A inteligência artificial é apresentada como a nova fronteira do progresso. Mas por trás da retórica da inovação esconde-se uma gigantesca bolha financeira e ecológica. Criada e controlada por um punhado de multinacionais norte-americanas, a IA ameaça transformar-se num instrumento de vigilância, exploração e dominação. Em vez de um avanço civilizacional, esta revolução digital ameaça reforçar o poder do capital e fragilizar a democracia.
A inteligência artificial (IA) tornou-se o novo mantra do capital global, sustentado numa fé tecnológica que promete a salvação, mas prepara, na realidade, mais um salto rumo à servidão. As ferramentas principais da IA não nasceram do acaso nem são fruto de um verdadeiro projeto científico coletivo orientado para a emancipação humana. Foram antes concebidas por meia dúzia de multinacionais norte-americanas que controlam, com alcance planetário, a infraestrutura digital contemporânea. Google, Microsoft, Amazon, Meta e OpenAI investiram somas colossais em centros de dados, chips e acordos de computação, vendendo ao mundo a promessa de um futuro automatizado e libertador. Mas os lucros estão muito aquém do previsto. A OpenAI, outrora celebrada por ser pioneira na IA generativa, tem vindo a reportar prejuízos avultados que poderão atingir os 14 mil milhões de dólares em 2026. Para equilibrar as contas a empresa precisaria de multiplicar a sua receita 25 vezes nos próximos cinco anos. Nada que assuste os investidores que continuam a surfar a onda da IA, com as cotações a subir, insuflando a bolha especulativa cujo eventual rebentamento será muito pior, segundo os analistas, do que a crise das «dotcom» do início do milénio.
«A inteligência artificial (IA) tornou-se o novo mantra do capital global, sustentado numa fé tecnológica que promete a salvação, mas prepara, na realidade, mais um salto rumo à servidão.»
Para evitar o colapso, a receita parece estar encontrada com a fatura a ser empurrada para consumidores, universidades, administrações públicas e empresas, sob a forma de licenças e subscrições obrigatórias. Em nome da competitividade, ninguém pode ficar para trás. A IA é vendida como inevitável: em casa, na escola e no trabalho. Já abundam na Europa parcerias público-privadas «virtuosas» que anunciam a introdução da IA nos currículos escolares desde o ensino básico, colonizando assim de forma precoce o pensamento crítico dos jovens, sempre sob a capa da inovação. Mas essa adesão acrítica encerra riscos profundos. Os modelos de IA são treinados com bases de dados massivas que violam sistematicamente direitos de autor, apropriando-se de obras, textos e imagens sem consentimento. Ao introduzir a IA na administração pública, abre-se caminho para a vigilância algorítmica de funcionários e utentes, ameaçando a liberdade e outros direitos democráticos fundamentais. Quem controla o software, controla a informação e, em última instância, o pensamento e a vida.
A tudo isto soma-se um fator raramente discutido: a insustentabilidade ambiental. Cada interação com um modelo de linguagem consome centenas de vezes mais energia do que uma pesquisa tradicional na internet. De acordo com as Nações Unidas, as emissões de carbono das operações associadas à IA das quatro principais empresas de tecnologia aumentaram em média 150% de 2020-2023. Em todo o mundo são consumidos centenas de milhões de litros de água para arrefecer os servidores dos poderosos centros de dados necessários ao funcionamento da IA. A suposta revolução verde da IA é, na verdade, uma drenagem brutal de recursos naturais ao serviço da rentabilidade de poucos.
Do lado regulamentar, a proteção é uma ficção. A União Europeia aprovou um AI Act que serve mais como peça de propaganda do que como regulação efetiva. Apresentado como o primeiro quadro jurídico abrangente do mundo, o texto é, na verdade, um projeto de intenções, com medidas vagas, muito pouco vinculativas e sem poder sancionatório efetivo. Na prática, o Regulamento garante sobretudo tempo e margem às Big Tech para se adaptarem, contornarem as regras ou mesmo alterarem as regras pela mão da administração Trump, inteiramente alinhada com os interesses do Silicon Valley. A Europa, que se pretendia defensora da democracia e dos direitos do homem, corre o risco de se tornar apenas mais um mercado capturado, fornecedor de dados e consumidor de produtos digitais concebidos noutro continente. Em Portugal, o caso é quase caricatural. Veja-se quem foi escolhido para liderar a transformação digital da administração pública: Manuel Dias, ex-quadro de topo da Microsoft. O símbolo perfeito da promiscuidade entre Estado e Big Tech, e da subordinação das políticas públicas ao interesse privado.
«Do lado regulamentar, a proteção é uma ficção. A União Europeia aprovou um AI Act que serve mais como peça de propaganda do que como regulação efetiva. Apresentado como o primeiro quadro jurídico abrangente do mundo, o texto é, na verdade, um projeto de intenções (...).»
Tal como outras revoluções tecnológicas, a inteligência artificial é apresentada como um avanço civilizacional. Promete libertar os trabalhadores das tarefas repetitivas e abrir caminho à emancipação plena do ser humano. Mas basta ouvir quem vive nos setores uberizados para perceber o logro: longe de libertar, a tecnologia imposta pelo capital serve para intensificar o ritmo laboral, desqualificar competências e ampliar a exploração. Cada inovação é anunciada como neutra, mas nasce num quadro de forças profundamente desigual, em que o fator trabalho é sistematicamente penalizado. Por isso, é com prudência, e até com resistência, que os trabalhadores devem encarar estas narrativas teleológicas que o capital constrói sobre a tecnologia. A mudança tecnológica não é um desdobramento orgânico da civilização. É um campo de disputa social e política, onde se decidem as condições da vida coletiva. E, como tal, deve estar sujeita à governação democrática — não às leis do lucro nem à lógica da inevitabilidade. Só assim teremos um processo de inovação tecnológico ao serviço da humanidade.
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