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O Futuro está por escrever – 20 anos da morte de Joe Strummer

O papel revolucionário de Joe Strummer, que dizia sempre que o futuro estava por escrever, foi esse: o de levar para todo o mundo um movimento artístico que era simultaneamente um dos mais ruidosos instrumentos de combate político.

Joe Strummer, dos The Clash 
Joe Strummer, dos The Clash CréditosSimon Reeves

A confusão entre indulgência e comodismo é uma das mais frequentes na nossa fuga ao confronto. Poderíamos, de resto, assumir que é nesta confusão que melhor sobrevive a opinião dominante atual, para a qual o confronto, sobretudo político-ideológico, é de fugir quando não se está atrás de um ecrã.  Ouvimos, com facilidade, dizer que não tem de ser tudo política e sentimos o incómodo em conversas que nos obrigam a um posicionamento inequívoco.

Na época que vivemos, a ortodoxia passivo-agressiva dos autoproclamados moderados tenta retirar das diversas dimensões da vida o conjunto de opções que define aquilo que é ideologia. Mas como isso implica assumir uma posição estruturada, é mais cómodo negar a existência de uma opção política naquilo que fazemos e dizemos e acolher o “bom senso” como influência central da nossa forma de ver o mundo. O resultado é o triunfo da opinião dominante determinada pelo poder dominante.

Se isto hoje é visível em áreas como a saúde ou os transportes (nas quais vai crescendo a ideia de que entregá-las a privados não é ideologia, é pragmatismo), nas artes, a despolitização da criação artística e da sua divulgação, é uma discussão que vem de longe. Em Portugal, podíamos começar pela polémica entre neorrealistas e presencistas, sobre o papel da arte no combate político e na representação do real.

Se no início era claro o posicionamento político dos neorrealistas, da sua génese materialista-dialética, hoje, com todos os intelectuais, escritores e artistas desaparecidos, torna-se fácil para a opinião dominante no mundo das artes e letras desvalorizar, relativizar e até branquear a intenção política de quem já não está cá para a defender. Esta posição encontra obstáculos nalguma ensaística sobre o tema, mas começa cada vez mais a ter prevalência na opinião pública.

Sobre os neorrealistas, já ouvi, até, que eram militantes do “comunismo da época”, numa expressão sem rigor histórico, sem suporte em qualquer teoria política e branqueadora da luta dos povos pela sua libertação. Lembra um pouco a ideia da irreverência adolescente, aquela ideia de que há determinado tipo de coisas que são toleráveis quando somos jovens, que são próprias da idade, e no mesmo prato colocamos o furo nas narinas, as calças rasgadas e a indignação contra a ocupação da Palestina. Esta confusão é, de resto, bastante conveniente.

«Aos poucos, vai-se tentado despolitizar tudo, para que nada se oponha ao projeto liberal de esvaziar a sociedade de discussão político-ideológica, deixando a política apenas para o comentarismo e para quem tem paciência para o seu lado pueril.»

Aos poucos, vai-se tentado despolitizar tudo, para que nada se oponha ao projeto liberal de esvaziar a sociedade de discussão político-ideológica, deixando a política apenas para o comentarismo e para quem tem paciência para o seu lado pueril. Os irreverentes levarão o rótulo de um lirismo rebelde. Todos os outros serão congratulados e acolhidos no seio da moderação pela sua incrível tolerância. E é esta confusão que tem de ser combatida, porque nos torna atávicos e acomodados na desistência. Olhar para a arte de um ponto de vista meramente estético é um dos sinais que merece a nossa atenção e intervenção.

Se as décadas de 1930 e 40 foram muito relevantes para lançar este debate, os anos de 1970 também o foram. No final da década, com uma nova política liberal introduzida por Margaret Thatcher e uma resposta violenta do imperialismo estado-unidense ao socialismo noutras nações, o mundo viu nascer o movimento Punk e uma das manifestações mais viscerais da arte política. Uma das maiores parecenças que o Punk tem com o Neorrealismo é precisamente a disputa entre forma e conteúdo e aquilo que separava um movimento político de um movimento meramente estético e inconsequente. Esta clivagem entre duas intenções distintas ainda está presente sempre que o movimento é referido como um dos grandes instrumentos da luta de classes naquela década.

Há quem continue a insistir que o Punk foi só irreverência adolescente, como se todos os artistas vivessem à imagem dos Sex Pistols e do seu anarquismo estético. A mensagem política do Punk teve, nos filhos da classe trabalhadora, um reflexo, pela resistência e consciência de bandas como os The Clash ou The Stranglers.

20 anos após a morte de Joe Strummer (1952 – 2002), o criador dos The Clash, é cada vez mais urgente reivindicar esse legado político para que não se normalize a ideia de que as coisas não se misturam. Elas misturam-se na medida em que a arte também é um território de expressão da luta de classes. Para Strummer, nunca houve quaisquer dúvidas sobre isto, por mais que se comercializasse uma Should i stay or should i go nos lugares do entretenimento. O alheamento sobre o conteúdo da mensagem política não valida a ideia da inexistência dessa mensagem. Dar um salto lógico de não se ter interesse pela compreensão da mensagem política para a negação da arte enquanto terreno do combate político não transforma uma falsidade num facto. E se persistem essas dúvidas, então ouçamos o próprio Joe Strummer sobre a necessidade de prevalência do conteúdo enquanto fenómeno emancipatório.

A relativização do Punk enquanto movimento de consciência política teve, por isso, de ser feita por via do paternalismo e do apelo à maturidade. O impacte visual do Punk tinha, então, de ser ostensivo. Era preciso sair para a rua e estimular a cultura própria de uma juventude trabalhadora anticapitalista e anti-imperialista. Foi este fenómeno que se massificou em várias geografias, sobretudo em territórios onde a agressão imperialista mais se notava, como a América Latina.

O papel revolucionário de Joe Strummer, que dizia sempre que o futuro estava por escrever, foi esse: o de levar para todo o mundo um movimento artístico que era simultaneamente um dos mais ruidosos instrumentos de combate político. A juventudo reviu-se em Strummer, na necessidade do confronto, e percebeu que quando o terreno de combate é desigual, a nossa festa não pode ser só hedonista, que tudo o que fazemos é política, até o deslumbramento com o sucesso, como aconteceu com outros artistas que comprometeram uma luta pela qual, um dia, haviam dado a cara, colocando-se no papel de quem divide e sabota.

O comodismo precisa sempre de um abanão, para que não se confunda com indulgência. Relembrar e homenagear Strummer é lembrar a necessidade de uma criação artística de classe, que confronte o status quo, que ocupe o campo de batalha e contribua para a resistência a um modelo de alienação e exploração, na luta pela nossa emancipação. Seja o Punk, o Hip-Hop ou o Funaná, a cantiga é uma arma.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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