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A água virtual e a luta ambiental

Trabalhadores ligam tubagens a um comboio transportando água, numa estação em Chennai, Índia, a 12 de Julho de 2019. O subcontinente indiano é uma das zonas do globo mais afectadas pela falta de água potável
CréditosArun Sankar / AFP/Getty Images

Em 2008, após uma missão espacial, o astronauta e ex-futebolista Leland Melvin disse ter ficado espantado com a perspectiva dos oceanos vistos do espaço. Segundo ele, as cores eram tão variadas e intensas que deu por ele em busca de novas formas de descrever todos os tons de azul. Se tivermos em conta que cerca de 70% da superfície da terra é água, facilmente percebemos o seu deslumbramento. O planeta Terra é o único do sistema solar a apresentar percentagens tão elevadas de água à superfície e, como sabemos, este é um dos elementos essenciais para todos os seres vivos da Terra. O ser humano, por exemplo, não sobrevive mais de três dias, aproximadamente, sem água.

Sendo este um recurso que existe em abundância, estaríamos em condições de acreditar que a sobrevivência da nossa espécie estaria completamente garantida, se dependesse única e exclusivamente deste elemento. Contudo, os desígnios do Universo são insondáveis e estão repletos das mais fascinantes ironias. Apesar da elevada percentagem de água na natureza, estima-se que apenas 2,4% dela seja água doce e desta apenas 0,02% se encontra disponível e pode ser consumida.

Um recurso extremamente valioso

Este facto, tão relevante, torna a água num produto de mercado extremamente valioso. Os estudos de entidades como a Global Water Intelligence estimam que, em 2023, o mercado total da água pode chegar a uns 919,9 biliões de dólares. Com números desta magnitude, é justo dizer que, no futuro, a água terá uma relevância no mercado ao nível da que vem tendo, nas últimas décadas, o petróleo.

Como não poderia deixar de ser, empresas como a Goldman Sachs, grupo financeiro sobejamente conhecido em Portugal devido ao trágico caso do BES, e o Banco Credit Suisse, têm comprado ao longo dos últimos anos milhares de hectares de terra com rios e aquíferos um pouco por todo o mundo.

«[A sua escassez] torna a água num produto de mercado extremamente valioso. Os estudos de entidades como a Global Water Intelligence estimam que, em 2023, o mercado total da água pode chegar a uns 919,9 biliões de dólares. Com números desta magnitude, é justo dizer que, no futuro, a água terá uma relevância no mercado ao nível da que vem tendo, nas últimas décadas, o petróleo»

Nada de novo... O mercado organiza-se segundo tendências, padrões de consumo, entre outros artifícios. Os grandes grupos económicos limitam-se a fazer o de sempre, comportam-se como agentes do mercado livre transformando toda e qualquer fragilidade, mesmo as planetárias, numa oportunidade de negócio que não se pode deixar escapar.

É importante ressalvar que os grandes grupos económicos, ao focar o seu interesse na água, não estão a pensar nos consumidores domésticos. Estão, antes, a aguçar os seus interesses comerciais neste bem para todos os sectores industriais, que precisam de água para produzir os seus produtos, de forma quase mandatória.

Na indústria, existe um vasto leque de consumidores directos interessados neste produto. Em 2002, a UNESCO-IHE criou um conceito para medir a quantidade de água potável necessária para produzir alimentos ou mercadorias: a pegada hídrica.

Neste cálculo, os processos produtivos aparecem como importantes consumidores de água, uma vez que são necessários muitos litros de água para produzir praticamente tudo. A título de exemplo, para produzir uma t-shirt de algodão e um par de calças de ganga podem ser necessários até 12 700 litros de água potável.

Como é evidente, a distribuição geográfica de água potável não é homogénea. No globo, existem zonas onde esta água existe em maior abundância, como no Brasil, e outras em que a quantidade é bastante menor, como em países da União Europeia.

Neste capítulo, o Brasil exporta cerca de 112 triliões de litros de água por ano e cerca de metade vai para Europa. No continente europeu, cerca de 40% da pegada hídrica tem proveniência de países fora da Europa.

Do comércio da água à água virtual

O comércio de água para fins de produção ganhou a designação de água virtual, conceito desenvolvido pelo pesquisador britânico Tony Allan. Não nos deixemos iludir pela funcionalidade técnica do termo «virtual», já que este bem essencial é palpável, concreto e não se trata de algo imaginário ou subjectivo.

Sendo este um recurso caro e raro em todo o mundo é natural que as economias mais desenvolvidas não o queiram desperdiçar para produção. Como tal, preferem encontrar países capazes de lhes fornecer este bem tão precioso a preços competitivos, garantindo assim que a água que existe na Europa não é gasta para fabricar as novas tendências da moda no que a t-shirts e calças de ganga diz respeito.

«[…] redes logísticas de abastecimento de água virtual têm, para além de um evidente impacto ambiental inerente a uma eventual má utilização dos recursos hídricos, um outro impacto importante em CO² referente ao transporte marítimo, sector que está no top 10 em número de emissões. Chega a ser aterrador pensar que um sector tão importante para o desenvolvimento das nações tenha, por vezes, uma utilização tão irresponsável»

Mesmo na China, tantas vezes denominada a fábrica do mundo, Tony Allan, apesar de não ser propriamente um fã do regime, reconhece os esforços de sustentabilidade de uma economia planificada. Este admite que este tipo de economia é mais sustentável e consciente no que diz respeito ao consumo de água do que a economia de mercado ocidental.

Existe assim uma complexa e organizada rede de transporte de água virtual entre continentes para fazer face às necessidades de mercado promovidas pela indústria.

Multinacionais, como a Coca-Cola, optam por construir os seus complexos industriais em países onde lhes permite ter acesso a enormes bacias de água com maior facilidade legal. Outras, por seu lado, optam por importar água virtual de países menos desenvolvidos.

Estas redes logísticas de abastecimento de água virtual têm, para além de um evidente impacto ambiental inerente a uma eventual má utilização dos recursos hídricos, um outro impacto importante em CO² referente ao transporte marítimo, sector que está no top 10 em número de emissões. Chega a ser aterrador pensar que um sector tão importante para o desenvolvimento das nações tenha, por vezes, uma utilização tão irresponsável.

Contudo, não deixa de ser constrangedor que, na sociedade actual onde o consumo parece ser a alma mater do desenvolvimento económico, se lance tantas campanhas de sensibilização para a utilização responsável de água e não exista uma menção relevante sobre a importância de existir um equilíbrio mais responsável nos bens de consumo para evitar o impacto na escassez deste bem tão precioso.

Poupança na torneira mas também na produção

A explicação para esta tendência é simples. Tomemos como exemplo o Dia Mundial da Água em 2018. A multinacional Makro lançou a campanha de sensibilização com o nome «Cuidar e Poupar Gota a Gota» que contou com o apoio e participação de alguns dos seus mais importantes fornecedores: Procter&Gamble (P&G), Reckitt Banckiser, Unilever FIMA, Henkel Iberica e Colgate. Imagino que, se a campanha incidisse no impacto da produção, no consumo de água virtual e não na utilização responsável dos consumidores, os apoios da Makro teriam sido bem menores e a reacção dos seus fornecedores bem diferente.

No entanto, não podemos deixar de salientar a importância destas e de outras acções, como as da EPAL, por exemplo. A má utilização de água por parte do consumidor final é, também, um factor de grande importância para combater a escassez de água e é algo que deve estar na agenda do dia de todos os países.

«Uma empresa, que não vê nenhum problema em abrir uma linha de importação recorrendo a meios de transporte altamente poluentes para ir buscar água virtual a países menos desenvolvidos, ignorando o impacto ambiental destas acções, não pode, depois, apontar o dedo ao consumidor comum e incumbi-lo, unilateralmente, desta responsabilidade»

É enternecedor ver os esforços que, ano após ano, as empresas multinacionais fazem para assegurar que são vistas pelos consumidores como empresas verdes e com programas complexos e exigentes de protecção do meio ambiente, utilizando para esse efeito mais recursos das equipas de marketing do que de outro qualquer departamento existente na empresa.

Em vez de políticas ambientais sérias, continuamos a privilegiar iniciativas pontuais de sensibilização ou de evangelização de consumidores e trabalhadores para executarem acções de carácter ambientalista.

Uma empresa, que não vê nenhum problema em abrir uma linha de importação recorrendo a meios de transporte altamente poluentes para ir buscar água virtual a países menos desenvolvidos, ignorando o impacto ambiental destas acções, não pode, depois, apontar o dedo ao consumidor comum e incumbi-lo, unilateralmente, desta responsabilidade. É contraditório pedir-lhe que seja mais consciencioso e avisado nos seus hábitos de consumo, procurando que, perante a culpa, este a alivie escolhendo, por exemplo, produtos mais ecológicos no supermercado.

Todos nos dizem que devemos fazer a nossa parte e não pensar nos outros, contudo, fazer a nossa parte não se deve restringir aos hábitos de consumo. A nossa parte deve ser levada a todas as outras dimensões da luta, alertando e denunciando, sempre que se justifique, todos os comportamentos dos outros que vão contra o ambiente.

Devemos desenvolver a luta ambiental planteando a exigência de um planeamento logístico e industrial responsável que seja sustentável tendo em conta a sua importância social e ambiental, não apenas económica.

A água virtual pode ser inevitável para sustentar a produção, mas esta deve andar a reboque dos interesses das nações em vez das multinacionais. Água é um bem escasso e de todos, não devendo ser privatizado sob nenhum pretexto. Temos de reconhecer, de uma vez por todas, que não há água virtual e água física. Água é água, seja qual for a sua origem ou finalidade.

António Ribeiro é gestor de logística.

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