A 5 de Novembro de 2015, uma das barragens da empresa Samarco, controlada pelas accionistas Vale e BHP Billiton, rebentou na cidade de Mariana, originando uma torrente de lama tóxica que destruiu fauna, flora e habitações ao longo de 650 quilómetros.
O desastre que contaminou o Rio Doce até ao litoral (no estado de Espírito Santo), tido como a maior catástrofe com excedentes de minério a nível mundial, provocou 19 mortos, destruiu comunidades inteiras e deixou centenas de pessoas desalojadas.
Passados dez anos – refere o Brasil de Fato –, aquilo que era anunciado como um «acidente» é reconhecido por atingidos, ambientalistas e juristas como um crime ambiental e social sem precedentes no Brasil. A lama «invadiu vidas, arrancou raízes e transformou o cotidiano de milhares de pessoas».
«Foram 10 anos muito difíceis, morosos e dolorosos. É uma vida imposta que a gente vive», desabafou Mirella Lino, atingida de Ponte do Gama e membro da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF). Hoje, com 27 anos, vive em Mariana e luta para concluir o curso de Serviço Social, depois de uma década marcada por depressão, deslocação e desamparo.
Vidas interrompidas
Antes do ruptura, Lino era uma adolescente que «levava uma vida simples na roça». «Tudo que a gente precisava tinha ali perto: escola, horta, vizinhos. A gente trocava batata por queijo, leite por arroz. Era um modo de vida que fazia sentido para nós», disse.
Depois da lama, veio a deslocação forçada. A família teve de deixar a comunidade e mudou-se para o centro de Mariana, onde enfrentou o preconceito de quem encarava os atingidos como um «peso» para a cidade.
«O custo de vida aqui é altíssimo e, se não fosse a comida que a Samarco trazia, a gente teria passado fome», lembrou.
Dez anos depois, a família foi reassentada, não no novo Bento Rodrigues, mas numa casa comprada pela Fundação Renova, criada para gerir o processo de reparação. Ainda assim, ela não considera que tenha sido feita justiça.
«A indenização nunca saiu. Está em processo judicial. E a cada novo acordo, o tempo da gente é o que se perde», declarou.
«Mudou da água limpa para água suja»
O agricultor Marcos Muniz resume a sua trajetória com uma metáfora que carrega amargura e poesia: «Nossa vida não mudou da água pro vinho. Mudou da água limpa, cristalina, para uma água suja.»
Reformado, Muniz vivia em Bento Rodrigues com a esposa e a filha quando a barragem colapsou. Tinha trabalhado décadas na Samarco e fazia tenções de viver o resto da vida no distrito. «Nós já tínhamos feito essa escolha. Era o nosso lugar, nossa história, nossas raízes», disse.
Hoje, uma década depois, ainda não recebeu a indemnização completa nem reassentamento definitivo. «O processo é demorado, cheio de burocracia. Trataram a gente como "meio atingido". Como pode? Ou você perde tudo ou não perde nada. Meio atingido não existe», denunciou.
Muniz criticou duramente o novo acordo de repactuação, assinado em 2024 entre as mineradoras e o poder público. «Foi feito para beneficiar empresa e governo, não os atingidos. Dez anos se passaram e eles não devolveram nem o direito de viver com dignidade», disse.
A luta que envelheceu com o tempo
Para Luzia Motta, a ruptura também desestruturou tudo: trabalho, comunidade, saúde e identidade. Antes do crime, trabalhava com eventos e costura. «Era feliz, tinha minha independência», referiu. Hoje, vive no reassentamento colectivo, tentando recomeçar: «A vida está de ponta-cabeça. A gente tenta se adaptar, buscar outra forma de sobreviver, mas é difícil», lamentou.
Motta fala com tristeza sobre aquilo de que mais sente falta: «as festas culturais, os costumes, o modo de conviver. Hoje as pessoas não têm tempo, vivem cansadas da luta.» Ainda assim, mantém o compromisso colectivo.
«Mesmo com a desesperança, a gente entende que, juntos, ainda é a melhor forma de fazer justiça», frisou.
«A comunidade nunca mais vai existir»
O agricultor Marino D’Angelo Junior, outro atingido da região, tinha uma das melhores produções de leite da zona rural de Mariana antes de 2015. Produzia mil litros por dia e vivia da pecuária familiar. «Quando a barragem rompeu, eu estava colhendo o fruto do meu trabalho. Foi tudo destruído em minutos», declarou ao Brasil de Fato.
Dez anos depois, acumula doenças e decepções. «Tenho diabetes, pressão alta e depressão. Ser um atingido é uma marca que eu não desejo pra ninguém.»
Apesar de ter sido indemnizado, diz-se coagido: «Fechei o acordo com medo de a juíza dar um valor menor. Foi um processo totalmente injusto. O criminoso avaliou o dano que causou.»
«A comunidade não existe mais, nunca mais vai existir. Quem era criança de 10 anos hoje tem 20 e só aprendeu coisa de cidade urbana. A lama levou a simplicidade junto», lamentou.
Dez anos de promessas e impunidade
Desde 2015, nenhum responsável foi condenado criminalmente no país sul-americano, destaca o Brasil de Fato, acrescentando que o processo judicial se arrasta entre mudanças de juízes, disputas de competência e recursos das empresas.
Em 2024, ao cabo de nove anos, a Vale, a Samarco e a BHP firmaram um novo acordo, no valor de 170 mil milhões de reais (mais de 27,5 mil milhões de euros), com as autoridades brasileiras, homologado pelo Supremo Tribunal Federal, para financiar acções de reparação.
No entanto, o número de atingidos contemplados é limitado, havendo estimativas de que apenas 36% dos atingidos seriam elegíveis para o programa brasileiro. Os restantes procuram reparações no estrangeiro, num processo avaliado em 44 mil milhões de dólares, a maior acção ambiental colectiva do mundo.
Enquanto isso, a Fundação Renova, criada para conduzir o processo de reconstrução e as indemnizações, continua a ser alvo de críticas, com as comunidades a denunciarem falta de transparência e concentração de poder nas mãos das mineradoras.
«O futuro é uma pergunta sem resposta»
Num manifesto alusivo ao aniversário do desastre, divulgado nas redes sociais, a Comissão dos Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF) afirma: «O que aconteceu não foi um acidente técnico, mas um crime com causas estruturais. Dez anos depois, seguimos com nossos modos de vida destruídos, deslocados de nossos territórios e privados de justiça. Nossa luta é pela memória, pela reparação e pelo direito de existir.»
O novo acordo, apesar de milionário, é questionado pela falta de participação efectiva das comunidades, destaca o Brasil de Fato. Numa audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que teve lugar no início de Outubro, revelou-se que os atingidos continuam a ser vítimas de retaliações e exclusão.
«A vida que a gente vive hoje não é a que escolhemos, é a que foi imposta», resumiu Mirella Lino.
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