No fim-de-semana passado, o Ministério uruguaio da Defesa revelou que tinham sido encontrados arquivos militares com informações sobre a repressão, na base de artilharia número cinco de Montevideu, que funcionou como centro de detenção de presos políticos e onde estiveram detidas cerca de 100 pessoas.
De acordo com diário El País, a que a agência Prensa Latina faz referência, as informações, posteriores ao golpe de Estado de 1973, estão contidas em cinco livros e dois dossiês, e dizem respeito a ordens e investigações de pessoas, ao Serviço de Informação e Defesa (SID) e ao Órgão Coordenador de Operações Anti-subversivas (OCOA).
Referiu a mesma fonte que os documentos, previamente digitalizados, iriam ser entregues, ainda ontem, ao presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, e ao ministro da Defesa, Javier García, bem como ao procurador-geral, Jorge Díaz, e à Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH).
A associação Mães e Familiares de Uruguaios Presos Desaparecidos acusa as Forças Armadas de ocultar informação sobre atrocidades cometidas na ditadura (1973-85), ao apresentar novos documentos. Um coronel preso por crimes na ditadura do Uruguai admitiu ter matado e torturado, e confirmou um voo clandestino com prisioneiros na Argentina que estavam desaparecidos, segundo documentos oficiais divulgados na sexta-feira passada. «Tive de matar e matei e não me arrependo. Tive de torturar e torturei», disse o coronel reformado Gilberto Vázquez num Tribunal de Honra militar em 2006 e cujas actas foram agora reveladas, informa a agência AFP. «Perco muitas noites de sono ao lembrar-me dos tipos que matei à paulada, mas não me arrependo», acrescentou Vázquez, que foi condenado, há 14 anos, pelo homicídio de 28 uruguaios capturados em 1976 na Argentina. Os autos do processo foram obtidos pela organização Mães e Familiares de Presos Uruguaios Desaparecidos, que os disponibilizou ao Senado. Entretanto, o organismo teve acesso a um segundo pacote de documentos, na sequência de um pedido efectuado ao Ministério da Defesa, deferido pelo ministro da tutela. Neste segundo pacote, aparece uma carta de Gilberto Vázquez em que este admite ter sido felicitado por altas patentes militares por ter «executado numerosas pessoas, sequestrado e oprimido em vários países», revelaram representantes do organismo, esta terça-feira, numa conferência de imprensa em Montevideu. Por isso, os Familiares dos Presos Desaparecidos pediram ao sistema político que dê «sinais claros» de que «os militares devem prestar contas à Justiça». O Tribunal de Honra Militar declarou Gilberto Vázquez culpado «por ter ofendido a honra [das Forças Armadas]», mas «não por todas as atrocidades que confessou no tribunal e na carta assinada», disse o porta-voz da associação, Ignacio Errandonea. «Onde está a honra dos generais? A resposta do comando foi que se comunicaria oportunamente, quando a sua obrigação era denunciar imediatamente à Justiça. Estes generais continuam a esconder os factos à Justiça e hoje continuam a reclamar porque estes crimes caducaram porque passou muito tempo e são velhinhos», denunciou o dirigente. Errandonea destacou que as Forças Armadas queriam combater estes documentos e que a «Justiça deve investigar tudo, a fundo». «Entendemos que o mais grave de tudo o que foi revelado nestes processos é o ocultamento, por parte das Forças Armadas, de todos os crimes que cometeram, o continuar a esconder os nossos familiares, porque, hoje em dia, os nossos familiares continuam a ser sequestrados pelos militares», frisou Errandonea, citado por La Diaria. O porta-voz denunciou que, desde o fim da ditadura, houve sempre um poder paralelo ao democrático e que «os generais de agora continuam a amparar a impunidade e os crimes da ditadura». Por seu lado, Elena Zaffaroni, outra dirigente da associação, lamentando a impunidade dos militares, que perdura e «nos envergonha», sublinhou a persistência da denúncia, bem como a tomada de consciência crescente entre as gerações mais novas. Convidou ainda todos a participar numa concentração, esta sexta-feira, às 18h00, na Praça Libertad, na capital uruguaia, «com as fotos dos nossos desaparecidos», pelo fim da impunidade, pela verdade e por justiça. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Internacional|
Familiares de desaparecidos no Uruguai exigem fim da impunidade
«Os nossos familiares continuam a ser sequestrados pelos militares»
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Cabe-lhes verificar a importância dos escritos encontrados, que abrangem o período entre 1972 e 1976, para ligar nomes, operações ou investigações e proceder da forma que entenderem adequada.
Para Elena Zaffaroni, uma das dirigentes da associação Mães e Familiares de Uruguaios Presos Desaparecidos, os documentos encontrados confirmam que, desde o regresso à democracia, em 1985, «a informação existe», sendo que «continua espalhada por todos os quartéis que operaram durante a ditadura».
Zaffaroni defendeu que as Forças Armadas têm de mudar de atitude e exigir às suas unidades que «façam aparecer tudo quanto permita chegar ao fundo» do passado recente e fazer justiça.
A revelação destes documentos agora encontrados ocorreu 11 dias antes do 20 de Maio, data em que habitualmente se realiza a Marcha do Silêncio, para reivindicar a verdade sobre o paradeiro dos presos desaparecidos e o que se passou na ditadura. Este ano, a marcha terá um formato virtual, devido à incidência da pandemia de Covid-19.
Arquivos militares estão a ser avaliados
O procurador-geral do Uruguai, Jorge Díaz, revelou que os documentos militares sobre a ditadura contêm informação valiosa sobre crimes perpetrados nesse contexto.
A busca de memória e verdade tem no portal Sitios de la Memoria Uruguay uma das suas trincheiras. Um recurso didáctico, construído à base de militância, com informação sobre vítimas, verdugos e processos. A punição dos verdugos da última ditadura, no Uruguai, continua a ser um processo lento e parcial, afirma o diário argentino Página 12 na sua edição de ontem. No entanto, a busca de memória e verdade foi criando os seus próprios caminhos, à força de militância. Um deles plasmou-se no portal Sitios de Memoria Uruguay, onde se pode encontrar um mapa interactivo do país repleto de informação sobre cada lugar onde o terrorismo de Estado deixou a sua marca. «O objectivo do projecto é identificar, visibilizar, ligar e disponibilizar a informação sobre os locais a partir de onde se organizaram e cometeram crimes contra a humanidade», informa a página. Num primeiro momento foram alfinetes num mapa de papel. Esse foi o gérmen do Sitios de Memoria Uruguay, segundo contam ao Página 12 os criadores da página. Estava-se em 2018, no governo do recentemente falecido Tabaré Vázquez. O Congresso uruguaio tinha aprovado uma lei que possibilitava a criação de espaços da memória no país. «Nessa altura começámos a pensar uma página que concretizasse a possibilidade de um mapeamento e uma geo-referenciação, incorporando informação significativa sobre as lutas por Memória, Verdade e Justiça», refere a investigadora Mariana Risso. Uma vez traçado o plano, era preciso reunir os materiais. «Existiam muitas fontes dispersas que tinham sistematizado cada uma por seu lado a informação sobre cárceres de presos políticos, centros de detenção clandestinos, uma delas, muito importante, levada a cabo pela central sindical PIT-CNT. Aquilo que fizemos foi incorporar todas essas fontes num espaço interactivo», comenta Rodrigo Barbajo, líder da parte informática do projecto. A página viu a luz pela primeira vez a 1 de Outubro do ano passado. Os alfinetes digitalizaram-se e agora aparecem como pontos coloridos num mapa virtual. «Uma pessoa pode procurar o seu bairro e descobrir que a poucos quarteirões da sua casa existiu um Centro Clandestino de Detenção e Tortura. Nós localizámos mais de 140 no mapa, quando apenas uns 40 estão identificados no seu lugar físico», conta María Eugenia Sotelo, outra das responsáveis do projecto. Além disso, pode-se aceder ao ficheiro completo dos 176 uruguaios que continuam desaparecidos, bem como dos 192 que foram assassinados pela violência estatal no Uruguai, na Argentina e noutros países da região. «A maior parte das detenções e desaparecimentos de pessoas de nacionalidade uruguaia deu-se no contexto do Plano Condor, e desapareceram na Argentina», refere Risso. Em breve, o site publicará um apartado especial para as vítimas da acção repressiva coordenada pelas ditaduras do continente. Outra característica do terrorismo de Estado uruguaio é que muitas das suas vítimas tiveram de atravessar períodos de prisão e torturas prolongados. «Isto fez com que a Amnistia Internacional informasse em 1978 que o Uruguai era o país com mais presos políticos por habitante. Aqui, houve pessoas que estiveram 12 ou 14 anos presas», diz Sotelo. Um deles foi o ex-presidente José «Pepe» Mujica, que, com outros dirigentes do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, sofreu tormentos físicos e psicológicos durante 13 anos. Recolher a informação de fontes tão diversas era e é o grande desafio. Trata-se de informação que na maioria dos casos não está sistematizada. O Uruguai enfrentou múltiplas barreiras para começar a conhecer a verdade sobre os crimes cometidos pela ditadura liderada por Juan María Bordaberry em 1973, bem como sobre a acção ilegal do Estado durante o período que antecedeu o golpe. «Os entraves judiciais foram sistemáticos e persistentes, apoiados em todos os governos, mais fortemente no período anterior à chegada da Frente Ampla ao poder», aponta Risso. Depois do regresso à democracia, em 1985, os militares uruguaios conseguiram a sua amnistia com a «Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado», aprovada em 1986 sob ameaça de um novo levantamento militar. «É uma lei sinistra porque ainda obrigava o Poder Judicial a perguntar ao Poder Executivo se podia julgar determinado crime contra a humanidade», defende a investigadora. Houve dois plebiscitos no Uruguai que tentaram acabar com esta lei. O de 1989 teve 42,4% dos votos, e o de 2009 alcançou 47,7%. Ou seja, nenhum conseguiu passar a barreira dos 50% para deitar abaixo a lei. No entanto, em 2005, durante a primeira presidência de Vázquez, deu-se um primeiro passo para começar a julgar os militares. «O presidente permitiu que se investigassem os desaparecimentos forçados. Depois, em 2011, aprovaram-se leis que na prática acabam por revogar a "Ley de Caducidad"», diz Risso. Desde 2011, teve início uma enorme reactivação de processos por tortura e prisão prolongada. Até à data, houve 281 processos no Uruguai e foram indiciados e/ou condenados 46 verdugos. Destes, 32 faziam parte das Forças Armadas. Só dois membros do governo civil da ditadura foram condenados. Um deles foi Bordaberry, condenado a 30 anos de prisão. Esteve preso desde 2006 até morrer, em 2011. A lista completa dos processos está disponível na página. Nos últimos anos, no Uruguai, começou a ganhar maior visibilidade uma retórica militarista. Guido Mannini Ríos, ex-comandante em chefe do Exército, aparece à cabeça deste movimento que nega as atrocidades cometidas durante a ditadura. O seu partido, Cabildo Abierto, integra a Coalición Multicolor que levou à presidência Luis Lacalle Pou, em 2019. «É algo que, se sempre existiu, agora tem uma representação parlamentar muito forte, e no Poder Executivo. O horror tenta sistematicamente ser negado, como uma forma de que os seus executantes possam continuar a ter apoio político-social», defende Risso. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Internacional|
Uruguai: o terror da ditadura plasmado num mapa interactivo
Território minado
Barreiras contra a verdade
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Em declarações à imprensa, disse que se apercebeu do facto depois de uma primeira leitura e que a avaliação vai prosseguir, para depois atribuir provas à Procuradoria especializada em crimes contra a humanidade imprescritíveis e a outras autoridades processuais, indica a Prensa Latina.
Por seu lado, o presidente da INDH, Wilder Tayler, referiu-se aos militares reformados que continuam sem comunicar aquilo que sabem sobre o período da ditadura (1973-1985).
Considerou apressado dizer que existe uma mudança de atitude por parte das Forças Armadas, porque, se assim fosse, «fariam um apelo público para que os militares retirados que têm algum tipo de informação a providenciassem voluntariamente e não nos obrigassem a investigá-la», disse.
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