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ANA: A auditoria fantasma

Poucos documentos oficiais são tão arrasadores para uma privatização como a Auditoria 16/2023 do Tribunal de Contas (TdC) à privatização da ANA.

CréditosJoão Relvas / Agência Lusa

Nela, o TdC atreve-se a fazer as contas, e expõe não apenas as fraudes e crimes cometidos neste processo em concreto (o que já de si era suficiente para enfurecer a Vinci e o PSD), mas acaba por colocar em causa o próprio conceito de privatização aplicado a sectores estratégicos (o que enfureceu toda uma classe dominante).

Os técnicos de comunicação ao serviço da Vinci lembraram-se então de criar a perfeita cortina de fumo, e lançaram uma operação para tentar descredibilizar o relatório do TdC. Criaram uma Auditoria Fantasma. Plantaram notícias, encomendaram podcasts e reportagens, garantiram artigos da sua opinião. Criaram a tese dos dois Relatórios de Auditoria, um de 2016 e outro de 2023, um a favor da privatização e o outro contra, um anulando o outro. Essa tese assenta numa mentira já desmentida pelo próprio TdC: não há dois relatórios nem duas auditorias. Nas palavras do próprio Presidente do TdC, em carta enviada para a Assembleia da República a 31 de Maio de 2024, sobre o texto que ANA e PSD chamam de Auditoria de 2016: «(1) O relato dos Auditores de 2015 não é da autoria do Tribunal, que sobre o mesmo não se pronunciou. Trata-se de uma peça intercalar, em construção, não constituindo, pois, um relatório de auditoria do Tribunal. (2) O referido processo n.º 16/2013-DA IX foi cancelado por deliberação do Plenário da 2.ª Secção de 25 de janeiro de 2018, com o fundamento de que "os trabalhos desenvolvidos não apresentam suficiente consistência"

«O TdC atreve-se a fazer as contas, e expõe não apenas as fraudes e crimes cometidos neste processo em concreto (o que já de si era suficiente para enfurecer a Vinci e o PSD), mas acaba por colocar em causa o próprio conceito de privatização aplicado a sectores estratégicos (o que enfureceu toda uma classe dominante).»

Como é que, depois de um esclarecimento destes, um «jornalista» pode continuar a falar em duas auditorias, e a contrapor uma à outra1?

A coisa é tão ridícula que um «jornalista», repetindo acriticamente o guião da Vinci, até sublinha que o Relatório de 2023 teve cinco votos contra (desvalorizando que necessariamente teve mais a favor, pois foi aprovado), enquanto finge ignorar que o dito Relatório de 2016 não foi sequer votado, e quando houve uma votação, o TdC cancelou o processo de Auditoria porque «os trabalhos desenvolvidos não apresentam suficiente consistência».

Mas não caíamos na armadilha principal, que se destina a afastar a discussão pública do conteúdo concreto da única auditoria concluída.

É que o Relatório da Auditoria do Tribunal de Contas à Privatização da ANA (o único, o de 2023):

– Critica o facto de o valor da ANA ter sido alterado durante o próprio processo de privatização, através da assinatura do contrato de concessão em moldes diferentes aos apontados na lei, e através da alteração da forma de determinação das taxas. É verdade? É grave?

– Desmascara o mecanismo central da fraude – o contrato de concessão ser negociado com os futuros compradores, mas assinado com a ANA pública sem qualquer auditoria nem informação pública, como um mero contrato entre duas entidades públicas. Quando o valor da ANA é essencialmente o valor gerado por esse contrato de concessão. É verdade? É grave? 

– Aponta que a ANA foi vendida por 1,27 mil milhões e não pelos 3,08 mil milhões de que falou o Governo. É verdade? É grave?

– Diz que a ANA foi vendida sem a avaliação prévia exigida pela Lei. É verdade? E consequências?

– Calcula em mais de 20 mil milhões as perdas para o Estado Português com a privatização da ANA. As contas estão bem feitas? É grave?

– Relaciona a alteração da posição da ANA (que num mês passou de considerar a proposta da Vinci como a pior para passar a considerá-la a melhor, mesmo «entusiasmante») com o facto de nesse intervalo a multinacional ter publicamente contratado os seus administradores para continuar a gerir a empresa depois da privatização. É verdade? Não é grave que quem decidiu – do ponto de vista técnico – sobre o vencedor da privatização estivesse com emprego prometido pelo «comprador»? Com um salário e prémios que passaram a ser segredo?

– Diz que há falsificação de documentos, descontos ilegais, incongruências na documentação, e outras tropelias. Não se deve investigar?

O Relatório do TdC é completamente esmagador. E é o Tribunal de Contas. Num país democrático, os intervenientes estariam a ser investigados e julgados, e eventualmente presos, e o contrato gerado por esta fraude estaria anulado. E a Assembleia da República estaria com uma Comissão de Inquérito a este processo – como propôs o PCP – em vez de andar a chafurdar numa CPI «às gémeas» que rasteja sobre tudo menos sobre a questão principal, que o PCP tem colocado: porque custa dois milhões de euros um remédio que algumas crianças necessitam?

«Num país democrático, os intervenientes estariam a ser investigados e julgados, e eventualmente presos, e o contrato gerado por esta fraude estaria anulado.»

Em vez disso, a Comunicação Social Dominada e o poder político ao serviço das multinacionais preferem desvalorizar o Relatório do TdC à Privatização da ANA, inventam uma Auditoria Fantasma, e vão-nos dizendo que temos de respeitar o Contrato de Concessão, e que a Vinci tem direitos, e que não podemos ter o Aeroporto que queremos onde queremos, e que temos de pagar o que a Vinci nos pedir, e que é tudo inevitável.

Mas não é inevitável. Claro que quem beneficia de uma privatização destas fica com muito poder. Um poder que permite comprar muita coisa. É essa a dificuldade. Mas é sempre essa a dificuldade na luta de classes, e pur si muove!    

  • 1. O Eco de 7/7/2024: «Auditoria de 2016 elogia venda da ANA e contraria conclusão de 2024» (Além de falar de uma auditoria que, repetimos, não existiu, o autor até finge acreditar ser possível em 2016 contrariar as teses que seriam escritas 8 anos depois). CNN, 14/4/2024: «Privatização da ANA: Tribunal de Contas em risco de Inquérito Parlamentar» (É o TdC que vai ser investigado, não a privatização. Brilhante! Este título saiu em vários órgãos.)

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