|Afeganistão

China defende investigação de massacres de civis afegãos durante ocupação dos EUA

Wang Wenbin afirmou esta quarta-feira que devem ser investigados a fundo os massacres de civis cometidos por militares norte-americanos e aliados durante os 20 anos de ocupação do Afeganistão.

Soldados australianos no Afeganistão
A China defende que os responsáveis pelos massacres de civis no Afeganistão devem ser julgados Créditos / Twitter

Numa conferência de imprensa em Pequim, o porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros respondeu a uma questão sobre assassinatos recentes de civis afegãos por parte das tropas norte-americanas durante a retirada do país da Ásia Central.

De acordo com algumas notícias, que citam sobreviventes do ataque terrorista nas imediações do Aeroporto de Cabul, no passado dia 26 de Agosto, as tropas dos EUA dispararam sobre a multidão após a explosão, provocando potencialmente mais vítimas mortais.

Wang afirmou que o seu país estava a par dessas notícias e sublinhou que não seria a primeira vez que os militares norte-americanos seriam protagonistas de «acontecimentos preocupantes» no Afeganistão.

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EUA e aliados lançaram 46 bombas por dia durante 20 anos

Os EUA e seus aliados lançaram pelo menos 326 mil bombas e mísseis em países do Médio Oriente, Norte de África e Ásia Central desde 2001. A conclusão é apresentada pelo Codepink – mulheres contra a guerra.

A cidade de Raqqa, destruída pelos bombardeamentos da aviação e da artilharia, após intensos meses de combate
Créditos / The Independent

Ao apresentarem os dados da investigação que realizaram, Medea Benjamin e Nicolas J.S. Davies, do grupo Codepink contra as guerras de agressão promovidas pelo imperialismo norte-americano, afirmam que «os media ocidentais noticiaram o ataque aéreo» decretado por Joe Biden contra forças iraquianas na Síria, no passado dia 25 de Fevereiro, «como um incidente isolado e excepcional».

«Mas – notam –, sem que muitos americanos o saibam, os militares dos EUA e os seus aliados estão envolvidos em bombardear e matar pessoas noutros países diariamente.»

Tendo em conta os dados a que tiveram acesso e conseguiram recolher, os investigadores afirmam que, desde 2001, os Estados Unidos e os aliados lançaram pelo menos 326 mil bombas e mísseis em países como o Iraque, a Síria, o Afeganistão, o Iémen, o Líbano, a Líbia, o Paquistão, a Palestina e a Somália. A média é de 46 bombas por dia nos últimos 20 anos.

Só no Iraque e na Síria foram lançadas pelo menos 152 mil bombas e mísseis. Só no Afeganistão a média diária é de 20 bombas por dia.

Os números a que os investigadores do Codepink chegaram baseiam-se sobretudo em publicações militares oficiais dos EUA, além de dados divulgados pelo Bureau of Investigative Journalism, o Yemen Data Project e a New America Foundation.

Ainda assim, mesmo sendo impressionantes, os números divulgados representam uma estimativa que os autores assumem que fica aquém dos números «reais». Isto porque, em Março de 2020, a administração de Donald Trump deixou de fornecer este tipo de dados – relativos ao Iraque, à Síria e ao Afeganistão – e a administração de Joe Biden nunca o fez.

Além disso, os números apresentados não incluem bombas ou mísseis utilizados em ataques de helicópteros, os ataques realizados a partir dos aviões Lockheed AC-130 – que, segundo o Codepink, são armas de destruição massiva e foram usados pelos EUA no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Somália e na Síria – e os ataques aéreos realizados com canhões de 20 e 30 milímetros a baixa altitude.

Também não incluem as operações «antiterroristas» ou de «contra-insurgência» em qualquer outra parte do mundo. A este propósito, o Codepink lembra que os EUA formaram uma coligação com países da África Ocidental em 2005 e que não há dados sobre ataques aéreos dessa coligação na região, ou nas Filipinas ou na América Latina ou em qualquer outro lugar do mundo.

De acordo com quadro apresentado pelos investigadores, relativo ao período que vai de 2001 a 2021, os EUA e aliados lançaram pelo menos 152 096 bombas e mísseis no Iraque e na Síria, 81 638 no Afeganistão, 65 534 no Iémen e 26 712 noutros países (Líbano, Líbia, Palestina, Paquistão e Somália).

«Guerra, guerra e mais guerra»

A propósito da publicação dos dados pelo Codepink, o jornalista norte-americano Alan MacLeod lembra que tanto Barack Obama como Donald Trump apresentaram uma retórica anti-guerra quando estavam em campanha, e, chegados à Casa Branca, ambos se afastaram firmemente desse posicionamento.

Num artigo publicado no portal mintpressnews.com, MacLeod afirma que «muitos dos primeiros passos da administração de Biden mostram que haverá mais uma continuação do que uma ruptura com a política externa anterior dos EUA no Médio Oriente».


No que toca ao Iémen, o autor defende que, apesar das promessas de Biden, a linguagem do Departamento de Estado deixa claro que os EUA estão meramente a regressar ao posicionamento de Obama sobre o conflito.

Relativamente à ocupação da Palestina, Biden apoiou inteiramente a decisão de Trump de mudar a Embaixada norte-americana em Israel para Jerusalém. Recentemente, a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, em reunião com Benjamin Netanyahu, reafirmou o «compromisso inabalável» da Casa Branca com Israel e a sua segurança.

Em relação ao Irão, Biden, além de ter enquadrado o ataque recente à Síria como uma «mensagem» ao país persa, tem andado a «arrastar os pés» para levantar as sanções impostas e voltar à mesa de negociações, de modo a incluir o país no acordo nuclear que Donald Trump abandonou, nota MacLeod.

«Apesar de os EUA gastarem quase tanto na Defesa como todos os outros países juntos, o impacto da guerra não é em grande medida sentido nos Estados Unidos», destaca ainda o autor, que lembra as palavras dos investigadores do Codepink: «Os americanos e o mundo são deixados quase completamente às escuras sobre a morte e a destruição que os líderes do nosso país continuam a causar em nosso nome.»

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O representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China lembrou de seguida vários outros casos em que as tropas dos EUA alegadamente provocaram massacres entre a população civil ou feriram quem tinham sob sua custódia, refere a RT.

O caso mais recente que foi reportado, ocorrido a 29 de Agosto, diz respeito a um ataque com drones a um edifício residencial em Cabul, realizado pelo Exército norte-americano por alegados motivos antiterroristas. Como consequência, dez civis foram mortos.

O diplomata disse que a China anotou cada «caso», destacando que estes mostram como o assassinato de civis pelos norte-americanos era frequente no Afeganistão.

«Casos» anotados de 2002 a 2019

Um dos casos referidos por Wang foi um ataque aéreo em 2002, que atingiu uma festa de casamento na província de Uruzgan, provocando dezenas de mortos e mais de cem feridos.

Recordou, igualmente, como em 2008 um ataque aéreo a uma aldeia na província de Herat deixou um saldo de cem civis mortos.

Wang referiu-se ainda a ataques ocorridos em 2010, 2012, 2015 e 2019, perpetrados tanto pelas forças norte-americanas como pelas da NATO.

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Intervenção dos EUA no Afeganistão está longe de terminar

Joe Biden anunciou que estava «na hora de as tropas voltarem para casa». Outros foram mais precisos sobre os planos do Pentágono: mercenários, guerra à distância, operações especiais.

Paraquedistas norte-americanos numa operação em Lwar Kowndalan, Afeganistão, em Outubro de 2005
Créditos

A propósito da declaração do presidente norte-americano sobre o «fim» da guerra norte-americana no Afeganistão, no passado dia 14, Sonali Kolhatkar, que escreve para o Independent Media Institute, afirma que quase tudo o que Biden disse sobre o fim da intervenção no país asiático é «mentira».

Pouco depois, o diário The New York Times (NYT) deixou antever os planos futuros: «o Pentágono, agências de espiões americanas e aliados ocidentais estão a apurar os planos para destacar uma força menos visível mas ainda assim potente na região.»

Jeremy Kuzmarov, editor da CovertAction Magazine, também se refere ao anúncio de Biden como «enganador» e, reportando-se ao NYT, afirma que, depois da saída formal das tropas norte-americanas, os EUA se vão manter no Afeganistão por via de uma «combinação obscura de Forças de Operações Especiais clandestinas, mercenários a soldo do Pentágono e agentes secretos de inteligência».

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Afeganistão, onde as pessoas são o que menos interessa

Passado e presente de um país ainda com futuro. História, política e economia de uma região na encruzilhada de continentes e de civilizações, devastada pela geoestratégia imperial dos EUA.

Um homem carrega outro, ferido, para o hospital, depois de um rebentamento de bomba. Cabul, Afeganistão, 31 de Maio de 2017
Créditos/REUTERS/Mohammad Ismail

Falar do Afeganistão, 16 anos depois de as Twin Towers ainda esperarem a verdade desse massacre fundador, é um percurso de dor e de uma consciência que se vai construindo, através das peças de um puzzle onde as pessoas parecem ser o que menos interessa.

Mas também constitui uma oportunidade para recuperar hoje elementos essenciais da situação no Afeganistão para se compreender como tudo surgiu e porque muito ainda se mantém.

A recente série de atentados terroristas no Afeganistão

Há duas semanas, no dia 29 de Janeiro, um ataque suicida perpetrado por cinco atacantes, contra um posto militar em Cabul, próximo da principal academia militar do país, deixou 11 soldados mortos e 15 feridos. Quatro dos atacantes foram mortos ou fizeram-se explodir e um quinto terrorista foi preso. O ataque foi reivindicado pelo Estado Islâmico (EI, Al-Qaeda e Talibans interpenetram-se num jogo de espelhos comandado por serviços secretos ocidentais que os criaram e/ou assessoraram).

Foi mais um de uma série recente de ataques no Afeganistão. No sábado anterior, dia 27, outros terroristas usaram uma ambulância-bomba para matar 103 pessoas e ferir outras 235. O chefe da missão da ONU no Afeganistão, Tadamichi Yamamoto, classificou o ataque como uma «atrocidade». No dia 24, um grupo tinha atacado a sede da ONG «Save the Children» em Jalalabad, provocando três mortos e 24 feridos. No dia 20, um ataque armado ao luxuoso Hotel Intercontinental de Cabul causara 19 mortos, 14 dos quais estrangeiros, provocando um grande incêndio em vários andares do prédio.

Para compreender esta agressividade assassina crescente, o jornalista afegão Masud Waganas referia, há dias, existirem fortes rivalidades geopolíticas entre poderes, imperialistas e hegemónicos, relativas aos recursos naturais do Afeganistão e às rotas comerciais e de trânsito, atendendo à localização geoestratégica do país, tendo essas rivalidades crescido de forma significativa nos últimos anos.

O legado do Império Britânico, o regime democrático e socialista, a intervenção soviética e o regime Taliban

Desde o século XVIII a Inglaterra deteve o monopólio da produção de ópio na Índia, que estendeu depois ao Afeganistão. No Afeganistão a resistência à ocupação malogrou uma primeira tentativa de os ingleses destronarem o rei Dost Mohammad. No início de 1842 os ingleses foram forçados a deixar Cabul e, na retirada para Jalalabad, deixaram na neve 17 mil corpos de militares e auxiliares. A Inglaterra torneou a questão cortando os acessos do Afeganistão ao mar, retirando-lhe o território para cá das cordilheiras do Hindu Kush.

Preocupada com o vizinho Império Russo, a Inglaterra realizou novas intervenções e, sem consultar os afegãos, acabou por assinar com aquele uma convenção, em 1907, que retirou parcelas ao país e resultou no afastamento dos Pashtuns, que integravam o Afeganistão desde tempos imemoriáveis.

Cerca de 90 anos tarde foi precisamente entre as rebeldes tribos Pashtun que nasceu o movimento Taliban, que, em poucos anos, ganhou a guerra civil e se estabeleceu no poder no Afeganistão. Desalojado do governo de Cabul pela intervenção americana, ainda hoje dominam boa parte do território afegão e mantêm em cheque o governo de Karzai e os seus aliados americanos.

Em 22 de Novembro de 1917, menos de uma semana após a Revolução Bolchevique, o governo soviético denunciou e tornou públicos os tratados assinados pelo governo czarista, anulando os entendimentos entre britânicos e russos acerca do Afganistão. O rei Amanullah declarou a independência do país em relação ao império britânico em 1915 e tentou fazer regressar os Pashtun ao país mas os ingleses reagiram com mais uma guerra anglo-afegã (a terceira em 80 anos) e o objectivo não foi atingido. Face às tentativas de reunificação pacífica, os britânicos, em 1920, enviaram uma força conjunta de dois mil ingleses e indianos que mataram quatro mil habitantes de aldeias no Noroeste.

O rei tornou-se um liberalizador: reforçou o exército; aboliu a escravatura e os trabalhos forçados; defendeu maiores liberdades para as mulheres, desencorajou o uso do véu e a opressão feminina; e introduziu oportunidades educativas para as mulheres.

Em 1924 ocorreram violentas revoltas dos islamitas conservadores na cidade fronteiriça de Khost, que foi dominada pelo exército afegão. A revolta foi uma reacção às reformas sociais de Amanullah, particularmente a educação pública para meninas e uma maior liberdade para as mulheres. O historiador afegão Abdul Samad Ghaus escreveu em 1988: «A Grã-Bretanha foi vista como culpada no caso, manipulando as tribos contra Amanullah na tentativa de provocar a sua queda.» Em 1929 grandes revoltas das tribos conservadoras levaram à queda do rei, com a suspeição geral que os ingleses tinham estado por detrás disso.

A intervenção norte-americana começa a ocorrer após a Segunda Guerra Mundial, em 1950, a partir da Directiva 68 de Segurança Nacional onde se afirmava que a URSS tinha o «desígnio do domínio do mundo». Em 1956 os EUA construíram em Kandahar um aeroporto internacional que servia a actividade de bombardeiros para a declarada eventualidade de um confronto com a URSS. No início dos anos 70 a CIA garantiu a retaguarda dos radicais islâmicos até ao início de 1973.

Entretanto no Afeganistão, em 1978, ocorreu uma revolução dirigida pelo Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA), comunista. Em Agosto de 1979, um relatório classificado do Departamento de Estado afirmava: «os interesses maiores dos Estados Unidos (…) serão satisfeitos com o desaparecimento do actual regime afegão, apesar de quaisquer contratempos que isso possa significar para as futuras reformas sociais e económicas no Afeganistão.»

Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional do presidente Carter, admitiu, após a guerra contra os soviéticos, que a CIA fornecia ajuda secreta aos Mujahideen afegãos seis meses antes da invasão soviética. E salientou que a intenção dos EUA ao fornecer essa ajuda era «atrair os russos para a armadilha afegã». No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira, afirmou ter escrito ao presidente Carter: «agora temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietname.» A intervenção soviética no Afeganistão, a 26 de Dezembro de 1979, a pedido do governo afegão, envolveu as forças soviéticas no apoio ao governo marxista do PDPA contra os fundamentalistas islâmicos, principalmente Mujahideen.

Após a intervenção, os Estados Unidos foram rápidos em fornecer armas aos Mujahideen. Em Fevereiro de 1980, o Washington Post informou que eles estavam a receber armas provenientes do governo dos EUA. Os montantes foram significativos: 10 mil toneladas de armas e munições em 1983, que foram crescendo e atingiram 65 mil toneladas 1987, de acordo com Mohammad Yousaf, general paquistanês que supervisionou a guerra secreta de 1983 a 1987. Milton Bearden, chefe da estação da CIA no Paquistão de 1986 a 1989, que foi responsável por armar os Mujahideen, comentou: «Os EUA estavam a lutar contra os soviéticos até ao último afegão».

Estima-se que os EUA e a Arábia Saudita deram 40 mil milhões de dólares em armas e dinheiro aos Mujahideen fundamentalistas ao longo da guerra. O dinheiro foi canalizado através do governo do Paquistão, que usou algum dele para criar milhares de escolas religiosas islâmicas fundamentalistas (madrassas) para as crianças refugiadas afegãs que inundaram o país. Estas tornaram-se as instituições de formação para os Talibans.

Em Maio de 1988 a União Soviética começou a retirada das suas tropas do território afegão, uma retirada que só completou em Fevereiro de 1989. Porém, mesmo após a retirada, a guerra civil continuou no país até os rebeldes tomarem Cabul, em Abril de 1992, assassinando o presidente deposto, Mohamed Najibulah, que tivera o apoio dos soviéticos.

O país passou a ser uma república islâmica e, no ano seguinte, uma assembleia nacional, composta por várias facções rivais, líderes tribais e religiosos, aprovou a criação de um novo parlamento. Esta união entre as várias facções durou pouco tempo. Violentas disputas internas favoreceram a ascensão de uma nova força política, os Talibans, grupo fundamentalista islâmico financiado pelo Paquistão. A partir daí foram anos de destruição do país, da sua cultura, dos direitos dos cidadãos, de assassinatos em massa que conduziram o país ao que hoje existe: um país de privações alimentares; de habitação, saúde, e de direitos democráticos condicionados; com regras rígidas para as mulheres e destruído por sucessivas guerras.

As potências ocidentais mantiveram-se impávidas e serenas. Para elas o importante tinha sido a queda de um regime alinhado com a URSS e a saída desta do país. Assistiram a anos de uma loucura indescritível e os EUA só lá entraram em 2001 por razões relacionadas com os seus interesses económicos de exploração das riquezas naturais e estratégicos de expansão para leste.

O regime socialista e as transformações no Afeganistão (1978-1992)

Atendendo ao que fui estudando nestes anos, de entre as diferentes narrativas sobre este período subscrevo a de Dana Visalli, agricultora biológica norte-americana e comentadora de política internacional.

1. Legislação. Direitos.

O novo governo iniciou um programa de reformas que eliminou a usura, lançou uma campanha de alfabetização, eliminou a cultura do ópio, legalizou os sindicatos, estabeleceu um salário mínimo e diminuiu entre 20% e 30% os preços dos bens mais necessários, introduziu o ensino superior qualificado para os trabalhadores, aumentou os salários numa média anual de 26% e os salários mais baixos em 50%.

O Estado subsidiou, para os manter, os preços de bens básicos, como a gasolina, o gasóleo, o querosene («petróleo») ou o açúcar, enquanto outros, como o trigo, a farinha e a lenha, passaram a ser vendidos a preços fixos.

Quanto aos direitos das mulheres, o regime socialista concedeu a permissão para não usar véu, aboliu o dote, promoveu a integração das mulheres no trabalho (245 mil trabalhadoras, sendo 40% dos médicos mulheres) e a alfabetização (o analfabetismo feminino foi reduzido de 98% para 75%); 60% do corpo docente da Universidade de Cabul passou a ser de mulheres, 440 mil mulheres passaram a trabalhar na educação e 80 mil participaram na campanha de alfabetização. O mesmo aconteceu na vida política. As mulheres passaram a ter, por lei, direitos iguais aos dos homens.

A taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos diminuiu de 38% em 1960 para 30% em 1988, 80% da população urbana passou a ter acesso aos serviços de saúde e a expectativa de vida, de 33 anos em 1960, passou para 42. Duplicou o número de camas hospitalares. Aumentou em 50% o número de médicos. Pela primeira vez foram criados jardins-de-infância e casas de repouso para os trabalhadores.

Foi realizada a cobertura hospitalar e de centros de saúde, mesmo nas regiões rurais remotas. O acesso aos cuidados de saúde era gratuito e os medicamentos eram vendidos a preços acessíveis, e para os mais pobres, os medicamentos eram entregues gratuitamente.

Centenas de milhares de pessoas foram alfabetizadas e 63% das crianças frequentaram o ano escolar em 1985.

Foi fundada a Academia de Ciências (1980), o Instituto Pedagógico (1987) e universidades em Balha (1988), Herat (1988) e Kandahar (1990). O Afeganistão enviou para o espaço o primeiro e único cosmonauta da sua história, Abdul Ahad Mohmand, em 1988. Também desenvolveu a cinematografia nacional.

Inicialmente a religião foi separada do Estado, mantendo-se a liberdade de culto. Mais tarde, foi criado um fundo estatal para a reparação e construção de mesquitas e anulada a expropriação de terras do clero. Em 1987, o Islão foi restaurado como a religião oficial do Estado.

2. Economia

Depois da revolução, o governo Taraki nacionalizou sectores estratégicos da economia e a realizou uma reforma agrária, que incluiu a formação de cooperativas agrícolas e a expropriação de terras dos latifundiários e sua distribuição entre os camponeses (o limite da propriedade privada da terra era de seis hectares).

A proporção de indústrias extractivas e transformadoras cresceu de 3,3% do PIB em 1978 para 10% em 1985. No mesmo período, o investimento na indústria nacional ultrapassou em 80% todos os investimentos nos vinte anos anteriores à Revolução. Em 1984, os investimentos em sectores estatais e mistos aumentou em 50%. Nesse ano foram criadas 100 novas empresas. Em 1984, as colheitas ultrapassaram significativamente as anteriores.

O reforço do sector público não excluiu o sector privado. No governo Karmal foi fundada a Câmara de Comércio e Indústria, com o objectivo de reunir representantes de capitais privados de mais de vinte associações de comerciantes.

Com a ajuda da União Soviética, no sector estatal da economia foram construídas cerca de 200 empresas, que passaram a fornecer a maior parte da produção global. Entre elas as empresas hidro-eléctricas e a Puli-Humri Naghlu, a fábrica de fertilizantes de azoto em Mazar-i-Sharif, uma empresa de panificação e outra de casas pré-fabricadas em Kabul.

A Checoslováquia abriu um alinha de crédito para ser construída uma linha de eléctricos em Cabul, equipadas minas de carvão e construída uma fábrica de cimento em Herat. Com créditos da Bulgária, foi construída uma grande exploração aviária, explorações de ovinos e de seda, outras empresas de aves, de produtos lácteos, tijolo e curtumes, e duas empresas para o sector das pescas. A Alemanha Oriental participou da criação de uma central telefónica automática em Cabul, que estabeleceu as linhas de comunicação e a ampliação do sistema de fornecimento de electricidade em várias cidades. A Hungria participou da construção de uma empresa farmacêutica.

Para além do comércio com o campo socialista, no início dos anos 80, o volume de comércio entre o Afeganistão e o Japão tinha aumentado 33% e ambos os países criaram a empresa comercial conjunta Nichi-afegã Lda. Também o comércio com a Índia aumentou em 50%.

A guerra civil viria a provocar graves danos para a economia afegã. Só até 1985 o número de perdas tinha sido de 35 mil milhões de afegãos (moeda). Com os Talibans todos os avanços do país foram destruídos e regressou-se a um profundo obscurantismo.

2001: a invasão norte-americana

Em 2001, os EUA e a NATO invadiram o Afeganistão, fizeram dele um protectorado, com dirigentes que, apesar de formalmente eleitos, foram sendo afastados em função dos «superiores interesses dos EUA». O caso mais notório foi o de Hamid Karzai, que foi presidente do país entre 2004 e 2014, afastado por não aceitar o estatuto do Paquistão como base de grupos terroristas como os EUA queriam.

Os EUA ensaiaram para 2014 uma «saída» das suas tropas que acabou por se traduzir apenas num outro modelo de protectorado, com os Talibans e outros grupos terroristas a servirem os interesses estado-unidenses de desestabilização regional, incluindo em outros países, como a Síria ou as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central que fazem fronteira com a Rússia e a China.

Em 30 de Setembro de 2014, o Afeganistão, os Estados Unidos e a NATO assinaram um acordo para justificar formalmente a presença de um contingente militar limitado no estado da Ásia Central, após a retirada formal das forças internacionais. Uma força de seguimento de cerca de 12 mil soldados permaneceu em 2015 em tarefas de treino e apoio. No final desse ano, cerca de 41 mil soldados da NATO permaneciam no Afeganistão lutando contra a revolta de Talibans, ao lado de soldados e polícias afegãos, com o mandato de missão de combate da NATO a terminar em Dezembro. Os EUA falharam redondamente o seu programa de formação de polícias e os afegãos passaram a confiar ainda menos neles.

Em Agosto passado Trump anunciou ir continuar a guerra no Afeganistão. Em reacção, um porta-voz dos Talibans condenou essa decisão de Trump e disse, citado pela France Press, que o grupo terrorista continuaria a jihad no país, afirmando ainda que o país se tornaria num «cemitério» dos EUA após a decisão de Trump de enviar mais tropas para o Afeganistão. Na sequência disso, o secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, declarou que o movimento Taliban seria incapaz de alcançar uma vitória militar no Afeganistão mas que, no entanto, poderia receber um estatuto legal através de negociações…

A nova estratégia dos EUA no Afeganistão inclui a expansão de forças de autoridade para atacar terroristas. No entanto, Trump disse que os Estados Unidos não revelariam o número de tropas ou quaisquer futuros planos de acção militar no Afeganistão.

A vaga de atentados em Janeiro de 2018 revela a falência dessas e anteriores estratégias e a liberdade de circulação dos Talibans, al-Qaeda e Estado Islâmico.

Os objectivos geoestratégicos

Apesar de 16 anos de uma pesada presença dos EUA, a fim de estabelecer a sua hegemonia no Afeganistão e para além dele, a influência de potências regionais como a Rússia, China, Irão, Paquistão e a Índia está a crescer. No entanto, os EUA mantêm um papel desestabilizador na região, tendo em vista estabelecer um domínio imperial alargado numa situação internacional onde já não têm a mesma capacidade de influência.

Esta estratégia tem girado em torno de variantes da chamada Doutrina Wolfowitz (subsecretário de Estado de George Bush pai), que visou «prevenir o surgimento de um poder regional ou global que pudesse desafiar o estatuto hegemónico único por parte dos EUA» e a sua cavalgada até à China, para garantirem recursos energéticos e minerais que implicariam uma ocupação logística de uma vasta parte da Eurásia, com governos de fidelidade garantida.

Era um sonho louco, desmentido após as invasões do Iraque e do Afganistão, de várias «revoluções coloridas», da introdução do «caos» como melhor forma de gerir o terrorismo, do narcotráfico, da exploração sem regras de petróleo e riquezas minerais. Evitar um trajecto comercial normal entre países, para o deixar entregue a bandidos que fazem a administração desses imensos espaços, destruiu o Afeganistão e outros países, como a Líbia. Mas há fortes realidades que hoje pesam em sentido diferente desta cavalgada diabólica.

Dezasseis anos depois da guerra mais longa da sua história, os EUA no Afeganistão tomam atitudes que dependem mais do que entendem ser a necessidade de reagirem à derrota na Síria, podendo acrescentar-se-lhe a do Iraque, onde hoje é significativa a influência da Rússia e do Irão, com a China mais distanciada, apesar de já estar a fechar contratos com o Afeganistão.

Trump pode estar a transformar esta guerra «em aberto» desde 2001 numa guerra em termos qualitativos e quantitativos muito diferentes da dos seus antecessores na Casa Branca. Mas está limitado, pese embora a pressão do Pentágono para o aventureirismo sem medir consequências.

A CIA, os terroristas e o controlo da heroína

Vale a pena lembrar aqui a história do comércio de drogas do Crescente Dourado, que está intimamente relacionado com as operações secretas da CIA na região desde a guerra contra os soviéticos e as consequências que isso teve.

Ate à revolução socialista a cultura do ópio (papoila) era vasta e controlada pelos ingleses. Depois da revolução, a produção de ópio foi proibida no Afeganistão e no Paquistão, e foi dirigida a pequenos mercados regionais. Não existia produção local de heroína (Alfred McCoy, «Drug Fallout: quarenta  anos de cumplicidade da CIA no comércio de narcóticos», The Progressive, 1/08/1997).

A economia afegã de narcóticos foi um projecto cuidadosamente preparado pela CIA, apoiado pela política externa dos EUA e intimamente relacionado com as operações secretas da CIA na região, desde a guerra contra os soviéticos.

Conforme revelado nos escândalos Irão-Contra e Bank of Commerce e Credit International (BCCI), as operações secretas da CIA em apoio aos Mujahideen afegãos foram financiadas através da lavagem de dinheiro da droga. O «dinheiro sujo» foi reciclado - através de várias instituições bancárias (no Médio Oriente), bem como através de empresas anónimas da CIA, com «dinheiro encoberto» usado para financiar vários grupos insurgentes durante a guerra contra os soviéticos.

Em «The Dirtiest Bank of All» pode ler-se que «os EUA queriam fornecer aos rebeldes Mujahideen no Afeganistão mísseis stinger e outros equipamentos militares, E precisavam da cooperação total do Paquistão. Em meados da década de 1980, a estação da CIA em Islamabad era uma das maiores estações de inteligência dos EUA no mundo. A revista Time de 29/07/1991, a páginas 22, revelava que «os EUA se voltaram para o tráfico de heroína no Paquistão», citando um oficial dos serviços secretos dos EUA.

O estudo do investigador Alfred McCoy confirmou que, depois da operação secreta da CIA no Afeganistão em 1979, «as fronteiras do Paquistão e o Afeganistão tornaram-se o maior produtor de heroína do mundo, fornecendo 60% da procura dos EUA. No Paquistão, a população viciada em heroína passou de quase zero em 1979 para 1,2 milhões em 1985, um aumento muito mais acentuado do que em qualquer outra nação».

E que «os activos da CIA controlaram novamente esse comércio de heroína. À medida que os guerrilheiros Mujahideen ocuparam território dentro do Afeganistão, pediram que os camponeses plantassem o ópio como um "imposto revolucionário". Em toda a fronteira no Paquistão, líderes afegãos e grupos de bandidos locais, sob a protecção dos serviços secretos do Paquistão, faziam funcionar centenas de laboratórios de heroína. Durante esta década de 1979 a 1989 de tráfico aberto de drogas, a Agência de Controle de Drogas (DEA) dos EUA em Islamabad não levantou processos ou fez prisões».

Continua McCoy: «funcionários dos EUA recusaram-se a investigar acusações de heroína por parte de seus aliados afegãos porque a política de narcóticos dos EUA no Afeganistão foi subordinada à guerra contra a influência soviética. Em 1995, o ex-diretor da CIA em operação no Afeganistão, Charles Cogan, admitiu que a CIA realmente sacrificou a guerra contra as drogas para fazer a Guerra Fria.»

As vastas reservas de minerais e gás natural do Afeganistão: a cereja em cima do bolo que os afegãos estão impedidos de comer

De acordo com um relatório conjunto do Pentágono, do U.S. Geological Survey (USGS) e a USAID, revelaram-se no Afeganistão em 2010 reservas de minerais «anteriormente desconhecidas» e inexploradas, estimadas na ordem dos mil milhões de dólares («EUA identificam grandes riquezas minerais no Afeganistão», New York Times, 14/06/2010; veja-se também a BBC, 14/06/2010): «os depósitos anteriormente desconhecidos - incluindo grandes veias de ferro, cobre, cobalto, ouro e metais para industrias críticos como o lítio - são tão grandes e incluem tantos minerais que são essenciais para a indústria moderna, que o Afeganistão poderia eventualmente ser transformado num dos mais importantes centros mineiros mundiais, acreditam os funcionários dos Estados Unidos.»

Um memorando interno do Pentágono, por exemplo, afirma que o Afeganistão poderia tornar-se a «Arábia Saudita do lítio», uma matéria-prima chave na fabricação de baterias para laptops e blackberrys.

A vasta escala da riqueza mineral do Afeganistão foi descoberta por uma pequena equipa de funcionários do Pentágono e geólogos americanos. O governo afegão e o presidente Hamid Karzai foram posteriormente informados, segundo afirmaram autoridades americanas.

Embora possa levar muitos anos para desenvolver uma indústria de mineração, o potencial é tão grande que funcionários e executivos da indústria acreditam que isso poderia atrair investimentos pesados mesmo antes de as minas se tornarem lucrativas, proporcionando a possibilidade de empregos que acabassem com o estado de guerra.

O valor dos depósitos minerais recém-descobertos diminui o peso relativo da economia de guerra do Afeganistão, baseada em grande parte na produção de ópio e tráfico de narcóticos, e poderá abrir perspectivas para uma economia livre dessa actividade criminosa.

Rematemos, regressando ao título deste artigo: «Afeganistão, onde as pessoas parecem ser o que menos interessa».

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Com uma constelação de bases aéreas na região do Golfo Pérsico, os EUA mantêm uma posição privilegiada para bombardear ou lançar ataques com drones no Afeganistão. Um ex-agente da CIA e especialista em contra-terrorismo, Marc Polymeropoulos, foi bem mais preciso do que Biden sobre o modo como as coisas se devem passar daqui para a frente e disse-o ao NYT: «Aquilo de que estamos a falar de facto é sobre como recolher informações secretas e, depois, agir contra alvos terroristas sem [termos] qualquer infra-estrutura ou pessoal no país para lá da embaixada em Cabul.»

O secretário da Defesa, Lloyd Austin, fez questão de sublinhar a capacidade dos EUA para levar a cabo a guerra sem tropas no terreno, tendo afirmado que «provavelmente, não há um local no Planeta que os Estados Unidos e os seus aliados não consigam alcançar», nota Sonali.

Os «privados», mercenários a soldo com contratos milionários

Outra coisa a que Biden não se referiu no seu discurso à nação foi aos «privados» que os EUA empregam no Afeganistão. O NYT diz que são mais de 16 mil; Jeremy Kuzmarov afirma que, em Janeiro, estavam no país da Ásia Central 18 mil mercenários, segundo um relatório do Departamento da Defesa.

Para cada soldado norte-americano presente no Afeganistão havia sete mercenários, uma proporção que, segundo Kuzmarov, reflecte a estratégia norte-americana de proceder ao outsourcing da guerra, para beneficiar empresas privadas de mercenários e como forma de distanciar a guerra do público, tornando-a menos visível e controlando-a à distância, como os EUA fizeram noutros países.

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Privatizar a Guerra

A existência de empresas de mercenários com dimensão para privatizar uma guerra é um sinal da ligação entre a guerra e interesses económicos privados e um motivo de preocupação para os amantes da paz.

Mercenários da Spear ao serviço dos Emiratos Árabes Unidos
CréditosFonte: Buzzfeed News

A ficção oferece exemplos de mercenários heróicos e defensores do bem, como em Os Sete Samurais, de Kurosawa, ou na série televisiva Soldados da Fortuna (The A Team). Na verdade, a história de soldados a soldo, dispostos a lutar onde e para quem paga melhor é plena de episódios onde figuras ou nações ricas contratam mercenários para impor a sua vontade, reprimir, conquistar e aniquilar. A título de exemplo, recorde-se o uso dos gurkhas nepaleses pela Companhia das Índias Ocidentais, ou da Pinkerton, uma força privada de segurança dos EUA usada por vários empresários, incluindo Andrew Carnegie, para combater o movimento de trabalhadores, incluindo infiltrar sindicatos, intimidar «agitadores», proteger os fura-greves e reprimir grevistas.

À semelhança de outras áreas de actividade económica, também os mercenários, nas suas diferentes formas, têm ganho dimensão e evoluído à medida que o capitalismo, e a sua fase de imperialismo, se desenvolve. A britânica G4S desenvolve actividades em 125 países (incluindo a segurança em Jerusalém Ocidental e a gestão de cinco prisões israelitas, com conhecidos casos de tortura de presos palestinianos) e emprega mais de 570 mil pessoas, sendo o segundo maior empregador do mundo a seguir à Walmart. Tudo isto apesar da Convenção das Nações Unidas sobre Mercenários, que entrou em vigor em 2001, a qual proíbe o recrutamento, treino, uso e financiamento de mercenários. Será necessário acrescentar que os EUA, Reino Unido e França, assim como a China, Rússia, Índia e Japão, são signatários?

Hoje grandes empresas colocam os seus «colaboradores» nos mais variados cenários de conflito, para executar funções distintas, desde a reparação automóvel e preparação alimentar em bases militares até segurança e assassinatos. Ainda esta semana foi reportado que os Emiratos Árabes Unidos (EAU) contrataram a Spear Operations Group – fundada por Abraham Golan, um israelita residente nos EUA – para executar um programa de assassinatos no Iémen. Um dos alvos dos mercenários estadunidenses, ex-forças especiais, foi um líder da al-Islah, organização que os EAU classificam de terrorista, mas que é reconhecido como um partido político legítimo, que se opõe à intervenção estrangeira no Iémen e conta entre os seus membros Tawakkul Karman, vencedora do Prémio Nobel da Paz em 2011. Um dos mercenários, ex-SEAL da Marinha dos EUA, Isaac Gilmore, é claro: «É possível que o alvo seja alguém que o Príncipe Herdeiro Mohammed bin Zayed não goste.» Refira-se que, desde 2009, os EUA aprovaram 27 mil milhões de dólares para os EAU em vendas de armas e «serviços de defesa».

Apesar dos muitos milhares de milhões gastos mundialmente em forças armadas nacionais e seu armamento, a área militar e de segurança privada tem crescido nas recentes décadas, ilustrando mais uma forma que o capitalismo encontrou para desviar fundos públicos para os bolsos dos privados. O exemplo anterior mostra também como o contra-terrorismo moderno se tem afastado de bombardeamentos estratégicos para a execução de indivíduos específicos, usando drones ou forças especiais. Ilustra também como as longas guerras ao Afeganistão e Iraque, a as forças especiais aí usadas, produziram indivíduos altamente treinados, prontos para serem recrutados pelas empresas privadas. Guerras que foram palco para o crescimento destas mesmas empresas, que receberem contratos multimilionários.

A empresa Blackwater1, hoje denominada Academi e tendo integrado, em 2014, o grupo Constellis Holdings, foi durante a segunda guerra ao Iraque a empresa que mais cresceu e beneficiou dos contratos públicos, e também a que mais claramente demonstrou o perigo do envolvimento de forças privadas em cenários de guerra, tendo sido documentados inúmeros casos de mortes de civis inocentes e tortura de capturados, mas também tráfego ilegal de armas e fraude.

Não estando protegidos pelas Convenções de Geneva nem podendo beneficiar dos apoios nacionais dados a ex-combatentes, estes modernos mercenários trabalhando em cenários de grande perigo físico e grande exigência psicológica carecem muitas vezes de garantias e apoios em caso de danos em combate. Por outro lado, funcionando paralelamente às forças regulares, estas empresas paramilitares funcionam à margem dos códigos que balizam a conduta das forças militares e até das leis nacionais do país de origem do mercenário e empresa contratante.

Diversos incidentes associados à Blackwater e outras empresas, levaram as Nações Unidas a estabelecer um Grupo de Trabalho sobre o Uso de Mercenários, tendo este concluído que, embora estas empresas muitas vezes sejam contratadas para fazer segurança, estão a realizar tarefas militares, e alerta para as «novas formas, manifestações e modalidades» das actividades mercenárias. Nada disto impede porém o Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE) da União Europeia de estar a decidir que empresa contratar, ao som de 100 milhões de euros, para realizar serviço de segurança no Afeganistão, país na prática ocupado pela NATO2.

Mas nada disto se compara com o plano de 5 mil milhões de dólares de Erik Prince – fundador da Blackwater e irmão da secretária de Educação de Trump, a bilionária Betsy DeVos – para privatizar a guerra no Afeganistão. Após a guerra na península Coreana, que formalmente ainda não terminou, e a guerra do Vietname, a guerra no Afeganistão é a terceira mais longa guerra em que os EUA alguma vez estiveram envolvidos (17 anos), levantando desafios militares e políticos a três presidentes. As actuais forças dos EUA no país totalizam 15 mil tropas, apoiadas por 20 mil privados (ou mercenários, paramilitares, como preferirem), o que corresponde já a uma redução desde o pico de mais de 140 mil tropas dos países da NATO em 2009/2010. Prince propõe-se substituir boa parte destas tropas por 2500 soldados das forças especiais e 6000 privados, apoiados por uma força aérea privada, eliminando as missões da NATO e apontando uma figura oficial dos EUA como «vice-rei para liderar todos os esforços do governo dos EUA e coligação – incluindo comando, orçamento, política, promoção e contratação – e reportar directamente ao presidente» dos EUA3. Segundo Prince, este plano podia acabar com a guerra em seis meses.

Prince já havia apresentado a proposta a Trump em 2017 e este e os seus conselheiros haviam então recusado a proposta. Mas face às mudanças no gabinete, Prince tem voltado a insistir na proposta durante os últimos dois meses, com várias reuniões e entrevistas nos EUA e no Médio Oriente, provocando inclusivamente uma reacção por parte do governo afegão, o qual caracterizou o plano como «destrutivo e divisivo», e que nunca permitiriam que «o combate contra o terrorismo se tornasse um negócio privado com fins lucrativos, afirmando ainda que «as forças de segurança e defesa afegãs, no quadro das leis nacionais, têm a responsabilidade e autoridade principal».

Existem algumas indicações de que Trump estará a dar alguma consideração ao plano de Prince. O Times de Londres reporta, em 5 de Outubro de 2018, que Prince atribui a recusa inicial de Trump como causada pelo rescaldo político da marcha neo-nazi em Charlottesville. Segundo Prince, Trump «disse logo a seguir “eu devia ter feito a mudança”». A substituição do comandante das forças dos EUA no Afeganistão pelo General Scott Miller, um veterano de operações especiais que serviu como fonte para as ideias de Prince, será indicação adicional de Trump estar a reconsiderar o seu plano.

Este plano em particular poderá ser ou não implementado, mas o mero facto de ser proposto – e portanto haver uma empresa de mercenários com a dimensão para privatizar uma guerra – e de estar a merecer alguma consideração é um sinal de alerta, para todos os amantes da paz, de que a interligação entre a guerra e interesses económicos privados se aprofunda, levando a novas formas de intervenção e alargamento dos conflitos no mundo.

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O editor da CovertAction Magazine afirma que, na sua maioria, os mercenários são antigos militares, embora haja um contingente de outros países, a quem são pagos baixos salários.

Uma das maiores empresas de mercenários, aponta, é a DynCorp International, de Falls Church (Virgínia), que em 2019 tinha recebido mais de sete mil milhões de dólares por contratos firmados com o governo para treinar o Exército afegão e para gerir as bases militares no país.

Entre 2002 e 2013 – afirma ainda Kuzmarov –, a DynCorp recebeu 69% de todos os fundos atribuídos pelo Departamento de Estado. «A Forbes Magazine chamou-lhe "uma das grandes vencedoras das guerras do Iraque e do Afeganistão" – sendo os perdedores quase todos os outros», disse.

O caos numa guerra que não começou em 2001

Sonali Kolhatkar lembra outras coisas não ditas por Biden citando Hakeem Naim, professor no Departamento de História da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nomeadamente que «os EUA criaram o caos ao apoiarem os grupos mais corruptos da elite e ao criarem um sistema económico mafioso gerido pelos senhores das drogas, os senhores da guerra e os mercenários».

Ao contrário do que se pretende fazer crer, Kolhatkar recorda que o «envolvimento destrutivo» dos EUA no Afeganistão não teve início em 2001, mas dura há mais de 40 anos, com a CIA a armar os mujahidin em guerra contra a tropas soviéticas.

Quando Biden, no seu discurso, afirmou que os EUA alcançaram os objectivos «claros» a que se propunham, a autora diz que os Estados Unidos fizeram muito mais que isso: «montaram um governo fantoche, impingiram a sua ideia de democracia a um povo que lutava com senhores da guerra armados e apoiados pelos EUA e, assim, garantiram que os movimentos democráticos seculares permaneciam fracos.»

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Tropas australianas assassinaram civis e prisioneiros afegãos, reconhecem chefias

Membros das forças especiais da Austrália «executaram ilegalmente» pelo menos 39 pessoas no Afeganistão, entre 2005 e 2016, revelou esta quinta-feira o chefe das Forças Armadas australianas.

Soldados australianos no Afeganistão
Créditos / Twitter

Angus Campbell admitiu os factos ao apresentar os resultados de uma investigação realizada pelo inspector-geral das Forças Armadas, Paul Brereton, sobre má conduta militar no Afeganistão, afirmando que existiam «provas credíveis» de que as forças especiais australianas tinham morto «ilegalmente» pelo menos 39 civis e prisioneiros afegãos em mais de uma década.

Numa conferência de imprensa que teve lugar esta quinta-feira em Canberra, Campbell afirmou que uma cultura de impunidade «destrutiva» entre as tropas de elite conduziu a uma cadeia de assassinatos e encobrimentos, perpetrados por 25 membros das forças especiais australianas em 23 incidentes separados.

De acordo com as conclusões do extenso relatório hoje apresentado – 465 páginas –, nenhum dos assassinatos, na sua maioria de prisioneiros, teve lugar durante combates, pelo que podem constituir um crime de guerra.

Além disso, a investigação descobriu que, em várias ocasiões, alguns soldados, novos na patrulha, foram coagidos a disparar contra um prisioneiro para alcançarem «a sua primeira morte», uma prática de iniciação conhecida como «sangramento».

Também foram encontradas provas de que, consumado o assassinato, as tropas especiais australianas por ele responsáveis encenavam um local de combate, colocando armas, rádios, granadas não registadas junto aos cadáveres, para dar a impressão de que representavam uma ameaça militar ou eram um alvo legítimo.

O texto documenta ainda a competição entre algumas patrulhas para terem um registo superior de «soldados inimigos» abatidos em combate.

O relatório, no entanto, exonera a chefia do Exército da responsabilidade pelos assassinatos, uma vez que Brereton não encontrou «provas» de que militares de alta patente tivessem conhecimento dos «homicídios ilegais», refere a RT.

Campbell afirmou que a morte ilegal de civis e prisioneiros jamais seria aceitável e pediu desculpas ao povo do Afeganistão pela «tragédia». Também pediu perdão ao povo da Austrália.

Scott Morrison, primeiro-ministro australiano, telefou esta quarta-feira a Ashraf Ghani, presidente afegão, para expressar o seu «mais profundo pesar», depois de o governo australiano ter passado anos a tentar silenciar vozes de alerta e relatórios sobre má conduta do pessoal militar do país.

O assassinato brutal de civis – alguns deles crianças – no Afeganistão ganhou notoriedade em 2017, quando o ABC publicou os chamados «The Afghan Files» [Os ficheiros afegãos], que trouxeram a público os crimes de guerra cometidos pelas tropas australianas no país asiático.

A Áustralia teve um papel activo no Afeganistão desde que os EUA e mais alguns aliados invadiram o país, em 2001. Seguiu-se a ocupação e a devastação, e a guerra continua até hoje. Se o regime dos talibãs saiu do poder, a sua actividade militar prosseguiu e, num caos em que nunca se instalou a segurança, o Daesh ganhou terreno.

Desde que tropas norte-americanas entraram no Afeganistão para combater os seus antigos aliados na guerra contra a República Democrática e o bloco socialista, muitos milhares de afegãos perderam a vida. Muitas dezenas de milhares.

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«Despejaram milhares de milhões numa guerra contra a droga para depois incentivarem a produção de drogas. Derrotaram os Talibã para depois escolherem o grupo rebelde como parceiro para a paz. Pelo caminho, mataram mais de 40 mil civis afegãos – provavelmente uma estimativa por baixo», diz Sonali Kolhatkar.

O presidente norte-americano não se referiu a nada disto, como não mencionou o facto de o actual governo afegão, profundamente corrupto, estar totalmente dependente dos EUA e à mercê da violência dos talibã, cada vez mais fortes, e de outros grupos fundamentalistas.

Em vez disso, Biden disse que, em 2001, «a causa era justa... E eu apoiei aquela acção militar». Décadas de guerra e de destruição de um país parecem justificadas pela abordagem «simplista»: «Nós fizemos justiça a Bin Laden há uma década e ficámos no Afeganistão mais uma década desde então.»

Os elevados custos que a população norte-americana teve de suportar para manter a guerra no Afeganistão, em termos económicos e humanos, não acabaram, destaca Kolhatkar. Milhares de milhões de dólares não bastaram e continuar-lhe-á a ser apresentada a conta dos ataques com drones e dos mercenários. E os afegãos continuarão a ser feridos, mutilados e mortos.

«Um verdadeiro processo de paz no Afeganistão depende da saída das forças estrangeiras do país», frisa Matthew Hoh, ex-combatente, deficiente e que em 2009 se demitiu do Departamento de Estado em protesto contra a guerra.

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Disse também que um ataque da NATO em 2015 provocou a morte a 15 polícias que participavam numa operação anti-narcóticos e que um ataque com drones dos EUA, em 2019, matou pelo menos 30 camponeses afegãos na província de Nangarhar.

De acordo com o responsável do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, o número de vítimas civis provocadas por ataques norte-americanos no Afeganistão supera de longe aquele que foi apresentado pela administração dos EUA, de acordo com a qual 47 245 civis afegãos foram mortos na guerra e ocupação lançadas por Washington há duas décadas.

Wang insistiu que todas as atrocidades reportadas têm de ser investigadas e que os responsáveis por elas têm de ser julgados. «Isto tem a ver com o direito internacional, a justiça internacional e o progresso dos direitos humanos», disse.

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