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|Política

As esquerdas tagarelas

É todo um processo de enfraquecimento das esquerdas, tendente a dissolver as organizações de classe colectivas e tornar as lutas puramente simbólicas, em que qualquer um, mesmo que recuse qualquer atitude ou pertença política, pode participar.

«Decalcomania», René Magritte
«Decalcomania», René MagritteCréditos / Centre Pompidou-Metz

(...) Faço "glou-glou" "miam-miam"

Desfilo a gritar Paz ao Vietnam

Isto porque enfim também tenho opiniões

Venho procurar os meus bombons (...)

 Jacques Brel, Les Bonbons 67 (tradução livre )

No princípio do ano em Memphis, no estado de Tennessee, Tyre Nichols um jovem negro de 29 anos, morreu no hospital três dias depois de ter sido brutalmente agredido por cinco polícias. O que torna particular este acto de violência é ter sido cometido por cinco polícias negros de uma cidade em que o departamento da polícia é liderado por Cerelyn Davies, uma mulher negra.

Para o quadro ficar completo seria curioso conhecer-se o género dos intervenientes nesse acontecimento, que demonstra que a violência policial não tem cor, é inerente a uma sociedade em que a coacção exercida pelas classes dominantes tem muitas graduações, das mais persuasivas às que recorrem à força extrema em actos pontuais como este ou por guerras como as que têm sido postas em prática desde há muitos decénios para que o império continue a impor as suas regras. A xenofobia, o racismo, a homofobia são catalisadores num estado de sítio sempre pronto a explodir.

Deveria o brutal assassinato de Tyre Nichols, dado os seus intervenientes mais directos, os polícias negros, ou mais longínquos, a chefia do departamento policial por uma mulher negra, ter feito implodir as fantasias que as lutas ditas fracturantes das políticas de identidade e diversidade são o cerne das lutas que irão resolver as questões políticas, sociais e económicas desta sociedade, tornando obsoletas as lutas de classe e, concomitantemente, os partidos e organizações de classe que continuam empenhados numa radical mudança social, mesmo que diferida no tempo, dado o quadro actual da realidade em que o capitalismo, embora que atravessando graves crises, é hegemónico.

O que é inquietante, é que as evidências desnudadas pelo assassinato de Nichols em nada abalaram os bandos de activistas nos EUA e seus seguidores, sobretudo no mundo ocidental, as suas retóricas publicitárias que parasitam por uma comunicação social cada vez mais propriedade e voz das oligarquias beneficiárias das desigualdades sociais que agravam o fosso entre os privilegiados e o complexo mundo do trabalho, cumprindo o que desde sempre foi e continua a ser um dos objectivos da burguesia, que é o de secundarizar e se possível tornar invisível a luta de classes para que a crença de se viver numa sociedade aberta seja dominante, pelo que há que inviabilizar o que coloque em causa a sua preponderância.

É um processo contínuo, posto em prática com inegáveis êxitos pela ideologia burguesa que o adapta às circunstâncias particulares dos acontecimentos históricos que acabam por ser descontextualizados para deixarem de ser analisados e questionados em função dos factos objectivos e se diluírem em opiniões que muitas vezes aparentam combater com ardor enérgico essa ideologia, mas de facto contribuem para a manutenção do ideário neoliberal, contribuindo para lhe fornecer oxigénio nos sobressaltos das vicissitudes. 

«O que é inquietante, é que as evidências desnudadas pelo assassinato de Nichols em nada abalaram os bandos de activistas nos EUA e seus seguidores, sobretudo no mundo ocidental»

As virtudes desse processo advêm da plasticidade com que se têm adaptado às circunstâncias, de na sua essência serem aparentemente progressistas com a capacidade de estabelecer modas com o objectivo de se sobrepor à dialéctica da história, semeando dúvidas, discórdias, hesitações, confusões dentro da esquerda.

Um episódio como o relatado deveria clarificar, para a maioria das pessoas de esquerda, toda a inconsistência das políticas identitárias, se extrapoladas das lutas de classe. As preocupações com o género, a sexualidade, o racismo, o feminismo, a xenofobia, a homofobia, tudo o que lhes está associado e os combates que suscitam, não existem por si sós no vácuo, não podem ser dissociadas nem abstraídas da mais vasta matriz social, política e económica onde estão inseridas. Quando o fazem perdem sentido colectivo, encerrando-se em individualismos que deixam de ter por alvo as causas da opressão de que são uma das vítimas.

Essa característica das lutas identitárias não é nova mas tem-se se acentuado, o que as distancia de entenderem que é o capitalismo e a sociedade de classes que são os geradores da opressão, pelo que acabam por aceitar a inevitabilidade da exploração capitalista, pelo que as suas «lutas anticapitalistas» se centram numa evolução dita progressista dos modos de produção. É a revolução sem revolução nem revolucionários que teve o seu paradigma no Maio de 68, em que o impulso revolucionário é desviado para o território do espectáculo e em que a situação revolucionária seria resolvida com a organização autogestionária das forças produtivas sem alterar as relações de produção, sem perceber a impossibilidade de lutar contra o capitalismo usando os seus próprios meios.

«As preocupações com o género, a sexualidade, o racismo, o feminismo, a xenofobia, a homofobia, tudo o que lhes está associado e os combates que suscitam, não existem por si sós no vácuo, não podem ser dissociadas nem abstraídas da mais vasta matriz social, política e económica onde estão inseridas. Quando o fazem perdem sentido colectivo, encerrando-se em individualismos que deixam de ter por alvo as causas da opressão de que são uma das vítimas.»

É todo um processo de enfraquecimento das esquerdas, tendente a dissolver as organizações de classe colectivas e tornar as lutas puramente simbólicas, em que qualquer um, mesmo que recuse qualquer atitude ou pertença política, pode participar. É o exacerbamento do individualismo subjectivo, que, embora se tenha manifestado desde há muito, adquiriu uma presença mais activa e global com a emergência de uma nova esquerda, em que a maioria das manifestações políticas se transformaram em happenings, com ampla repercussão nos media. É a política espectáculo num mundo cada vez mais assaltado pelos simulacros e as simulações, em que os poderes dominantes encontram os úteis aliados para enfraquecer ou mesmo dissolver o militantismo, substituindo-o pelo activismo, diligenciando para degradar quanto possível os laços de solidariedade e camaradagem que desde sempre são o traço grosso dos partidos de esquerda que não dão por eterno o princípio da dominação capitalista, privando-os das suas esperanças utópicas em que a utopia não é o que não é realizável mas o que ainda não foi possível realizar. 

Em nome do progresso celebra-se a diversidade, o multiculturarismo, o pluralismo, o cosmopolitismo, o pós-colonialismo, um albergue espanhol de uma ideologia de uma sociedade sem ideologia, que tem adquirido várias formas e que na actualidade se fixaram nas lutas ditas fracturantes.

Em linha, a comunicação social estipendiada e as redes sociais amplificam as imagens dessas lutas, tratam com desvelado empenho e carinho todos esses activismos, qualquer que seja a forma porque se apresentam, catapultando a imagem dessa esquerda cosmopolita que reduz a política às performances identitárias das causas fracturantes.

A transfiguração que essa esquerda pretende fazer é rasurar a universalidade da luta de classes que ecoa em todas as lutas dos novos movimentos sociais, feminismo, anti-racismo, multiculturalismo, ambientalismo, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, imigrantes, fragmentando-a nas lutas identitárias e nas causas fracturantes onde ainda alguns colam o rótulo de anticapitalista, de um anticapitalismo fora de prazo, não mais que um rótulo para mascarar o seu reformismo, renunciando de vez ao universalismo marxista e à luta de classes para gáudio da plutocracia que percebe, até bem demais, as virtudes que extrai desse reformismo que abandona a revolução a favor do brilho das lantejoulas das constelações das causas.

«É a política espectáculo num mundo cada vez mais assaltado pelos simulacros e as simulações, em que os poderes dominantes encontram os úteis aliados para enfraquecer ou mesmo dissolver o militantismo, substituindo-o pelo activismo, diligenciando para degradar quanto possível os laços de solidariedade e camaradagem que desde sempre são o traço grosso dos partidos de esquerda que não dão por eterno o princípio da dominação capitalista, privando-os das suas esperanças utópicas em que a utopia não é o que não é realizável mas o que ainda não foi possível realizar.»

É a integração das lutas identitárias e fracturantes na política espectáculo, o que é perfeitamente entendido pelas forças que suportam o poder e que se traduz no espaço mediático que ocupam nos media corporativos, no apoio económico que é concedido por fundações, como as de Soros, Rockfeller, Ford, etc.,  pelos fundos de investimento abutres como Blackrock, Vanguard & Companhia, Wall Street, e os simbólicos como Silicon Valley e Hollywood, a movimentos como o MeToo, Black Lives Matter e outras organizações similares, ONG, fachada dos serviços secretos. Alianças reais e bem firmadas que têm por objectivo último liberalizar e globalizar a economia capitalista, consolidando a sua hegemonia, o que é desde sempre o objectivo do liberalismo na sua pluralidade, de que essas esquerdas desbussoladas acabam por ser objectivamente aliadas, por não estarem interessadas nas causas objectivas da opressão mas nalgumas das expressões. 

Bem caracterizador desse estado de coisas é que os acontecimentos em Memphis em nada alteraram as argumentações dos protagonistas das máquinas chilreantes das lutas identitárias que não por acaso têm actualmente uma presença activa e consolidada nos meios de comunicação social controlados pelas oligarquias, nas redes sociais controladas pelos detentores das grandes corporações dos meios mediáticos, que se arrogam a direitos comparáveis aos dos senhores feudais, nos meios académicos, sobretudo mais visível na balbúrdia que assaltou as ciências humanas em que se recompensa a inutilidade das investigações que se integram na cultura dominante, mesmo quando aparentemente a criticam e em que «pela sua inércia muito conservadora, a universidade contemporânea tornou-se o lugar mais refractário à procura da verdade», como contundentemente denuncia Zachary Karabell1, reportando-se ao estado actual do ensino nas universidades norte-americanas que se tornaram modelo no mundo ocidental.

Curiosamente, essa deriva, que acaba por degradar o pensamento crítico numa paródia que se universalizou, tem a sua origem na Europa, em França, com as teses pós-estruturalistas que promoveram activamente a esterilidade política dessas novas esquerdas e do conhecimento académico de um e do outro lado do Atlântico, que contaminou e invadiu a cultura, as artes e as letras, as ciências humanas desbaratando nas ideologias do mercado livre e do seu aperfeiçoamento o que ainda sobrava dos projectos políticos de uma esquerda basculante, reduzindo-os a farras contestatárias com laivos académicos. 

Poder-se-ia julgar que a brutalidade registada em Memphis, dados os seus protagonistas, poderia pelo menos travar, ainda que no imediato espaço temporal, os impulsos das máquinas chilreantes das lutas identitárias. Grande ilusão. Impantes pelo espaço mediático que ocupam, que lhes é concedido pelas oligarquias, mantêm-se firmes nas falácias dos seus argumentários.

Por cá, uma conhecida ave canora dessas áreas, professora e investigadora universitária com assento garantido num jornal dito de referência, onde com insistência sistemática defende quotas para racializados, feministas e demais LGBTQIA+, quotas a serem preenchidas por essa filiação e não por qualquer competência, partindo do princípio que é suficiente que se assegure representação para grupos historicamente muito sub-representados e oprimidos, para iludir com a concessão de posições simbólicas a alguns indivíduos, ainda por cima integrados nas classes da burguesia e pequena-burguesia, uma verdadeira luta pela libertação desses grupos na sua totalidade, tem um recente escrito bem esclarecedor utilizando por exemplo o PT brasileiro para demonizar a luta de classes: «(…) outra é a capacidade de um partido que tem a sua origem no movimento sindical conseguir aliar-se às forças vivas dos movimentos negros, das mulheres e LGBTQIA+, sem se perder nas discussões estafadas sobre a preponderância da classe ou sobre as divisões "identitaristas"». 

Não se percebe o que é mais grave, se a imbecilidade, se a falta de seriedade intelectual. O que faz com contumácia é agitar com frenesim as bandeiras de libertação dos grupos historicamente oprimidos, num activismo em que mesmo alguns indivíduos apolíticos ou até de direita, que individualmente pertençam a um desses grupos, podem ser promovidos para posições de comando e liderança, como se fosse possível caminhar rumo à sua libertação sem ter na sua base um sólido programa político. 

Dar voz às experiências contra a opressão não é o mesmo que compreender as bases históricas das opressões e lutar contra elas. É evidente que o fascínio da articulista, e seus pares, pelo PT é suscitado pelos voos em céu aberto das políticas identitárias, o que, sem se diminuir a importância do PT no contexto brasileiro e das alterações produzidas após quatro anos de proto-fascismo, são insuficientes para romper de vez com as suas anteriores políticas ambivalentes, de constantes cedências que o atiraram para os abismos do golpe contra Dilma Rousseff, quando a direita as considerou insuficientes e esgotadas ou quando, em continuidade, agora nomeiam um ministro da fazenda que não se demarca substancialmente do neoliberalismo, que não faz frente eficaz a um Banco Central que sabota as tentativas de alterações na economia, num governo que está de certo modo refém dos sectores económicos que mais contribuem para o crescimento do PIB, como o agronegócio, o sector minerador e o financeiro, que, apesar de alguns avanços como os acordados entre Lula e Xi Jiping, continua a deixar que o dólar continue a ser dominante nas transações comerciais, como Haddad se apressou a garantir. 

«Dar voz às experiências contra a opressão não é o mesmo que compreender as bases históricas das opressões e lutar contra elas.»

É típico de quem como ela e seus pares não percebem nem conseguem perceber, por preconceito de classe pequeno-burguês, que o PT tem sido e é vítima de si próprio, das suas hesitações e cedências na esteira de outros partidos da mesma extracção como o Syriza, o Die Linke, o Podemos e demais revisionistas dos princípios marxistas e das lutas de classe, que deixaram de referir revoluções políticas e sociais e programas políticos que proponham alterações radicais de mudanças sociais com o horizonte, ainda que longínquo, da tomada do poder.

É esta gente domesticada pelos poderes dominantes que muito se divertem e aplaudem as suas movimentações, as agitações que promovem, as arranhadelas que fazem, as arengas altissonantes que prolongam e promovem mistificações, divisões e confusões nas esquerdas para sabotar qualquer compromisso coerente entre as ideias teóricas e a quotidiana praxis política.

Há que perceber de vez que as políticas identitárias, aparentemente de esquerda e progressistas, separadas das lutas de classe são na actualidade uma das principais armas das classes dominantes para garantir a sua sobrevivência.

  • 1. Karabell, Zachary, What’s College For? The Struggle To Define American Higher Education, Basic Books, New York 1998, p. 94-95

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