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Imaginem que se descobria que andámos este tempo todo a traduzir mal a conversa entre Deus e Abraão e que, em vez de «Prometo dar aos teus descendentes esta terra, desde o Egipto até ao rio Eufrates», se devia ler «do Alvito até ao Rio de Frades». Quem ache semelhante ideia demasiado disparatada para estar na Bíblia deve consultar de antemão o episódio em que Deus envia uma ursa para matar duas crianças que chamaram careca a um homem ou o momento em que Deus pede a Ezequiel para se deitar de lado durante 430 dias alimentando-se exclusivamente de pão cozido em fezes humanas. Adiante. Imaginem agora a não menos disparatada ideia do Estado Israelita se pretender mudar de malas e bagagens para Portugal, concretizando uma profecia da Idade do Bronze mediante a ocupação e colonização do nosso território, expulsando a população portuguesa para gigantescos campos de concentração e terraplanando as suas vilas e aldeias centenárias.

«Podemos não ter a possibilidade de passar mais 60 anos a exigir uma solução de dois Estados porque, por este caminho, daqui a 60 anos pode já não haver palestinos na Palestina nem colonos em Israel.»

Esta imagem disparatada é um ponto de partida necessário para se poder discutir o Estado de Israel sem ser maquinalmente apodado de anti-semita. É a proverbial pescadinha de rabo na boca: o sionismo precisa do anti-semitismo vivo para justificar a existência de um Estado onde os judeus não sejam perseguidos e os crimes desse Estado encarregam-se de renovar a gangrena anti-semita. Desde a sua criação, em 1948, Israel representa a maior fonte de insegurança e conflitos na região, bloqueando ostensivamente todas as tentativas internacionais de construir uma solução de dois Estados. Para agravar o problema, podemos não ter a possibilidade de passar mais 60 anos a exigir uma solução de dois Estados porque, por este caminho, daqui a 60 anos pode já não haver palestinos na Palestina nem colonos em Israel.

Por detrás do violento projecto de segregação, expulsão e genocídio da população palestina que Israel persegue desde a sua fundação está uma estratégia a que os israelitas chamam «factos no terreno»: um Estado nascido sob o signo do colonialismo (na acepção mais tradicional da palavra, com colonos) torna-se politicamente irreversível ao fim de algumas décadas, por mais ilegal, injusta e brutal que tenha sido o processo de conquista e ocupação. Ninguém pondera, hoje em dia, que os EUA, a Austrália ou a Nova Zelândia deixem de existir por terem sido fundados sob o genocídio da população indígena. Da mesma forma, como se expulsam israelitas que nasceram, cresceram e toda a vida viveram numa terra a que, mesmo por alheia culpa a montante genealógico, chamam sua? Daqui a poucos anos, os colonatos ilegais que Israel constrói sobre as ruínas de aldeias destruídas serão «factos». Ao contrário dos EUA, da Austrália ou da Nova Zelândia, Israel não é ainda capaz de dizimar e assimilar a população indígena. Antes que tal aconteça, é preciso considerar todos os roteiros para a paz, mesmo que não sejam baseados numa solução de dois Estados.

Quatro pretextos e uma razão

Quando se interpela directamente um Estado e lhe se pede a raison d'être, cada um responde com um mito seminal diferente: um milagre aqui; um rei adormecido sob aquela montanha ali; um pacato piquenique com indígenas acolá, uma disseminação de fé além. A primeira e a mais importante justificação do Estado de Israel é religiosa: o direito a ocupar a terra proviria de uma lenda com 3500 anos segundo a qual Deus terá prometido a Palestina ao «povo escolhido». Aceitar este argumento é aceitar todas as outras guerras religiosas que pretendam invadir, ocupar e colonizar qualquer terra prometida por qualquer deus, o que se aplica, a título de exemplo, ao Estado Islâmico no al-Andaluz.

«A primeira e a mais importante justificação do Estado de Israel é religiosa: o direito a ocupar a terra proviria de uma lenda com 3500 anos segundo a qual Deus terá prometido a Palestina ao "povo escolhido".»

A segunda justificação é militar: Israel conquistou o território, exercendo, pela força, um controlo efectivo que, quer se goste ou não, é uma realidade.

A terceira é humanitária: na sequência do Holocausto, Israel seria o porto seguro de todos os judeus perseguidos há milhares de anos. Esta justificação, contudo, é uma contradição dos seus próprios termos: não se pode expiar uma catástrofe humanitária causando outra catástrofe humanitária nem se pode proteger um povo esmagando outro povo.

 

 

 

A quarta justificação é política: Israel seria a «única democracia do Médio Oriente», o que implicaria, no entanto, uma trabalhosa redefinição de democracia. Uma democracia não invade todos os países vizinhos nem destrói as casas de milhões dos seus cidadãos; uma democracia não tem leis que impedem uma minoria étnica de viver neste ou naquele lugar; não prende milhares de crianças todos os anos; não assassina legalmente 15 mil opositores políticos; não proíbe uma parte dos seus cidadãos de votar; uma democracia não limita ao mínimo de subsistência o número de calorias a que uma parte da população tem acesso; uma democracia não humilha diariamente a sua população com checkpoints militares; uma democracia não tem cidadãos de primeira e cidadãos de segunda; uma democracia não descrimina conforme a religião; uma democracia, sucintamente, não ocupa nem coloniza. Israel poderá ser tudo: etno-estado; herrenvolk (democracia para a maioria étnica, ditadura para a minoria); apartheid ou Estado colonial. Pode ser tudo menos um Estado democrático.

 

 

 

A quinta e última é a única remotamente aceitável: a criação de Israel na Palestina foi aprovada maioritariamente pelos representantes de todos os países do mundo e, no passado, até as organizações representativas do povo palestino dispuseram-se a reconhecer esse Estado. Porém, o Estado de Israel que a ONU criou não é o Estado de Israel que hoje existe. Como demonstram o mapa abaixo e as incontáveis condenações da ONU, Israel é hoje um Estado fora-da-lei. E um Estado inventado pela legalidade internacional só pode existir pela ilegalidade internacional. Se Israel se recusa a cumprir as resoluções da ONU, nomeadamente sobre as suas fronteiras, não tem direito a existir.

 

 

Solidariedade, do Alvito ao Rio Eufrates.

 

 

 

Não se trata de uma medida punitiva, mas simplesmente de uma saída de emergência para a paz. Ou seja, o problema pode ser intrínseco à própria existência do Estado de Israel. Uma pesquisa do termo «Israel» devolve títulos como: «Israel ameaça atacar Irão»; «ministra israelita entoa o cântico “vamos queimar a tua aldeia”»; «continuam as expedições punitivas em Gaza»; «Israel ataca posições na Síria»; «Colonatos ilegais “são para continuar”»...

 

 

 

A questão que se impõe não é tanto se um Estado religioso e racista como Israel tem ou não direito de existir mas se essa existência é compatível com a paz. Na África do Sul, a solução para o sangrento regime de apartheid não passou por dois Estados. Porque não podem todos os palestinianos, independentemente de serem judeus, árabes, cristãos, muçulmanos ou ateus, viver em paz num Estado democrático e multi-étnico chamado Palestina?

 

 

 

Hoje Israel é um Estado aberrante que só se mantém pela perpétua continuação da violência contra a Palestina e contra outros países da região, que só sobrevive ligado à máquina da assistência financeira, política e militar dos EUA e que só aparenta ser aceitável aos olhos do mundo porque a comunidade internacional assim permite. A continuidade da existência do Estado de Israel dependerá sempre destes três factores e ainda de outros dois, não menos importantes: a resistência do heróico povo palestino e a solidariedade de todos os povos do mundo.

 

 

 

Façamos a nossa parte sabendo que, se por algum capricho divino, o Génesis dissesse mesmo Alvito e Rio de Frades, poderíamos ao menos contar com a solidariedade do povo palestino.