Falar da pandemia Covid-19 é falar de tudo o que bruscamente se modificou no arranque da nova década, fazendo aflorar muitos antagonismos e contradições na forma de organização societária criada pelo domínio dos «mercados», tornando ainda mais obscura e desafiante a construção do futuro.
Pela importância histórica e repercussão multifacetada do acontecido, este é o primeiro de vários artigos que se seguirão sobre o tema, tendo como finalidade fornecer dados de análise dos primeiros tempos de evolução da Covid 19, relembrando marcos importantes da sua cronologia e a reacção dos diversos governos, países e organizações internacionais ao primeiro embate da pandemia, sem que ainda se saiba como e quando ela acabará.
No conjunto procurar-se-á caracterizar as opções assumidas face à sua propagação e perigosidade, sem esquecer a intensa batalha política e ideológica que fez aflorar estratégias egoístas e desumanas, que não hesitaram em distorcer totalmente a realidade e afrontar o conhecimento científico e as suas instituições mais prestigiadas.
Como afirma o conhecido jornalista e sociólogo Ignacio Ramonet, «já ninguém ignora que a pandemia não é só uma crise sanitária. É o que as ciências sociais qualificam como "acontecimento social total", no sentido que altera o conjunto das relações sociais e afecta a totalidade dos actores, das instituições e valores.»1.
Os reflexos da pandemia, que vão dos rápidos avanços na investigação científica ao forte impacto sócio-económico mas também à instabilidade e instrumentação políticas, fazem com que, para os analisar, valha a pena começar pelo princípio.
Seguindo a fita do tempo descrita, a 4 de Abril, no artigo «O papel da China ante o corona shock», publicado pela Globetrotter do Independent Media Institute, a Dra. Zhang Jixian, directora do Departamento de Medicina Respiratória da Província de Hubei, observou, entre 26 e 30 de Dezembro de 2019, sete doentes com febre alta e tosse que tinham visitado o mesmo mercado de frutos do mar. Os exames complementares descartaram gripe e outras viroses conhecidas.
As autoridades sanitárias de Hubei tomaram conhecimento do novo vírus a 29 de Dezembro, três dias depois dos primeiros casos de pneumonia atípica e, a 31 de Dezembro, a Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO) foi alertada pelas autoridades chinesas.
Também os doutores Li Wenliang (oftalmologista do Hospital Central de Wuhan) e Ai Fen (chefe do Departamento de Emergência) desempenharam um papel destacado nos avisos de alerta para o novo vírus na confusão dos primeiros dias, tendo sido repreendidos pelas autoridades locais que pensaram estar perante notícias falsamente alarmistas publicadas nas redes sociais.
A inicial atitude censória das autoridades (logo depois revertida) – que não teve qualquer influência na posição das instituições sanitárias oficiais da China – tem sido artificialmente empolada e largamente utilizada pela propaganda ocidental sinófoba.
Ainda segundo o mapa do tempo elaborado pela Globetrotter, no dia de Ano Novo (1-1-2020), o Centro Chinês de Controle de Doenças contactou o Dr. Robert Redfield, chefe dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, enquanto ele estava de férias e «O que ele ouviu chocou-o», escreveu o New York Times.
Uma semana mais tarde, no dia 7 de Janeiro de 2020, os cientistas chineses anunciaram o isolamento de um novo coronavírus.
Cinco dias depois, a 12 de Janeiro, partilharam a sequenciação da sua estrutura genética com a Organização Mundial de Saúde permitindo o seu uso sem barreiras a investigadores de todo o mundo, dando uma decisiva contribuição para o desenvolvimento de testes de diagnóstico e de uma vacina.
A 11 de Janeiro morreu o primeiro doente chinês por coronavírus, e a 20 de Janeiro, o doutor Zhong Nanshan – especialista em doenças respiratórias e líder na luta contra o SARS 1 (outra epidemia vírica) – afirmou que o novo vírus podia transmitir-se de pessoa a pessoa.
Três dias depois, a 23 de Janeiro, o governo chinês impôs o confinamento total da cidade de Wuhan (11 milhões de habitantes) e no dia seguinte a província de Hubei decretou o estado de alerta nível 1, iniciando o isolamento de cerca de 60 milhões de pessoas que se manteve por dois meses.
O primeiro artigo científico da autoria dos médicos e investigadores chineses sobre a Covid-19 foi pré-publicado online, a 24 de Janeiro de 2020, no conceituado New England Journal of Medicine (NEJM).
«A China considerou vantajoso o internamento destes doentes em hospitais de campanha com grande capacidade, proporcionando-lhes repouso, alimentação, higiene, distracções (jogos, filmes, TV), manutenção da condição física e outras formas de vida social que não teriam se estivessem sozinhos no domicílio. Assim evitavam também o cansaço e a depressão que o prolongado confinamento no domicílio pode causar (...)»
Nos dias seguintes foram construídos gigantescos hospitais de campanha e mobilizados cerca de quarenta mil médicos para o local entre os quais 1880 equipes epidemiológicas com cinco elementos cada.
A 2 de Abril de 2020, a conhecida revista médica The Lancet publicou um detalhado artigo de médicos chineses sobre os princípios e objectivos da sua estratégia de construção de hospitais de campanha para controlar, tratar e proporcionar uma vida social a milhares de pessoas com formas leves ou moderadas de Covid-19, inaugurando um novo tipo de resposta, impressionante e massiva, em saúde pública.2
A primeira característica destes hospitais foi a rapidez de construção. Aproveitando instalações já existentes (recintos desportivos, pavilhões de exposições e outras) cada «Hospital-abrigo Fangcang» demorou uma média de 29 horas (!) a instalar.
A segunda, é a sua escala massiva: em Wuhan, em três semanas, 16 hospitais Fancang ficaram operacionais proporcionando 13 000 camas para doentes de baixa e média gravidade com Covid-19.
A terceira caraterística é o baixo custo de manutenção, exigindo poucos médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde para monitorizarem a evolução de um grande número de doentes. Muito menos do que seria necessário se eles estivessem isolados nas suas casas, melhorando também o controlo clínico e tornando mais rápida e fácil a referenciação e transporte para os hospitais mais diferenciados – com cuidados intensivos e ventilação mecânica – dos casos que subitamente se agravam.
Essa foi uma opção diferente da de tratar doentes com manifestações leves ou moderadas em casa, maioritariamente escolhida por outros países (como Portugal).
A China considerou vantajoso o internamento destes doentes em hospitais de campanha com grande capacidade, proporcionando-lhes repouso, alimentação, higiene, distracções (jogos, filmes, TV), manutenção da condição física e outras formas de vida social que não teriam se estivessem sozinhos no domicílio. Assim evitavam também o cansaço e a depressão que o prolongado confinamento no domicílio pode causar e a dificuldade em assegurar apoio logístico e sanitário a um enorme número de doentes isolados e dispersos.
A impressionante escala e rapidez da resposta chinesa à pandemia, não se ficou por aí. Pouco mais de um mês depois do diagnóstico dos primeiros casos, «a 9 de Fevereiro, as autoridades de saúde tinham inspecionado 4,2 milhões de famílias (10,59 milhões de pessoas) em Wuhan; isso significa que eles inspeccionaram 99% da população, um exercício gigantesco».
«A velocidade da produção de equipamentos médicos, particularmente equipamentos de protecção para os trabalhadores médicos, era de tirar o fôlego. Em 28 de Janeiro, a China produzia menos de 10 000 conjuntos de equipamentos de protecção individual (EPI) por dia e, em 24 de Fevereiro, sua capacidade de produção excedia 200.000 por dia. Em 1 de fevereiro, o governo produziu 773 000 kits de teste por dia; em 25 de Fevereiro, produzia 1,7 milhão de kits por dia; até 31 de Março, 4,26 milhões de kits de teste eram produzidos por dia.»3
Estes números impressionantes só podem ser compreendidos num país como a China, com uma população de um bilião e meio de habitantes e uma organização sanitária e hábitos culturais próprios.
Além disso, conforme sublinha Ignacio Ramonet, «o relativo êxito destes países (Coreia do Sul, China, Taiwan, Hong Kong, Vietnam ou Singapura) contra a Covid-19, explica-se sobretudo pela experiência já adquirida na luta, entre 2003 e 2018, contra o SARS e o MERS, as duas epidemias precedentes causadas também por coronavírus».
«Nenhuma destas pragas (SARS-1 e MERS) chegou à Europa e aos Estados Unidos. O que também explica, em parte, a razão porque os governos europeus e dos Estados Unidos reagiram tarde e mal à pandemia.»4.
A rapidez com que foram partilhados os conhecimentos dos médicos chineses com centros de investigação de outros países, foi de imediato elogiada por epidemiologistas de todo o mundo.
A 21 de Janeiro, um dia depois de se saber que o vírus se transmitia entre humanos e três dias antes da primeira publicação chinesa no NEJM, o Prof. James Le Duc, director do Galveston National Laboratory da Universidade do Texas, escreveu na revista dessa importante instituição norte-americana:
«A rápida acção e a comunicação aberta da China está a ajudar o mundo a preparar-se para outra doença infecciosa potencialmente devastadora. Enquanto a situação evolui rapidamente, esta é a boa notícia que não vai aparecer nos cabeçalhos dos jornais».
A 20 e 21 de Janeiro de 2020, uma equipa da Organização Mundial de Saúde visitou Wuhan tendo, a 21, publicado um primeiro relatório sobre o que se tinha passado desde finais de Dezembro de 2019, passando a fazer comunicações diárias do que estava a acontecer.
Outra equipa da OMS, com 25 investigadores de diversas nacionalidades (entre os quais o norte-americano Clifford Lane, director do National Institute of Allergy and Infectious Diseases e do US National Institutes of Health), deslocou-se a Pequim, Guangdong, Sichuan e Wuhan, entre 16 a 24 de Fevereiro e, no seu relatório, deixou um elogio ao povo e ao governo chinês por terem feito todo o possível para deter a propagação do vírus, referindo que «diante de um vírus anteriormente desconhecido, a China lançou talvez o esforço de contenção de doenças mais ambicioso, ágil e agressivo da história».5
A OMS declarou oficialmente a situação de pandemia a 11 de Março de 2020, quando se tornou evidente que vários países tinham sido afectados.
Os países e regiões mais próximos, como a Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Macau, tomaram de imediato medidas drásticas de confinamento e protecção – como o uso generalizado de máscaras – seguindo o caminho adoptado pela China, conseguindo controlar eficazmente a primeira onda da pandemia, estabelecendo um padrão de comportamento a ser seguido por outros.
«O exemplar comportamento dos cientistas e autoridades chinesas tem sido alvo de uma campanha de desinformação por parte dos media ocidentais, seguindo a estratégia de Trump e associados de atacar a China, disfarçando os desastrosos resultados da sua própria gestão da pandemia condicionada pelos interesses mais egoístas dos "mercados".»
Ainda citando o Prof. James Le Duc, director do Galveston National Laboratory (USA), «de forma rápida, as autoridades sanitárias chinesas reconheceram o aparecimento de uma nova doença, isolaram de imediato os infectados e instituíram medidas impressionantes para limitarem a disseminação da doença e caracterizar o novo agente patogénico. E, ainda mais importante, foram transparentes na forma como partilharam as suas descobertas com o resto do mundo, permitindo que outras nações tomassem precauções e estivessem atentos ao aparecimento da nova doença. O genoma do novo vírus foi sequenciado e o seu fácil acesso aberto aos investigadores internacionais, possibilitando a rápida exploração de terapêuticas possíveis, desenvolvimentos na capacidade de diagnóstico e de investigação epidemiológica.»6
Em finais de Maio, a China, com um bilião e meio de habitantes, tinha a pandemia controlada, podendo apresentar excelentes resultados, com um total de 82 965 casos e três mortos por milhão de habitantes, não existindo, a 25 de Maio deste ano, nenhum novo infectado.
Isso contrasta muito favoravelmente com outros países (da Europa, USA, América Latina…) que tiveram a vantagem de serem atingidos mais tarde e puderam utilizar muitos dos ensinamentos adquiridos com a experiência chinesa mas que, apesar disso, tiveram perdas significativamente maiores.
Itália – total de casos 229 858; 542 mortos por milhão de habitantes / Espanha – 282 852 casos; 615 mortos por milhão de habitantes / Grã-Bretanha – 259 559 casos; 542 mortos por milhão de habitantes / Suécia – 33 450 casos; 396 mortos por milhão de habitantes / Portugal – 30 623 casos; 129 mortos por milhão de habitantes/ USA – 1 686 436 casos; 300 mortos por milhão de habitantes. Só no estado de Nova Iorque existiam 371 193 casos e um rácio de 1503 mortos por milhão de habitantes, (Wordlometer a 25-5-20).
Outro aspecto ligado à luta contra a Covid-19 foi a utilização em larga escala de tecnologias digitais que permitem a geolocalização e formas diversificadas de vigilância dos cidadãos, adoptadas pela China e por países tão diversos como a Austrália, Polónia, Nova Zelândia, Singapura, Taiwan (e Portugal com uma app já anunciada), merecendo uma séria reflexão pelo papel intrusivo e facilitador, noutros contextos, de derivas autoritárias.
O exemplar comportamento dos cientistas e autoridades chinesas tem sido alvo de uma campanha de desinformação por parte dos media ocidentais, seguindo a estratégia de Trump e associados de atacar a China, disfarçando os desastrosos resultados da sua própria gestão da pandemia condicionada pelos interesses mais egoístas dos «mercados». Mas a verdade é como o azeite: acaba sempre por vir ao de cima…
(continua na próxima semana)
- 1. Nodal, Pandemia y el sistema-mundo, 22-4-2020
- 2. «Fangcang shelton hospitals: a novel concept for responding to public health emergencies» –The Lancet, 2-4-20
- 3. Globetrotter, 4-4-20
- 4. I. Ramonet, Nodal, Pandemia y el sistema-mundo, 22-4-2020
- 5. Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), 16-24 February 2020
- 6. Galveston National Laboratory News, Editorial, Feb 4, 2020
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