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|Anti-racismo

Mário Domingues e as origens do movimento negro em Portugal

Entrevistado pelo AbrilAbril sobre o livro editado pela Tinta-da-China, o investigador José Luís Garcia falou sobre o escritor e sobre tudo o que está omisso na nossa história quanto à luta anti-racista.

A leitura do livro publicado no início deste ano pela Tinta-da-China, A Afirmaçao Negra e a Questão Colonial, textos, 1919-1928, uma selecção feita por si dos primeiros escritos do Mário Domingues, faz-nos pensar que muitas das desigualdades que caracterizavam a sociedade no início do século XX continuam. Talvez possa surpreender-nos, por isso, que um escritor negro tenha tido tanto sucesso naquela época.

Qual é o contexto que explica que, numa sociedade em que o racismo e o colonialismo eram tão dominantes, um homem como o Mário Domingues tenha conseguido fazer este percurso?

Bom, de facto ele tem um percurso particular, mas esse percurso inclui também mudanças de trajectória. Não é linear. Trata-se de uma pessoa que nasceu em São Tomé e Príncipe, filho de uma mãe contratada à força, uma semi-escrava, que foi levada da zona de Malanje (Angola) para a ilha do Príncipe para trabalhar numa roça. Aquela canção da Cesária Évora do «Sodade» fala precisamente desses migrantes que vinham de Cabo Verde, mas igualmente de outros pontos de África. O pai era um branco, um empregado, que trabalhava nessa roça, a roça Infante Dom Henrique. Ele nasce e o pai trá-lo, com poucos meses, para Lisboa, onde virá a ter a oportunidade de estudar. E estudou em boas escolas, nomeadamente no Colégio Francês, onde havia filhos de outros membros das elites negras de São Tomé e Príncipe. É preciso dizer que São Tomé e Príncipe era uma colónia muito próspera na altura, devido ao cacau e ao café. O cacau era muito importante e era exportado para Inglaterra. A indústria de chocolates inglesa importava cacau de São Tomé e Príncipe. E era uma colónia muito falada internacionalmente pela acusação de lá continuar a existir escravatura. Este rapaz cresce em Lisboa, em escolas com uma grande maioria branca. E claro, isso originou uma sensibilidade muito própria ao problema do racismo. E ao problema também do desconhecimento da mãe. A família – que o tratou bem e da qual ele guardou sempre muito boa memória – diz-lhe que a mãe teria morrido, coisa que não era verdade.

Então ele cresce na metrópole, inserido num meio que à partida lhe propicia as condições para um percurso intelectual de sucesso.

Sim, ele tem como colegas gente que vai ser bastante conhecida, jornalistas, escritores… pessoas que vão ser muito importantes, como por exemplo, o António Ferro. Um homem nos antípodas daquilo que viria a defender politicamente o Mário Domingues, um homem da propaganda do Estado Novo. Mas também o Reinaldo Ferreira, o Cristiano Lima, que foi militante anarquista e director do jornal A Batalha. Portanto, ele teve uma boa escolaridade e educação. Quando cresce, radicaliza-se e torna-se anarco-sindicalista. O anarco-sindicalismo, na altura, era largamente hegemónico no movimento operário. Tinha uma implantação muito importante em Lisboa e muitos ramos. Contava com um jornal diário, nos anos 20, A Batalha. É um jornal que se calcula ter vendido, no seu melhor período – o período precisamente em que Mário Domingues escrevia – algo como 25/30 mil exemplares e que era lido por muito mais pessoas. Muitas vezes era lido em voz alta, porque muitos trabalhadores eram analfabetos. Este é o percurso do Mário Domingues até 1926, em que começa a ditadura militar. E ele é, neste período, um activista, mais do que um escritor. Um jornalista, mas jornalista de tendência, digamos assim, empenhado. Vai-se empenhar em causas sociais e na causa dos negros. Para além do aspecto singular da vida dele, existe nesta conjuntura uma movimentação negra muito importante em termos internacionais. É o período em que nos Estados Unidos da América surgem grandes revoltas negras e também motins contra os negros particularmente sangrentos. É o rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Muitos soldados negros foram alistados e, quando acabou a guerra, pensavam que seriam de alguma maneira recompensados, ou pelo menos reconhecidos pelo sangue derramado, como cidadãos dos Estados Unidos da América. Tal não aconteceu, nem em termos de emprego, nem de habitação, nem de respeito. Isso originou vários tipos de tumultos, particularmente em 1919.

E ele acompanhava esses movimentos internacionais?

O Mário Domingues era alguém que sabia línguas, nomeadamente o francês e o inglês. Lia a imprensa internacional e acompanhava o que se passava nesses movimentos, sem dúvida. Havia líderes negros de grande relevância, particularmente o W.E.B. Du Bois. Esse movimento negro internacional organizou vários congressos pan-africanos na Europa, em Londres, em Bruxelas, em Paris. E até chegou a querer organizar um aqui em Lisboa… Se é que não organizou mesmo. Ao contrário do que se possa pensar, em Portugal havia um movimento negro organizado, inclusivamente com partidos.

E os anos 20, em Portugal também, são uns anos extraordinários, como, aliás, no resto do mundo. Há quem lhes chame até os loucos anos 20. Por muitas razões. Há muito maior liberdade dos costumes, tanto para as mulheres como para os homossexuais. Há o advento da electrificação das cidades, a generalização do uso do automóvel como veículo urbano. É ainda um período de crise e de mudança tecnológica muito importante. Tem muitas alterações políticas também. Com a revolução russa, e também outras lutas revolucionárias na Europa. Foi um período de grande efervescência, de grandes revoluções, uma fase entre guerras. Ademais é um período de crises económicas e com uma pandemia também mortífera. Na altura, essa pandemia foi mortífera, não nas camadas mais velhas da população, como agora, mas precisamente nos adultos.

E depois vem a ditadura...

Precisamente. Entre 1926 e 1933, em que se dá o estabelecimento completo do Estado Novo, é que o Mário Domingues começa a insistir mais nas novelas, e também a fazer um jornalismo de causa, já fora do anarco-sindicalismo, junto com Reinaldo Ferreira, fazendo o jornal Repórter X e o Detective, em que ele se disfarçava de mendigo, ou de vagabundo, para ser preso, e uma vez no cárcere reportar o que se passava lá dentro. Ou andar como vagabundo nas ruas de Lisboa para verificar como é que as pessoas mais pobres, os sem-abrigo e os negros eram tratados pelas forças policiais e pela sociedade.

E quando vem o advento do Estado Novo, ele ainda está a dirigir uma revista, a África Magazine – só saem três números – dedicada às questões de África. Mas, digamos, o que ele escreve já está muito filtrado pela perseguição policial, pela repressão.

Então os escritos que aqui publica foram produzidos naquele período e acabam com o estabelecimento da ditadura fascista?

Sim. Temos de compreender que ele era anarquista, e os anarquistas recusam chefes, patrões, e deuses. Portanto, era difícil para ele, e para outros anarquistas, conceber uma vida ao sabor do patronato. E também teve certamente dificuldades em encontrar um trabalho. Podemos imaginar o que se passou nesse período. Ele era de tez muito negra. Era mulato, muito conhecido no Rossio, onde circulavam as elites intelectuais, nos cafés, no Chiado também. E ele teve de se resguardar, porque ja tinha filhos. E até um segundo casamento. Um dos filhos, o mais velho, o António Pimentel Domingues, ingressará no Partido Comunista nos anos 40, e torna-se um pintor bastante conhecido.

E é ele, o filho, que vai fazer a ligação com a segunda geração de líderes africanos e nacionalistas africanos, como Agostinho Neto e Amílcar Cabral. A história de Mário Domingues é muito interessante também para percebermos os elos dentro de uma família com as várias gerações de proto-nacionalistas e de nacionalistas africanos.

«Entre 1926 e 1933, em que se dá o estabelecimento completo do Estado Novo, é que o Mário Domingues começa a insistir mais nas novelas, e também a fazer um jornalismo de causa, já fora do anarco-sindicalismo, junto com Reinaldo Ferreira, fazendo o jornal Repórter X e o Detective, em que ele se disfarçava de mendigo, ou de vagabundo, para ser preso, e uma vez na prisão reportar o que se passava dentro das prisões.»

Assim, é nessa altura que ele se vai transformar num escritor profissional, ao princípio, e durante bastante tempo, escrevendo livros policiais e novelas. Novelas com conteúdo claramente humanista, a favor dos de baixo, das classes subordinadas. Depois, livros policiais. No fundo, ele é o nosso Emílio Salgari. Ele introduziu e desenvolveu a literatura policial e de aventuras com muitos pseudónimos. Até com dois pseudónimos no mesmo livro e com pseudónimos de mulher, ou pseudónimos de nomes estrangeiros. Traduziu autores importantes e inventava pseudónimos para pseudo-traduções. Por vezes escrevia livros que depois dizia que tinha traduzido, de um autor que não existia. Isto era uma estratégia, para além de ter um aspecto certamente lúdico, para ele conseguir escrever colecções inteiras. As casas editoriais com que ele trabalhou, que estavam no Norte, a partir de uma certa altura começaram a pagar-lhe bastante bem. Ao princípio foi difícil, mas depois ele vendia muitos exemplares. Só mais tarde é que vai recomeçar a assinar livros com o nome dele, nas biografias históricas.

Mas os textos publicados neste livro que o José Luís Garcia editou, escreve-os muito jovem e já com convicções políticas muito fortes e argumentos muito desenvolvidos e posições estruturadas.

Sem dúvida. O primeiro texto que ele escreve, o «Colonização», é de Setembro de 1919, e é um texto absolutamente notável, porque revela que ele está atento ao que se passa nos Estados Unidos da América. Ele tinha feito 20 anos apenas e vai já fazer a ligação entre a colonização portuguesa e a revolta dos negros norte-americanos. Ele introduz um termo que vai desenvolver depois, e que na minha opinião é um verdadeiro conceito, que é o de «colonização-crime».

«A história de Mário Domingues é muito interessante também para percebermos os elos dentro de uma família com as várias gerações de proto-nacionalistas e de nacionalistas africanos.»

Afirmando que uma coisa não é indissociável da outra. E isso, na altura, é um vislumbre extraordinário. Não que não houvesse outras vozes que pensassem sensivelmente da mesma maneira. Mas nem Du Bois vê as coisas desta forma naquela altura, muito menos defende a independência para África tal como Mário Domingues a defende, muito precocemente também, com 23 anos de idade. Ou seja, os textos dele de 1922, faz este ano cem anos, terminam com a questão da independência, numa visão confederal, claro, não estritamente nacional, porque ele era um anarquista, um internacionalista, além de anticapitalista e anti-imperialista. Portanto, era muito jovem, mas bastante clarividente.

Com ideias tão claras sobre as contradições da sociedade em que vivia, e das questões específicas do colonialismo, como é que depois atravessa uma ditadura sem decidir organizar-se clandestinamente para continuar a escrever e publicitar as suas ideias? Pelo contrário, acaba a escrever uma colecção sobre as grandes figuras da pátria portuguesa, pela qual chega a ser condecorado.

Pois é. E é uma questão importante essa, evidentemente, todos os seres humanos têm as suas contradições. O problema aqui é um pouco mais vasto. Senão vejamos. Aquele é um período, digamos, turbulento, revolucionário e contra-revolucionário, o dos anos 20. Os reis tinham sido mortos; o Sidónio Pais, morto também, que era um líder populista de extrema-direita. E o anarquismo tinha ramos armados, havia ramos de direita armados ... As greves eram greves a que hoje chamaríamos de «selvagens». Eram greves muito duras. Lisboa era palco de um conflito e de uma «desordem» tremenda. E o Mário Domingues é um indivíduo que, quando muito jovem, está nesse processo, e é bastante conhecido. E sobrevém uma ditadura, não em Portugal apenas, há um conjunto de ditaduras na Europa dessa época, que colocam um ambiente e um contexto tenebroso. O anarquismo foi simplesmente liquidado. O que nós percebemos é que uma boa parte desta gente foi muitíssimo perseguida, foram mortos, reprimidos, presos e enviados para o Tarrafal. E era onde ele iria parar, se não se tivesse transformado num jornalista de causas naquele período. E se não tivesse também abandonado o mundo organizado do anarco-sindicalismo, ainda que não as ideias.    

Os anarco-sindicalistas não lutavam pelo poder político propriamente. Eles lutavam pela existência de comunas de base, associações livres, auto-gestão, recusavam as hierarquias. E aquele universo ideológico desabou completamente. E também o universo organizativo desabou, foi reprimido, destroçado e disperso. Ficaram os anarquistas intelectuais, se quisermos. E nunca se organizaram verdadeiramente na clandestinidade. Mas é nesse processo também que se irá desenvolver o Partido Comunista Português. Mário Domingues não abraçou, nessa época, essa ligação ao Partido Comunista, tanto quanto eu saiba. Ele pertencia a um mundo que desabou, mas manteve-se anarquista do ponto de vista, digamos, do seu itinerário. Tanto ele como outros.

Por conseguinte, ele não abandonou os seus ideais. Repare que entre o anarquismo e as ideias do marxismo-leninismo, sobretudo depois, na versão após a morte de Lenine, do assassinato de Trotsky, da versão, digamos, mais estaliniana do Partido Comunista da União Soviética, havia um abismo. Os anarquistas eram completamente contra a ideia de uma organização partidária baseada no método do centralismo democrático, por exemplo. Qualquer tipo de centralismo. Os anarquistas não eram um partido, eram vários ramos, com jornais diferentes e com muitas discussões entre eles. Era um mundo muito diferente daquilo que podia, do ponto de vista orgânico, depois, enfrentar o salazarismo, que era uma ditadura repressiva, com uma polícia política e perseguições. E ele teve uma escolha individualista para a sua vida, se quisermos, afastando-se. Teria certamente divergências ideológicas sérias com o Partido Comunista, pelo menos nos seus inícios, sem dúvida nenhuma. Ele vinha de ideias muito distintas, e certamente que não podia abraçar um conjunto de ideias, que tinham semelhanças com as dele, do ponto de vista do internacionalismo, da crítica ao capitalismo, ao imperialismo, mas que não encaixavam noutra parte do seu universo ideológico. Coisa que não aconteceu ao Du Bois, que vai ter uma evolução desse género. Mas ele não. Ele torna-se escritor profissional.

Como é que ele vai então, depois, ser condecorado? Ora bem. Muitas pessoas de esquerda foram condecoradas nesse período. O regime, sobretudo num determinado período, do Marcello Caetano, ensaiou uma abertura que, entre outras coisas, tentava incorporar os negros. É o caso da selecção de futebol: o Eusébio, o Coluna, o Hilário… Eu creio que terá sido uma das razões. A segunda razão é porque aqueles livros, os livros sobre figuras e episódios históricos de Portugal, se tornaram muito populares. Agora isso não responde à questão: porque é que ele os escreveu? Mas é preciso lê-los…

Créditos

Ele não tinha um plano para fazer aqueles livros, o plano dele era outro. O plano dele era fazer uma espécie de série sobre os grandes movimentos históricos, grandes ideias da história, etc. E nessa série haveria uma série lusíada. Ele teve um projecto mais ou menos megalómano, ali para os anos 50, em que finalmente se considerava um escritor maduro, que tinha estudado muito e que queria fazer um conjunto de obras sobre grandes tendências históricas, grandes visões da história... No fundo, grandes mundividências, e aí haveria uma série lusíada. E, quando escreve o primeiro livro da série lusíada, começa a vender muito. E os editores queriam que ele escrevesse mais. E ele continua… foi escrevendo mais.

Também é preciso perceber que nos anos 50 já iam quase três décadas de ditadura e não se vislumbrava o seu fim. E ele estava mais velho, evidentemente. E nós podemos perguntar-nos: mas o filho não estava no Partido Comunista? Sim, e teria certamente ideias muitíssimo distintas. O filho, o António Pimentel Domingues, estava ligado à Casa dos Estudantes do Império, ao Amílcar Cabral, ao Agostinho Neto, e a todos esses jovens que irão organizar os movimentos de libertação das colónias. E era militante clandestino, e amigo do Lopes-Graça, do Cruzeiro Seixas, do Alexandre O'Neil, etc. Este filho inclusivamente desenhava as capas dos livros do pai. É provável que tenha havido problemas entre o filho e o pai. Como vai haver entre o Pimentel Domingues e o seu filho. O mesmo que me autorizou a publicar as coisas do avô. As fissuras políticas podem ser muito duras, podem ser vividas de uma forma muito dura. E estes homens e mulheres observaram rupturas históricas tremendas.

E repare que depois, quando ele tem 60 anos, quando já tinha escrito esses romances históricos, ele escreve O Menino entre Gigantes, que é uma obra autobiográfica do seu período de criança e de jovem. Dedica-o à mãe, e em várias passagens ele retrata a questão de ser negro num país de maioria branca e a relação que teve com os brancos em termos de racismo. Talvez não seja o foco principal, mas aflora sistematicamente isso. Esse livro não foi censurado.

Em suma, ele considerava-se fora daquele movimento organizado da altura e fazia a sua luta de outra maneira, escrevendo e pondo um sopro humanista dentro das obras. E quando ele morre, ele deixa um testemunho de que continuava anarquista, como eu publico no livro que editei sobre ele e com os seus textos dos anos 1920.

Numa sessão de apresentação do livro no início deste ano, na Biblioteca Nacional, estava uma pessoa na assistência que disse uma coisa que é evidente quando lemos estes textos que ele escreveu há cem anos. Somos chamados a pensar sobre todas as continuidades que existem quanto ao racismo, às discriminações, às desigualdades. O colonialismo já não existe nos moldes em que existia na altura, mas nas sociedades ocidentais continuam a existir profundas desigualdades, deliberadas, em relação aos sujeitos racializados. Na sua resposta, nessa sessão, falou das dolorosas continuidades, mas também das rupturas, que podemos extrair destes textos agora publicados do Mário Domingues. Quais diria que são as mais significativas?

Infelizmente, há pouco debate sobre todo este assunto nas sociedades ocidentais. Já há alguma coisa, mas pouca. Não há uma história do Movimento Negro em Portugal, o que é extraordinário, porque parece que não existiu. Eu estou a tentar fazê-la… Havia partidos negros, havia internacionalismo negro, havia militantes negros que iam a conferências internacionais. O Du Bois veio a Portugal, fez reuniões com os activistas daqui. Temos registo fotográfico disso. Depois existiu a geração da Casa dos Estudantes do Império, que formou os militantes dos movimentos de libertação. E não há praticamente historiadores a debruçar-se sobre este assunto. Eu publico o livro precisamente porque sei que há uma história a fazer. E comecei por publicar os textos dele porque creio que é um resgate de memória muito sério para o nosso país.

«O filho estava ligado à Casa dos Estudantes do Império, ao Amílcar Cabral ao Agostinho Neto, e a todos esses jovens que irão organizar os movimentos de libertação das colónias. E era militante clandestino, e amigo do Lopes-Graça, do Cruzeiro Seixas, do Anelxandre O'Neil, etc.»

Por outro lado, as próprias instituições portuguesas não reflectem a composição social e a própria história do nosso país. Nas universidades, nas televisões, nos jornais, etc., os negros foram inexistentes durante muito tempo, e ainda hoje são muito poucos. As instituições não estão a representar a sociedade. Não há um verdadeiro engajamento das instituições políticas portuguesas, e universitárias e científicas, em fazer com que haja representatividade dessas comunidades e dessas pessoas. E, portanto, há ausência de conhecimento histórico, há ausência de debate, há ausência de uma composição verdadeiramente representativa dessas comunidades nos mais diversos domínios institucionais. E há falta de compreensão e há uma falta de atitude séria das responsabilidades históricas face à colonização e face à escravatura e ao tráfico de escravos. Há falta de compreensão de que Portugal, e outros países do mundo ocidental, ocuparam pela força, com grande crueldade, com chacinas, com violência de todos os tipos, incluindo a violência sexual sobre as mulheres, ocuparam aqueles territórios, espoliaram o máximo que puderam, e no culminar deste processo, em Portugal, nem se encetou negociações com os movimentos de libertação, quando as independências já estavam a desenvolver-se e a avançar em todos os outros países. Portugal, sob a direcção do Salazar, envolve-se numa guerra colonial durante 13 anos. Há uma ausência da compreensão histórica do que isto significa e do que isto expressa para aquelas comunidades africanas ou com origem africana hoje. Aquelas comunidades têm de ser tratadas não como indivíduos isolados, como o liberalismo propugna, mas como uma comunidades que foram vistas como comunidades, para serem tratadas de uma certa maneira, durante séculos. E então, desse ponto de vista, a emancipação dessas comunidades não é tomada como questão fundamental da política portuguesa e da política de muitos países. Não há nomes de ruas em Lisboa com o Aires de Menezes, mas há do Norton de Matos, que foi precisamente aquele que, digamos assim, pôs Angola a ferro e fogo.

Não há hoje, importa dizer, a segregação que existia do ponto de vista político, inscrita na lei. Mas há, digamos assim, pelo menos, um establishment segregacionista, para essa comunidade negra que sofreu com a escravatura, com a colonização, e que hoje está nos piores trabalhos no nosso país, mais duros e mais mal pagos. Essas são as continuidades dolorosas. Ou seja, há rupturas, no sentido em que a legislação já não prevê a segregação. A guerra colonial acabou e respeitamos a independência desses povos africanos. Queremos ter relações amistosas, com certeza. Mas não há uma atitude pró-activa, de anti-colonialidade, ou seja, é de alguma maneira, como se tivéssemos virado a página sem perceber o que aconteceu na página anterior. E sem que, nas jovens gerações, exista a possibilidade resoluta de ter conhecimento de tudo isto. Porque os reflexos que isto tem ainda no ensino, na História, e até noutros fenómenos simbólicos, poderiam ser muito importantes, como a existência de um mês da comunidade negra ou da História da África negra, como existe noutros países, incluindo os Estados Unidos da América. Isso não está feito.

Como referiu, na leitura destes textos damo-nos conta de um movimento negro em Portugal que não conhecemos, que não é ensinado como parte da nossa História. Qual é a relação desse movimento negro, desses anos, com a geração seguinte, da luta anticolonial? Trata-se de uma transferência? O movimento negro desapareceu da metrópole e migrou para os territórios colonizados para lutar pela independência? Como é que o Mário Domingues assistiu a essa evolução dos termos de uma luta em que ele esteve, inicialmente, envolvido?

Bem, ele deixou de ser militante, isso é claro. O seu percurso de vida passou a ser outro. Na minha modesta opinião, eu creio que ele até se «esqueceu» do que escreveu. Eu, em parte, fiz este livro para ele. Isto, para mim, é o livro do Mário Domingues, que ele provavelmente esqueceu. Ou não teve tempo, não se lembrou, de publicar, depois da revolução. Era o tumulto de 74/75, ele estava velho e doente. Portanto, eu juntei os textos dele, segundo um critério que está aqui claro, e escrevi para ele. É um livro do Mário Domingues. Eu fiz um ensaio sobre ele e uma selecção dos seus textos anti-coloniais e anti-racistas.

O que acontece é que há ligações entre o primeiro movimento negro e o segundo movimento negro. O segundo movimento negro é um movimento ultra-clandestino. O primeiro movimento negro é nos anos 1920, mas vem de antes. Havia onze títulos de imprensa negra durante este período, não ao mesmo tempo, mas onze títulos diferentes de imprensa negra e o Mário Domingues participou em vários desses títulos. O que acontece é que esta primeira geração vivia numa situação, digamos, de legalidade, com alguma liberdade de imprensa. Partiam-lhes as máquinas, perseguiam-nos judicialmente. Mas sobreviviam nesse processo. E depois foram presos, perseguidos, afastados. E a maior parte deles, que não o Mário Domingues, eram apenas proto-nacionalistas, como diz o Mário Pinto de Andrade. Pensavam que a questão da nação viria mais tarde. O que reivindicavam, tal como Du Bois, era a presença de negros na administração colonial. Uma espécie de programa mínimo. O Mário Domingues é que era muito radical e colocava uma questão de programa máximo e quase de visionário. Ele considerava que mais tarde ou mais cedo as colónias seriam independentes, que o espírito separatista estava alojado no coração do negro. É premonitório. Há um interregno entre os anos 33 e mais ou menos os finais dos anos 40, princípios de 50, quando surge a segunda geração, na Casa dos Estudantes do Império, que se organiza internamente. E à qual o filho está ligado. E nessa segunda geração uma parte dos militantes já é marxista-leninista. Alguns deles com proximidade com o Partido Comunista Português e mesmo integrantes do partido. E essa segunda geração tem ligações à primeira, através de alguns militantes, o Pimentel Domingues, desde logo no caso do Mário Domingues. Mas o Mário Pinto de Andrade também. No livro do Mário Pinto de Andrade, sobre estes temas, ele refere o pai como membro da Liga Africana, que era um dos dois partidos negros que existiam em Portugal nos anos 1920. Isto não está nos livros de História. Isto não é estudado nas escolas secundárias, onde tem de ser estudado, e onde tem de ser lembrado.

Sobre isto das continuidades dolorosas, é curioso percebermos semelhanças entre um dos textos publicados neste livro, uma resposta do Mário Domingues sobre alguém que considerava os negros em Lisboa como «as urtigas do jardim», e as declarações recentes do Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, que é do PSOE, o Josep Borrel, que caracterizou a Europa como um jardim ameaçado pela selva que considera ser o resto do mundo...

É verdade, essa relação. Ele era a urtiga, o espinho, exactamente, e neste caso trata-se da defesa do jardim que seria a Europa... As consciências históricas e os quadros de mentalidade alteram-se muito lentamente. Demoram muito tempo a mudar, nos grandes conjuntos sociais. As coisas, enfim, estão mais claras do ponto de vista dos processos de emancipação. Mas as consciências de épocas têm um lastro muito grande. E as estruturas sociais e económicas também são muito pesadas.

Mas o facto de o Mário Domingues escrever n’A Batalha para milhares de leitores operários, trabalhadores, que estavam desta forma em contacto com este tipo de ideias já no início do século XX, tem uma grande importância…

Repare, havia jornalismo operário e partidário. Isso praticamente desapareceu. Actualmente estamos numa esfera pública extremamente fraccionada com as redes sociais e a crise da intermediação jornalística. Funciona em bolhas comunicacionais afastadas umas das outras. E os média estão muito induzidos pelo comércio das notícias, do que vende. E esse é um problema sério. Nós temos uma liberdade de imprensa, mas é uma liberdade de pendor comercial. Daqueles que têm capacidade comercial para estar aí e ocupar esses meios.

Um dos problemas dos nossos quadros mentais modernos é precisamente não sermos capazes de pensar que o progresso pode andar ao lado do retrocesso. Isso vê-se em muitos domínios. Podemos ter um grande progresso em certos aspectos de tecnologia, o que significa também ter armas nucleares que possam destruir o planeta e a humanidade. Podemos ter uma sociedade que começa a ser favorável à libertação sexual, mas ao mesmo tempo uma comunidade gay que parece abraçar com entusiasmo relações matrimoniais, que a minha geração tendia a considerar uma coisa superada e que punha em causa.

«(...) havia jornalismo operário e partidário. Isso praticamente desapareceu. Actualmente estamos numa esfera pública extremamente fraccionada com as redes sociais e a crise da intermediação jornalística. Funciona em bolhas comunicacionais afastadas umas das outras. E os média estão muito induzidos pelo comércio das notícias, do que vende.»

Os movimentos históricos dão-se com progresso e retrocesso em simultâneo. Existe um progresso ético quando alguma consciência social e política se encontra com as instituições. Mas as instituições podem ser subvertidas, claramente. Vemos isso a acontecer com a nova extrema-direita, com os novos fascistas que comem as instituições por dentro. E como é que as massas vão defender a democracia, quando, precisamente essa democracia está a par de uma economia neoliberal que impõe retrocessos, desigualdades profundas, nas suas condições de vida? Estamos a assistir à ruína de sistemas políticos e a revoluções tecnológicas de grande espectro. E isto, realmente, parece muito semelhante ao que se passava há cem anos.

Como está a questão do financiamento da investigação desta problemática, que também refere na introdução do livro?

Voltaram a não me dar os meios económicos para a investigação, mas eu continuo. É muito estranho... é extraordinário. Porque repare, não eram apenas projectos do José Luís Garcia: eram do José Luís Garcia com muitos dos principais estudiosos destas questões, como a Isabel Castro Henriques, o Pedro Aires de Oliveira, a Tânia Alves, a Júlia Leitão de Barros, e anteriormente com o Diogo Ramada Curto, o Bandeira Jerónimo, a Filipa Vicente… com uma série de outros colegas de primeira linha da investigação sobre a presença africana em Portugal e sobre os sistemas coloniais e anti-coloniais. E novamente não me deram o apoio económico necessário para fazer uma investigação mais rapidamente e também mais aprofundada.

«Portanto, como é que as massas vão defender a democracia, quando, precisamente essa democracia está a par de uma economia neoliberal que impõe retrocessos, desigualdades profundas, nas suas condições de vida?»

Eu julgava que desta vez, sim, iria haver financiamento, depois de ter saído o livro, e este voltou a não ser atribuído. A justificação é que ia haver uma linha de financiamento específica para este tipo de temas sobre o colonialismo. Até agora não vi essa linha. Eu devo dizer que também fiz uma proposta à Gulbenkian há muitos anos, precisamente para juntar os textos todos dele que aqui publiquei e digitalizar. Infelizmente também não tive o apoio. Quero acreditar que até não é propositado. Penso que simplesmente não dão importância a uma questão que tem importância. E mesmo as repercussões na imprensa portuguesa ficaram muito aquém do que julgo ser apropriado para este tema. E eu vi-me a escrever um artigo no Público, no Y, por ocasião dos cem anos da série de textos do Mário Domingues, porque, salvo algum lapso da minha parte, até agora no Público não houve uma recensão crítica sobre este livro.

Houve um artigo há uns anos, no Y, da Lucinda Canelas, sobre o Mário Domingues, onde ela me entrevistava. Mas agora, por ocasião do livro, não saiu nada. No Jornal de Letras, há um artigo importante do Mega Ferreira na última página, onde o livro é referido, mas também não há uma recensão crítica. No Expresso também não há e eu fiz questão de o enviar. E este é um livro de uma editora reconhecida. Pode ser que a minha introdução tenha as suas deficiências, quem sabe, mas pelo menos uma recensão crítica mereceria. Ressalve-se a muita repercurssão que o livro teve na RDP África e na RTP África; a Inês Fonseca Santos entrevistou-me para o Todas as Palavras da RTP3; e houve outras iniciativas de que agora não me lembro, e peço desculpa a quem estou a esquecer, de cobertura e referência nos média. Há aqui indicadores de um certo desleixo face a esta parte da nossa história. Uma falta de atenção crítica face a esta questão muito séria. Mas eu não vou desistir. Apresentei recentemente à Tinta-da-China uma proposta de curso sobre o movimento negro ao longo do século XX. E também estamos a preparar uma grande conferência sobre o movimento negro deste período, das várias gerações, para resgatar essa história e fazer um livro precisamente sobre o conjunto. Enfim, eu não vou desistir do processo.

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