuma culpa.

Quando se vive num país em que mais de um milhão e meio de pensionistas vive com menos de 300 euros, não nos devia admirar que, em apuros, se culpe o pobre, o velho, o que vive só do seu trabalho.

O meu pai trabalhou muitos anos, muitos mais anos do que diz o registo da Segurança Social. Em muitos desses anos, o patrão escusou-se a descontar e, quando chegou a altura, a reforma ficou nos 300 e poucos euros. Os governos não corrigiram a situação – quando muito, vão dando borlas aos patrões que se dispensam a descontar, aumentando taxas e taxinhas e deixando que os preços da água, da luz e da comida aumentem sem parar.

Não sei se na Suécia há pensões de 300 euros. Também não tenho a certeza se as casas são boas, mas imagino que o aquecimento não deva ser um luxo como em Portugal, afinal o país chega a temperaturas bastante baixas no inverno. Parece que morreu muita gente na Suécia atacada pelo bicho – diz que foram mais de 12 mil pessoas. Por aqui, já ultrapassamos as 16 mil e há um ano que o meu pai não almoça com os filhos. Parece também que na Suécia, tão atacada pelo bicho, a mortalidade não-Covid não subiu. Parece que se continuou com a vida normal das consultas, cirurgias e outras coisas. Por aqui, morreu muita gente sem ser do bicho – diz que até houve gente que teve enfartes e não foi às urgências. Tão insurretos os portugueses!

Acho que está na hora de almoçar com o meu pai. Vou telefonar para o lar e pressionar. O homem até já está vacinado, por que raio não há-de sair da clausura?

Porque é que não saímos todos da clausura? Quando dermos por ela, a prisão não é só lá fora: instalou-se na cabeça e aí é que já não nos libertamos.

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