Isabela Mariotto e Júlia Burnier são duas humoristas brasileiras que criaram A Vida de Tina – uma série de vídeos satíricos publicados em diversas redes sociais. Em A Vida de Tina, a protagonista enfrenta a sociedade capitalista com o seu ativismo estridente e, ao mesmo tempo, contido. Sob o mote «Expiando a culpa burguesa», Tina é uma personagem que decide combater as injustiças desta vida através da performance individual, recorrendo ao conceito de privilégio para explicar os problemas da sociedade num único gesto, num único momento. Partindo de uma interpretação caricatural e pós-moderna do marxismo, Tina aborda todas as problemáticas da sociedade capitalista com muito academicismo e de uma forma simplista e inconsequente, mas muito ruidosa, para se sentir bem consigo própria.
«A expiação da culpa burguesa é um fenómeno bastante frequente no nosso modelo de sociedade, onde o ativismo inconsequente se tenta confundir com a luta de classes, imiscuindo-se no circuito mediático, que hoje encontrou nas redes sociais um palco de excelência e de grande alcance»
A sátira de Tina não nasce por geração espontânea. A expiação da culpa burguesa é um fenómeno bastante frequente no nosso modelo de sociedade, onde o ativismo inconsequente se tenta confundir com a luta de classes, imiscuindo-se no circuito mediático, que hoje encontrou nas redes sociais um palco de excelência e de grande alcance. É através desse palco que estes ativistas acreditam que irão mudar o mundo. Mas, muito para além do idealismo, é sobretudo a partir dele que projetam uma carreira mediática, onde as suas opiniões e o seu radicalismo verbalista serão valorizados sem terem de sujar os sapatos na lama do mundo. Para eles, o seu ativismo é princípio e fim, é causa e consequência. Do que o mundo precisa não é de luta de classes, mas de uma vanguarda iluminada, forjada nos corredores da academia, nas mesas de jantar da pequena elite burguesa muito preocupada com os «desfavorecidos» e com as «desigualdades». Tudo isto se resolve num tweet, num artigo de jornal, numa petição online ou numa ação judicial pro bono.
Há, em toda esta dinâmica, uma moral judaico-cristã sempre presente, entre o bem e o mal, com todo o relativismo que invariavelmente acompanha este juízo. O ativista é sempre a pessoa de bem, a pessoa com consciência social e que decide que tem de fazer alguma coisa. Nesse «ter de fazer alguma coisa» reside uma espécie de caridade sofisticada, em que o ativista, muito consciente do seu privilégio, vai tirar um bocadinho do seu dia para ajudar os mais necessitados. E está feito o seu papel, com o devido tweet a anunciar, porque sem publicidade aquele momento de grande altruísmo individual em que fomos mostrar o paternalismo do nosso privilégio, para mostrar que temos consciência do nosso privilégio, nunca aconteceu. Isto só pode ser desgastante.
«Há, em toda esta dinâmica, uma moral judaico-cristã sempre presente, entre o bem e o mal, com todo o relativismo que invariavelmente acompanha este juízo. O ativista é sempre a pessoa de bem, a pessoa com consciência social e que decide que tem de fazer alguma coisa»
O ser especial que habita dentro do ativista é capaz de mudar o mundo só por existir – só pelas boas intenções – ignorando todas as formas de luta organizada que a história provou serem a única ferramenta consequente. No fundo, vão à luta como quem vai dar esmola aos pobrezinhos e depois regressam a casa com a sensação de dever cumprido. É uma explosão de autossatisfação que ficará perpetuada nas memórias do Facebook e todos os anos lembrada como «eu já fiz alguma coisa por esta sociedade de injustiças apesar de agora andar a fazer pela vidinha». A sensibilidade para as injustiças – essa – ninguém lhe tira. Em todas as conversas e intervenções será sempre uma pessoa de bem que se coloca na posição do «outro», como gostam de lhe chamar, elevando a empatia à mais humana das características. Porque os problemas da exploração acabariam todos se houvesse mais empatia, claro. As boas intenções substituem toda a luta organizada que, como não poderia deixar de ser, é «anacrónica», «repetitiva», «desajustada da realidade do mundo moderno». Salvemos, então, o capitalismo e libertemo-lo da luta organizada.
«A validação, de resto, é uma necessidade constante e pode surgir não só da academia, como da própria orgânica do sistema onde se pretende combater “as injustiças” – os tribunais, as comissões parlamentares, a reportagem no jornal pago por um dos maiores grupos capitalistas nacionais ou internacionais. Depois disto, as ações de sindicatos, movimentos populares e outras organizações da classe trabalhadora parecem coisas muito pobres»
Nome do Autor, breve descrinção
Há um episódio particularmente interessante de A Vida de Tina, em que a nossa heroína do self-radicalismo decide ir dar aulas e ensinar Marx. A certa altura, uns trabalhadores da universidade entram na sala e anunciam a greve. Tina, que tinha acabado de explicar que o Manifesto do Partido Comunista é uma das obras mais importantes dos últimos dois séculos, reage com choque e indignação a esta greve interruptiva, porque assim não poderá moldar a mente das gerações de amanhã, ensinando Marx.
O academicismo, aliás, é uma ferramenta que o ativista almeja, para validar o seu ponto de vista individual e atomizado. A validação, de resto, é uma necessidade constante e pode surgir não só da academia, como da própria orgânica do sistema onde se pretende combater «as injustiças» – os tribunais, as comissões parlamentares, a reportagem no jornal pago por um dos maiores grupos capitalistas nacionais ou internacionais.
Depois disto, as ações de sindicatos, movimentos populares e outras organizações da classe trabalhadora parecem coisas muito pobres, que precisam naturalmente da iluminação desta vanguarda. Não contem com os ativistas, claro, para se juntarem a organizações e coletivos onde a diferença não é uma escolha, onde viver com 400 euros não é uma opção, onde cada passo dado tem de ser firme e não mero aventureirismo.
O ativismo não compreende a emancipação, só compreende o assistencialismo; confunde luta organizada com espontaneísmo em grupo; substitui a democracia pela bom-senso empático. Não será preciso um doutoramento em ciência política para perceber quem é que realmente beneficia com isto, para além do próprio, ou quem é que sai mais prejudicado.
Apesar da importância essencial da sátira criada por Isabela Mariotto e Júlia Burnier, há um momento em que já não há vontade de rir com aquilo que inspirou as autoras e em que ficamos cansados de assistir a duas realidades diferentes: a do radical iluminado do Twitter e a da classe trabalhadora. Soube ontem, de um trabalhador precário num organismo do Estado, que foi despedido por ter andado a mobilizar e organizar os colegas na luta contra a precarização. Não me lembro de nenhum ativista, nenhuma Tina, ter perdido o emprego por causa da sua militância organizada. Até porque não a têm – nem militância, nem organização.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui