O presidente dos Estados Unidos da América chamou «assassino» ao presidente da Federação Russa. E assegurou que ele irá pagar por isso. Ora quando estão envolvidas no assunto as duas principais potências nucleares mundiais e a ameaça é tão assertiva, na sequência do insulto, percebe-se que uma tão peculiar espécie de diplomacia não tem a ver com azedumes pessoais, jogando antes com a vida de todos nós.
O presidente dos Estados Unidos é Joseph Biden, um democrata, figura benquista da comunicação social corporativa mesmo que, a exemplo do antecessor, o inominável Donald Trump, continue a enjaular em gaiolas as crianças de filhas de imigrantes tentando escapar à miséria que o império cultiva através das Américas.
Biden é, no entanto, alguém apresentável, polido, um recomendável chefe de família católico, actual comandante em chefe da cruzada globalista em curso para estender a nova «civilização», o regime único do capital financeiro, a cada recanto do planeta. Estes atributos têm implícito o direito moral de qualificar como «assassino» e ameaçar com a devida punição os dirigentes de qualquer país que não esteja em sintonia com a estratégia da Casa Branca. Só assim se compreende que a ofensiva verbal de Joseph Biden tenha sido encaixada com toda a compreensão pelos media dominantes e mesmo elogiada como necessária demonstração de força e de intocável autoridade.
Do lado da guerra
Vejamos então onde assenta a autoridade moral de alguém como Joseph Biden para qualificar Vladimir Putin como «assassino».
«"O Kosovo deve ser independente", sentenciou o actual presidente norte-americano, colocando-se já então à margem do direito internacional. Daí que tenha sido cúmplice, sintonizado com Clinton e a sua secretária de Estado, Madeleine Albright, dos bombardeamentos de 1999 efectuados pela NATO contra a cidade de Belgrado»
O presidente em exercício dos Estados Unidos desempenha há bem mais de quatro décadas cargos de influência e gestão política com repercussões no comportamento político, diplomático e militar do seu país.
Respiguemos, por exemplo, o caso da destruição da Jugoslávia durante toda a década de noventa do século passado. Iremos encontrar Biden na linha da frente do Senado no apoio à estratégia de guerra da administração Clinton.
«O Kosovo deve ser independente», sentenciou o actual presidente norte-americano, colocando-se já então à margem do direito internacional. Daí que tenha sido cúmplice, sintonizado com Clinton e a sua secretária de Estado, Madeleine Albright, dos bombardeamentos de 1999 efectuados pela NATO contra a cidade de Belgrado. Uma operação que liquidou centenas de civis e não se coibiu de ter como alvos edifícios públicos, órgãos de comunicação social e até embaixadas, como a da China. Digamos que se tratou de uma operação terrorista e assassina, por sua vez montada para apoiar terroristas e assassinos, os fundamentalistas islâmicos do Exército de Libertação do Kosovo, em nome da paz, da democracia e da liberdade. A própria Amnistia Internacional, apesar de calibrar os acontecimentos mundiais segundo vários pesos e várias medidas, reconheceu que o bombardeamento da NATO contra Belgrado foi «um crime de guerra».
O caso do Iraque
Haverá, no entanto, poucos episódios tão reveladores da idoneidade política e humana de Joseph Biden como a guerra contra o Iraque lançada em 2003 pelo presidente republicano George W. Bush.
Biden era presidente da poderosa Comissão de Relações Externas do Senado e, embora sendo do Partido Democrata, foi um dos 77 senadores que em 11 de Outubro de 2002 autorizaram Bush a utilizar a força militar para obrigar o Iraque e o seu presidente, Saddam Hussein, a prescindirem das armas de destruição massiva que teriam supostamente em seu poder.
«Haverá, no entanto, poucos episódios tão reveladores da idoneidade política e humana de Joseph Biden como a guerra contra o Iraque lançada em 2003 pelo presidente republicano George W. Bush»
Três semanas antes, em 24 de Setembro de 2002, durante uma sessão fechada da Comissão de Relações Externas do Senado, Joseph Biden interrogara directamente o então chefe da CIA, George Tenet, se tinha alguma prova da existência dessas armas de destruição massiva. A resposta foi: «nenhuma».
No entanto, já desde pelo menos 1998 que Biden tinha uma fixação na mudança de regime pela força no Iraque. Nesse ano disse no Senado que «derrubar Saddam Hussein» seria a única maneira de garantir o desarmamento do Iraque. Ideia que retomou numa audiência com Scott Ritter, inspector das Nações Unidos para investigação dos arsenais iraquianos: «a única maneira de eliminar a ameaça é eliminar Saddam», disse.
E em Outubro de 2004, em plena invasão norte-americana do Iraque, quando se tornara claro que as famosas armas de destruição massiva não apareciam, Biden rematou o episódio declarando que «nunca acreditei» que elas existissem. No entanto, Saddam Hussein «fora-se embora», uma solução muito querida do presidente em exercício dos Estados Unidos, como se verá.
Vice-presidência letal
O actual presidente norte-americano esteve também, naturalmente, na linha da frente no apoio à invasão do Afeganistão em Outubro de 2001. Uma guerra que iniciou um banho de sangue cuja responsabilidade atravessa já quatro administrações em Washington: e Biden esteve em três, duas como vice-presidente e agora como presidente, cargo em que não dá sinais de pretender acabar com o flagelo.
Os documentos secretos recentemente divulgados e que são conhecidos como Afghanistan Papers revelam que a esmagadora maioria das personalidades envolvidas no desencadeamento e desenvolvimento desta guerra sem fim sabiam que os objectivos alegados para a operação seriam «inatingíveis». Ainda assim, o presidente Biden prolonga-a.
As administrações de Barack Obama ficaram marcadas pelo lançamento de novas guerras até agora intermináveis e por um número de execuções extrajudiciais nunca antes atingido na história dos Estados Unidos.
Joseph Biden, então como vice-presidente, ficou directamente associado a essas práticas letais.
«Na Líbia, a tragédia continua dez anos depois. O país que tinha o maior índice de qualidade de vida em África desagregou-se por acção de uma guerra desencadeada pela NATO em aliança com os fundamentalistas islâmicos e transformou-se num território ingovernável, um imenso entreposto de tráfico humano»
Na Líbia, a tragédia continua dez anos depois. O país que tinha o maior índice de qualidade de vida em África desagregou-se por acção de uma guerra desencadeada pela NATO em aliança com os fundamentalistas islâmicos e transformou-se num território ingovernável, um imenso entreposto de tráfico humano. O drama tem, inevitavelmente, o dedo de Joseph Biden, embora em períodos eleitorais alguns fact-checkers tenham tentado branquear a imagem do então vice-presidente dos Estados Unidos.
Tarefa inutilizada pelo próprio. «A NATO fez o que está certo», garantiu o actual presidente em Outubro de 2011 na Universidade Estatal de Plymouth. «Nesta situação, a América gastou dois mil milhões de dólares e não perdeu uma única vida; esta é a melhor receita para lidar com o mundo, em comparação com o passado». Do outro lado, porém, perderam-se dezenas de milhares de vidas, nada que afecte a bondade da «receita» de Biden. «Vivo ou morto», o certo é que Khadaffi «foi-se embora», concluiu.
Presidência: mais do mesmo
Também Bachar Assad deve «ir-se embora», neste caso da Síria, conforme consigna espalhada aos ventos pela administração Obama/Biden no início de uma guerra também imposta em 2011, não directamente pela NATO mas por braços armados terroristas que lhe servem conforme as ocasiões, tais como a al-Qaida ou o Isis ou Daesh. O trabalho não foi concluído, a Síria resiste à agressão externa mas o agora presidente Biden, a crer nas informações que circulam pela inteligência ocidental, pretende acabar o que começou juntamente com Obama e Hillary Clinton. Os bombardeamentos norte-americanos contra território sírio em 25 e 26 de Fevereiro, interligados com a situação de ocupação do Iraque, deixam a ideia de que tais rumores não são boatos.
«Biden foi uma das figuras centrais do que ficou conhecido como «golpe de Maidan», uma acção de mudança de regime coordenada pelos Estados Unidos, a União Europeia e agrupamentos terroristas nazis que levou a guerra e os massacres ao Leste russófono do país, de que é exemplo a chacina na Casa dos Sindicatos de Odessa»
A marca de Joseph Biden está igualmente inscrita na actual situação na Ucrânia, país em desagregação política e económica – mas não militar – onde o regime é sustentado operacionalmente por organizações nazis patrocinadas pela NATO. Biden foi uma das figuras centrais do que ficou conhecido como «golpe de Maidan», uma acção de mudança de regime coordenada pelos Estados Unidos, a União Europeia e agrupamentos terroristas nazis que levou a guerra e os massacres ao Leste russófono do país, de que é exemplo a chacina na Casa dos Sindicatos de Odessa, em Maio de 2014. A outros níveis, o aproveitamento da mudança provocada em Kiev foi extensivo à família Biden, pois o filho Hunter tornou-se administrador da maior empresa petrolífera do país.
A realidade dos factos revela, portanto, que o senador, vice-presidente e presidente Joseph Biden tem reconhecidas responsabilidades, ao longo da sua carreira política, em acontecimentos no mundo dos quais resultou (e resulta) a perda de muitos milhares de vidas humanas – o problema é quantificá-las.
Pelo que na ocasião em que acusou Vladimir Putin de ser um «assassino» Joseph Biden devia ter diante de si um imenso espelho que lhe devolveu a imagem crua daquilo que é.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
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