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Chorar na praia: «cada lágrima que cai é uma acusação»

Quando os navios civis de busca e resgate ou navios mercantes chegam junto dos botes é, demasiadas vezes, tarde para algumas centenas de corpos sem vida que acabam sepultados no Mediterrâneo.

Luna Reyes, voluntária da Cruz Vermelha, conforta Abdou, um imigrante senegalês exausto e em choque por ver o seu irmão inconsciente e recear pela sua morte, na praia de Tarajal, em Ceuta, a 19 de Maio de 2021
Luna Reyes, voluntária da Cruz Vermelha, conforta Abdou, um imigrante senegalês exausto e em choque por ver o seu irmão inconsciente e recear pela sua morte, na praia de Tarajal, em Ceuta, a 19 de Maio de 2021CréditosBernat Armangue / AP Photo

Cada lágrima que cai, embora possa ser enxugada, é uma acusação
Rosa Luxemburgo

Uma das fotos que tem corrido mundo nos últimos dias regista o abraço entre uma voluntária espanhola da Cruz Vermelha e um migrante senegalês numa praia de Ceuta.

A imagem provocou reacções díspares. Num mundo simples seria apenas a imagem de um abraço entre dois seres humanos após um acontecimento dramático. Mas estamos longe de viver num mundo simples. Por um lado, a imagem comoveu parte da opinião pública e trouxe alguma consolação e solidariedade face à situação de milhares de migrantes que chegaram a Ceuta por estes dias. Por outro lado, a mesma imagem convocou o pior da humanidade: insultos racistas, machistas e ameaças que fizeram com que a voluntária espanhola optasse por eliminar a sua presença nas redes sociais, tal a jocosidade e brutalidade de comentários que sofreu. Nada de novo: a solidariedade e a ajuda humanitária têm sido, nos últimos anos, na melhor das hipóteses ridicularizadas, na pior, criminalizadas. Vivemos «dias duros em que a fraternidade humana é encarada com riso e deboche», escreveu o historiador norte-americano W.E.B. Du Bois, a quem regressarei.

«hoje vejo com mais clareza do que ontem que, por trás do problema da raça e da cor, existe um problema maior que ao mesmo tempo o obscurece e o consolida: o facto de que muitas pessoas civilizadas estão dispostas a viver no conforto mesmo sabendo que o preço a ser pago por isso é a pobreza, a ignorância e a doença para a maioria dos seus semelhantes»

W.E.B. Du Bois, historiador

Em paralelo com a comoção que a mediática fotografia provoca coexistem flagrantes hipocrisias. A começar pelos políticos espanhóis, e outros políticos europeus, que se solidarizaram com a voluntária, através de hashtags e outros pronunciamentos simbólicos para rede social ver. Mas de que vale a solidariedade quando não exigem, em sede própria, que as fronteiras da União Europeia – internas e externas – deixem de ser aquilo que têm sido nos últimos anos: zonas ausentes de direitos humanos, espaços de impunidade e de abuso, cujo lema é «deixar morrer» cidadãos (pobres e que na maioria das vezes acumulam com a circunstância de ex-colonizados e não-brancos) e, outras vezes, até matar (como aconteceu em 2014 naquela mesma praia, no que ficou conhecido como Massacre de Tarajal). Mas esta não é a única hipocrisia exposta pelas reacções à imagem.

Volto a W.E.B. Du Bois. Durante a perseguição anti-comunista levada a cabo pelo senador McCarthy na década de 50 nos Estados Unidos, o historiador decidiu relançar o seu livro As Almas do Povo Negro, escrito em 1903, e que constituiu a base de trabalho de muitos pensadores do movimento negro. No prefácio dessa edição que assinalava também os 50 anos do livro, o autor acrescentou: «Continuo a pensar hoje, como pensava ontem, que a «linha de cor» (colour line) é um grande problema deste século. Mas hoje vejo com mais clareza do que ontem que, por trás do problema da raça e da cor, existe um problema maior que ao mesmo tempo o obscurece e o consolida: o facto de que muitas pessoas civilizadas estão dispostas a viver no conforto mesmo sabendo que o preço a ser pago por isso é a pobreza, a ignorância e a doença para a maioria dos seus semelhantes. Para manter esse privilégio, os homens foram à guerra, e até hoje a guerra tende a ser universal e contínua, e o pretexto para isso continua a ser em grande parte questões ligadas à raça e à cor da pele».

A conclusão de Du Bois sobreviveu para ver a luz, e as trevas, do século XXI. É arrepiante na dúvida com que nos confronta: até onde estamos, de facto, dispostos a ir para manter o nosso conforto e privilégios? Naquela imagem da praia, naquele abraço, jaz também o privilégio europeu, o das «pessoas civilizadas».

Na Europa, beneficiamos (em níveis diferentes, é certo) do crescimento económico que resulta da exploração de recursos naturais com origem além-fronteiras e com origem na exploração laboral de trabalhadores migrantes. Usamos smartphones e computadores feitos com minérios «de sangue» da República Democrática do Congo, compramos mirtilos e saladas prontas a comer embaladas em Odemira por imigrantes a viver em condições sub-humanas e análogas à escravatura, beneficiamos e queremos continuar a beneficiar de pensões possibilitadas (também) pelas contribuições dos imigrantes para os sistemas de segurança social dos envelhecidos países europeus. Mas receber os migrantes do Norte de África e da África Subsariana que estão a chegar à costa?! Devagar com o andor…

«Na Europa, beneficiamos (em níveis diferentes, é certo) do crescimento económico que resulta da exploração de recursos naturais com origem além-fronteiras e com origem na exploração laboral de trabalhadores migrantes»

A Europa até sabe que «precisa» de migrantes mas «não estes». Os europeus querem escolher quais e para isso criam figuras como os «vistos golds«, os «tech visa», as vias verdes para «empreendedores» munidos de business plans de start-ups e imobiliário que se resumem a «Seja bem-vindo quem vier com capital».

É por isso que os corpos migrantes que agora vagueiam em Ceuta desafiaram o seu destino. Partiram em busca de trabalho, de sobrevivência para si e para as suas famílias, em busca de uma parte da abundância e da prosperidade que a Europa alcançou – alapada nos ombros das antigas colónias, diga-se. A política migratória europeia é a força bruta que procura «voltar a pôr no seu devido lugar» os que ousam desafiar as desigualdades sociais e económicas e as forças da geopolítica. As praias e ruas de Ceuta apenas tornam visível a ponte que liga as migrações de hoje à história do colonialismo europeu em África, Médio Oriente e outras regiões. Continuidades que persistem quando o Mediterrâneo é palco de barbárie. Cada lágrima que cai é (também) uma acusação. Da violência do racismo em função da cor da pele e da religião, da intolerância, da suspeição permanente.

Em Ceuta estão os que (sobre)viveram para contar mas todos sabemos como milhares de vidas são deixadas morrer no mar pelas autoridades europeias. Frequentemente, os barcos em perigo de naufrágio são identificados, as posições GPS transmitidas às autoridades, os botes sobrevoados por aviões de vigilância da Frontex. Durante horas, agentes europeus e guardas costeiras de outros países empurram, entre si, as operações de buscas como autoridade «competente» e, unânimes na incompetência e desumanidade, todos se recusam a actuar. Quando os navios civis de busca e resgate ou navios mercantes chegam junto dos botes é, demasiadas vezes, tarde para algumas centenas de corpos sem vida que acabam sepultados no Mediterrâneo. É o resultado da política de não criar corredores de migração seguros e de não abolir a violência perpetrada nas fronteiras. Isto sucede amiúde: barcos abatidos, jogos de batalha naval com seres humanos incluídos.

Uma das grandes ironias com que se tece a malha dos movimentos migratórios nos nossos dias é que ninguém no mundo migra tanto como os europeus. Em 2020, do total de 281 milhões de migrantes internacionais que existem no mundo, 63 milhões (23%) são europeus. Na África Subsariana são menos de metade, 28 milhões. Em ambos os casos a grande maioria dos migrantes internacionais move-se entre países localizados na mesma região (International Migration Outlook 2020).

«os corpos migrantes que agora vagueiam em Ceuta desafiaram o seu destino. Partiram em busca de trabalho, de sobrevivência para si e para as suas famílias, em busca de uma parte da abundância e da prosperidade que a Europa alcançou – alapada nos ombros das antigas colónias, diga-se»

É como sempre tem sido. Durante séculos, os europeus foram aqueles que chegavam de barco a terras onde já viviam povos. Invadiram, espoliaram, raptaram, violaram, exploraram, destruíram formas de economia e modos de vida existentes, enriquecerem, empobreceram os outros. Hoje em dia, os países ocidentais continuam a tirar dividendos: petróleo, gás, minérios, endividamento dos países, venda de armamento para fazer a guerra, mais os efeitos das alterações climáticas que forçam milhões a abandonar as regiões onde vivem (27% dos chamados «refugiados climáticos» estão na África Subsariana).

Não existem fronteiras quando o dinheiro «voa» dos países mais pobres para os mais ricos, mas muros são erguidos quando as pessoas desses países escolhem/são forçadas/têm a ousadia de seguir a mesma rota. Não se admite que «esses outros» procurem fazer o caminho inverso para disponibilizar a força do seu trabalho, para se cumprirem enquanto seres humanos.

Sem surpresa, também em Portugal, aos orgulhosos herdeiros dos tais que deram «novos mundos ao mundo», dos tais que tinham «uma só terra para nascer e o mundo inteiro para morrer», custa aceitar que o caminho se possa fazer em dois sentidos.

No entanto, e ao contrário do que tem sido sugerido nos últimos dias a propósito de Ceuta, África não está «em peso às portas da Europa». O que sucede é que «a Europa» olha para África e só se consegue ver ao espelho, encontrando reflectido um misto de ganância, ignorância, medo. E muito má consciência.

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