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Lisboalândia

Será que este filme, sobre Lisboa, nos fala sobre o passado, ou sobre o futuro da cidade? Será que nos conta uma história que já terminou, ou uma história ainda por vir?

Fotograma de «Alis Ubbo» (2016-2018), filme do realizador Paulo Abreu
Fotograma de «Alis Ubbo» (2016-2018), filme do realizador Paulo AbreuCréditos / Paulo Abreu

Alis Ubbo (2018, prod. Bando à Parte e Daltonic Brothers), de Paulo Abreu, foi um dos últimos filmes que vi antes do encerramento das salas de cinema. Estreado em fevereiro de 2020, foi mostrado antes no festival DocLisboa de 2018. Mas será que este filme, sobre Lisboa, nos fala sobre o passado, ou sobre o futuro da cidade? Será que nos conta uma história que já terminou, ou uma história ainda por vir?

Paulo Abreu (1964), realizador e diretor de fotografia com uma obra muito diversificada no campo do cinema experimental, do documentário sobre arte e música, ou dos vídeo-clips (para os Dead Combo, por exemplo), disse ter tido a ideia para este documentário depois de fazer um vídeo institucional para um arquiteto: «De repente, tive a ideia de fazer um filme meio cómico sobre o que estava a acontecer na cidade nos últimos seis anos». E o que aconteceu nos últimos anos foi a devastação de «Alis Ubbo», o «porto seguro» dos fundadores fenícios, provocada pela massificação do turismo.

Longe da imagem oficial da Lisboa turística, e capaz certamente de «provocar pesadelos a Fernando Medina», o filme de Paulo Abreu não é apenas um «documentário-denúncia». Sem entrevistas, sem uma voz off orientadora, sem a palavra dos turistas, Alis Ubbo não pretende reunir todos os pontos de vista e construir um discurso sistemático sobre o «problema do turismo» em Lisboa. É, antes, um filme que cria a sua própria realidade tanto como a documenta, justapondo às imagens da massificação do turismo um discurso irónico, cómico, por vezes já no terreno do puro non-sense. É, sem dúvida alguma, como também já foi descrito, «uma meditação punk sobre a gentrificação de Lisboa» (melhor seria dizer rock’n’roll, para irmos ao encontro do «Portugal na CEE» dos GNR que ouvimos no filme, ou de tantos dos trabalhos anteriores de Paulo Abreu).

Este tom indisciplinado é dado pelo protagonista, o ator João Patrício, que interpreta impecavelmente um condutor de tuk-tuk tão castiço quanto mitómano, que corrige, empola e contradiz os audioguias e a emissão da inventada «Rádio Tuk-Tuk», fundo sonoro permanente do filme, mas cujos textos foram adaptados e ditos por atores. Ou seja, uma representação alterada da realidade (os audioguias) é contrariada por outra (as efabulações do condutor de tuk-tuk). Não estamos, portanto, no terreno da história nem da investigação jornalística, mas sim no campo dos mitos e dos estereótipos.

E com efeito, os audioguias e o discurso do condutor apresentam uma Lisboa e uma história de Portugal que ainda é a do Estado Novo, com todos os chavões sobre a «fundação da nacionalidade», a «reconquista» da cidade «aos mouros», as «descobertas» como a «idade de ouro» da história portuguesa, ou o «pioneirismo» da «globalização portuguesa». A estes clichés que se ouvem (o som), juntam-se estereótipos que se veem (as imagens) sobre o turismo de massas em Lisboa: as plantações de selfie sticks, os passeios rolantes de segway, as aventuras anfíbias do HIPPOtrip, ou o trovejar incessante dos trolleys nos passeios de calçada. E as marcas na cidade desse mesmo turismo: o novo terminal de navios de cruzeiro, um galo de Barcelos gigante que se ilumina de noite, as novas lojas de tradições inventadas na baixa (como os pastéis de bacalhau com queijo da serra), o fim de outras lojas históricas (como o Bar Pirata, nos Restauradores), a monocultura intensiva de hotéis na baixa e um horizonte urbano enxameado por guindastes e gruas de construção (razão pela qual o condutor apenas usa capacete quando sai do tuk-tuk).

Os desconchavos do condutor e dos audioguias espelham, assim, uma cidade transformada em parque temático, um extenso terreno para o entretenimento dos turistas. Mas nesta «Lisboalândia» moram pessoas reais e as consequências destas transformações na vida dos residentes não estão ausentes do filme, que recorda a explosão dos preços de arrendamento e do custo de vida em toda a cidade, ou o cansaço dos moradores dos bairros históricos como Alfama.

No entanto, o filme constrói um ponto de vista sobre esta realidade mirabolante que assenta, acima de tudo, na caricatura do turista. Os turistas de Alis Ubbo são sempre filmados de forma desumanizada. Quando tomam a palavra, e sempre apenas para responder a uma interpelação do condutor, fazem-no desde o fora de campo, sem que possamos ver os seus rostos e corpos; e quando os vemos, são filmados em contraluz ou em grupos, ou seja, como uma massa impessoal e sem individualidade. Esta «diabolização» do turista é problemática porque significa, no fundo, questionar coisas muito mais importantes como o direito ao lazer (sobretudo de quem não tem dinheiro nem tempo a não ser para as formas de turismo massificado e low-cost), ou ainda, de modo mais geral, o direito ao movimento (em alguns momentos, poucos, o filme autoriza de forma preocupante posições xenófobas, como no fado que pede a Lisboa «que não seja francesa» porque «tu és portuguesa, tu és só para nós»; ou no grafito que equipara o turista a um terrorista).

Em suma, Alis Ubbo acerta na descrição, mas falha o diagnóstico do problema. O turista (e o turismo) não é uma causa, mas sim um efeito de opções políticas muito concretas de gestão do espaço público e privado na cidade. A metáfora do «porto seguro» mantém, seja como for, toda a pertinência. Ninguém nega que Lisboa tem de voltar a ser um «porto seguro», mas para todos — residentes, visitantes e migrantes; caso contrário, não será nem um «porto» que recebe e acolhe, nem um espaço «seguro» para viver.

Mas também é verdade que o entendimento de um filme depende das circunstâncias em que é visto e em que pensamos nele. Há um mês atrás, Alis Ubbo era um filme sobre o «durante», ou seja, sobre um processo em curso — o turismo, a gentrificação, a especulação imobiliária. Hoje, e recordado desde o ponto de vista do nosso recolhimento forçado e coletivo, o mesmo filme torna-se um documento sobre um processo que atualmente já não decorre, que está suspenso.

Num futuro possível, a cidade retomaria o seu curso, mas decidida a interromper definitivamente aquele processo. Nesse futuro, Alis Ubbo seria o documento de um passado deixado para trás, o documento de um tempo e de uma ameaça à cidade entretanto ultrapassados com êxito. Noutro futuro, tudo fica como antes e Lisboa continuaria a definhar como tantas outras cidades europeias afetadas pelos mesmos problemas. Nesta versão do futuro, o filme seria, então, o registo dos primeiros anos e dos primeiros efeitos de um processo que ainda se agravaria muitíssimo.

Felizmente, o futuro ainda está por escrever e só o que fizermos dele — e das políticas para esta cidade — nos dirá, portanto, de que tempo é Alis Ubbo o retrato.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

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