É um tipo de liberalismo onde o que é preciso é que o dinheiro público corra com liberalidade para os bolsos do grande capital.
Vem isto a propósito da última «reivindicação» do grande capital apresentada na Comunicação Social ao seu serviço: os capitalistas do negócio da saúde querem ser indemnizados por, em 2020, o seu negócio ter dado prejuízo.
Para os mais distraídos, lembramos que em 2020 o País enfrentou uma pandemia. E os grupos privados da Saúde até ganharam bom dinheiro com ela. Mas não o suficiente para compensar a redução operacional.
Ora, qual a justiça deste pedido? A este tipo de perguntas, a resposta deveria ser sempre «depende». É que há dois lados antagónicos em (quase) todos os problemas relevantes. É evidente que, do ponto de vista do grande capital, é completamente justo que o Estado compense os seus prejuízos (depois de já ter garantido o essencial dos seus lucros). Mas olhemos do ponto de vista do resto da humanidade. Porque há-de o Estado assumir os prejuízos de grupos económicos que, quando têm lucros, os repartem entre os seus accionistas?
O Grupo Luz Saúde terá reivindicado do Estado uma compensação financeira de 45 milhões de euros. Ora, mesmo com os prejuízos de 2020, este grupo ganhou no negócio da Saúde 123,7 milhões de euros nos últimos dez anos. O mesmo se poderá dizer do Grupo Luz Saúde, apesar de não se saber exactamente quantos milhões reclamou agora.
A notícia, se a Comunicação Social não servisse para criar o quadro ideológico que interessa ao grande capital, poderia ser com naturalidade: «Glutões da saúde, depois de embolsarem 269,7 milhões de euros, ao primeiro tropeção pedem apoio do Estado», ou, num estilo mais sério, «Privados pedem apoio ao Estado para continuarem a distribuir milhões aos seus accionistas».
A amoralidade deste pedido fica ainda mais destacada quando se procura conhecer as contas do terceiro reclamante de um reequilíbrio financeiro: na ausência de contas públicas da Lusíada Saúde, fomos analisar as contas da sua dona, a empresa norte-americana UnitedHealth, cuja principal actividade é o negócio da saúde nos EUA. E chegamos à conclusão de que os capitalistas que reclamam milhões de euros do Estado português para «equilibrar» as suas contas tiveram em 2020 qualquer coisa como 15 769 milhões de dólares de lucros (sim, quinze mil, setecentos e sessenta e nove milhões de dólares) e em dez anos ganharam qualquer coisa como 87 mil milhões de euros (sim, 87 seguido de nove zeros!).
A maioria deste resultado é conseguido nos próprios EUA, onde o negócio da Saúde garante este tipo de lucros a um pequeno lote de capitalistas, ao mesmo tempo que o Estado americano gasta mais do que o Estado português e o povo americano (excepto os mais ricos) tem um pior acesso à Saúde do que os mais pobres dos portugueses.
Note-se que a relação entre os lucros ou prejuízos dos grupos económicos não está na origem dos pedidos de compensação financeira noticiados. Se aqui gastamos tempo a desmontar a validade do «argumento», é porque o mesmo foi usado para validar perante a opinião pública o pedido. O pedido é apenas relativo às PPP [parcerias público-privado] em que estes grupos capitalistas participavam e destina-se a «equilibrar financeiramente» as ditas PPP à luz dos contratos assinados entre o Estado e estes grupos capitalistas.
Importa assim perceber por que razão estes grupos capitalistas acham que podem conseguir esbulhar este dinheiro ao Estado português. E a razão é muito simples: porque sabem que têm uma alta probabilidade de o conseguir graças ao facto de esses contratos permitirem o recurso à figura dos Tribunais Arbitrais para «julgar» este tipo de reclamações de «reequilíbrio financeiro».
Tribunais Arbitrais1
Aliás, na situação em que vivemos, é caso para dizer que um Administrador de uma PPP ou de uma concessão pública que não faça um pedido de reequilíbrio financeiro junto de um Tribunal Arbitral corre o risco de ser despedido por incompetência (ou inaceitáveis, para os accionistas, pruridos morais).
A realidade é que o Estado é quase sempre condenado a pagar uma parte das verbas reclamadas, mesmo nas situações mais injustificadas.
Vejamos algumas situações concretas mais clarificadoras do impacto deste tema:
– No final do primeiro trimestre de 2018, o Estado já tinha perdido 661 milhões de euros em litígios com concessionárias de PPP rodoviárias decididos por via de arbitragem.
– No final de 20202, só das PPP rodoviárias, os pedidos ao Estado colocados em Tribunais Arbitrais representavam já 639 milhões de euros. E ainda não tinham entrado os pedidos de todas as concessionárias pelas «perdas» durante a pandemia.
– Os CTT exigiram a um Tribunal Arbitral serem compensados pelo Estado pelas perdas durante a pandemia (apesar de terem tido lucros) e por terem sido obrigados a ficar com uma concessão que dá lucro.
– Um Tribunal Arbitral conseguiu condenar o Estado a pagar 192 milhões de euros à concessionária do TGV por lucros não concretizados, e condenou o Estado por cumprir uma decisão... do próprio Tribunal de Contas.
– Mesmo no sector da Saúde, já várias PPP tinham merecido o recurso a estes Tribunais Arbitrais, com as condenações não transitadas em julgado no final de 2020 a ultrapassarem os 60 milhões de euros (PPP do Hosp. Loures, PPP do Hosp. Braga, PPP do Hosp. Cascais).
– No sector das Águas há igualmente exemplos gritantes, como os que terminaram com a condenação em Tribunal Arbitral da CM Marco de Canavezes a pagar 16 milhões de euros e da Câmara Municipal de Barcelos de pagar 110 milhões de euros a grupos privados.
O que é revelador da promiscuidade entre poder político e poder económico em que vivemos é o facto de estes Tribunais Arbitrais continuarem a servir para esbulhar o Estado, mesmo depois de já terem sido denunciadas publicamente na própria imprensa do sistema, por exemplo, num trabalho aprofundado de Inês Serra Lopes publicado no Expresso. Mas também depois de dois projectos-lei do PCP, para proibir o recurso a estes «tribunais» para «julgar» litígios entre o Estado e os grupos económicos, terem sido discutidos e chumbados por PS/PSD, pelos mesmos que no Governo assinam contratos com estes grupos e cujos ministros e secretários de Estado, quando saem do governo, vão administrar estes grupos.
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