|Entrevista

«É fácil termos uma ligação pessoal à história da violência doméstica em Portugal»

Este domingo, às 15h30, a Culturgest acolhe a ante-estreia da mini-série Casa-Abrigo, no âmbito do IndieLisboa. O AbrilAbril falou com Márcio Laranjeira, criador, escritor e realizador do trabalho que aborda a vida de um conjunto de mulheres no pós-violência doméstica.

Em 2002, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa afirmava que «a violência no espaço doméstico é a maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos, ultrapassando o cancro, acidentes de viação e até a guerra». 

A violência doméstica é um flagelo social, mesmo após ter assumido a natureza de crime público há 20 anos. Os impactos multiplicam-se, atinge mulheres de todas as idades, e muitas crianças e, além das mortes e das sequelas físicas, provoca impactos do ponto de vista psicológico e social. 

Com causas económicas, sociais e culturais que reforçam outras dinâmicas psicológicas (de culpabilização, de impotência e de passividade), o trauma pode ficar para sempre. Torna-se numa cicatriz cuja marca traz sempre uma memória. O medo pode nunca desaparecer e a vida de uma vítima pode nunca mais voltar a ser a mesma. 

Estão desenhados mecanismos de prevenção, acompanhamento e erradicação deste enorme problema social. Entre as medidas de acompanhamento às vítimas estão as casas de abrigo, locais que acolhem quem sofreu de violência doméstica e os seus filhos, mediante a janela de financiamento que têm por parte do Estado e de fundos comunitários. Estas instituições procuram criar um ambiente seguro com condições necessárias à sua educação, saúde e bem-estar integral, assim como promover o restabelecimento do equilíbrio emocional e psicológico. 

Foi este o mote para a nova mini-série da RTP, produzida pela Fado Filmes, que irá estrear amanhã no IndieLisboa. Escrita e realizada por Márcio Laranjeira, Casa-Abrigo inspira-se em histórias reais e ao longo de seis episódios acompanha a vida de Vera, Madalena, Conceição e Gabriela, vítimas de violência doméstica, interpretadas pelas actrizes Maria João Pinho, Leonor Silveira, Filomena Gigante e Rita Cabaço. 

Cada episódio lança-se no desafio de contar a vida de cada uma dessas mulheres que reflectem a vida de tantas outras que passaram pelo mesmo. «Uma partilha pessoal e um testemunho único de mulheres que não se resumem à situação dramática em que se encontram, sem nunca a poderem esquecer», pode ler-se na sinopse. 

Ao AbrilAbril, Márcio Laranjeira confidenciou que a mini-série é para si um projecto «pessoalmente muito caro», dedicando-o à sua mãe. «Não é a minha história. Infelizmente, é a da minha vizinha, da minha prima, da minha tia, da amiga dela, da colega de fábrica da minha mãe, e todos temos alguém que vive de alguma maneira a sua história pessoal com a violência doméstica», explicou-nos Márcio numa primeira troca de emails

Para perceber mais sobre o seu trabalho conversámos com Márcio e procurámos saber mais sobre o seu trabalho, o que isto implicou e o processo de criação. 

Explica-nos de onde partiu a ideia para a Casa-Abrigo?

Partiu de dentro. Eu queria falar desta violência que silencia. Tenho noção de que se fala de violência doméstica na TV recorrentemente, mas essa, a de que se fala, é a da agressão, para que a possamos visualizar, e a violência sobre a qual eu queria falar não se vê, a vítima também não a vê, e por isso pode nem sequer se reconhecer nela. É como veres-te ao espelho e seres tu e outra ao mesmo tempo – acontece com uma das personagens. 

Eu estava no confinamento, nessa altura a violência doméstica disparou. Foi terrível para essas mulheres e para os filhos delas, que também estavam em casa e não tinham como sair desse lugar de onde também eles se tornaram vítimas. A violência doméstica fez-me receber em minha casa a mãe de uma amiga minha. Isso avivou-me memórias, e a impotência perante as narrativas possíveis para ela. Escrevi depois disso.

Como é que te preparaste para o processo? Conhecias histórias pessoais, visitaste instituições que acolhem mulheres de violência doméstica?

Conhecia histórias pessoais, sim. É fácil termos uma ligação pessoal à história da violência doméstica em Portugal. Basta abrirmo-nos, e ou somos nós, as nossas mães, uma familiar, a avó, a tia, a vizinha, a prima, a amiga, a colega do trabalho, também homens é certo, mas o número é incomparável, mesmo que não contássemos com os homens, estariamos todos tão ligados em rede que daria para falarmos não de uma ligação pessoal mas cultural. E daí também ser um crime público.

Contudo, trata-se de uma Casa de Abrigo e para tratar essa realidade quis conhecer diferentes casas e contar com todo o apoio institucional possível. Tive vários, mas tenho de salientar o da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) que foi fundamental para a compreensão da Casa de que eu acabei por desenhar.

Qual é o ambiente que se vive nessas instituições? Pergunto-te isto porque quem sofre uma mudança radical de vida é a vítima, geralmente o agressor mantém-se na sua casa. 

Olha, não existe uma resposta que sirva essa pergunta porque cada Casa tem as suas próprias regras, a sua abordagem, as pessoas que lá trabalham que, como podes imaginar, moldam completamente o ambiente das mulheres que temporariamente por lá passam e, isso sempre e em todas as casas, as próprias vítimas e o tipo de grupo que se forma e desforma. 

Temos de ter em conta que estas mulheres estão numa transição extremamente delicada e fragilizadas, têm de sobreviver à vitimização, têm de conseguir resgatar uma identidade que não sabem onde nem há quanto tempo perderam e, ao mesmo tempo, têm um tempo limitado para encontrarem uma forma economicamente viável e segura de seguirem com as suas vidas, porque cada vez mais mulheres a precisarem de abrigo. E, como bem dizes, os agressores, mantêm-se nas casas que são as casas que elas deixam para trás, as suas casas também. É por isso que, apesar de nunca termos flashbacks, de não recorrermos às memórias visuais dos episódios violentos que as personagens viveram, cada episódio começa nas suas casas.

«Temos de ter em conta que estas mulheres estão numa transição extremamente delicada e fragilizadas, têm de sobreviver à vitimização, têm de conseguir resgatar uma identidade que não sabem onde nem há quanto tempo perderam e, ao mesmo tempo, têm um tempo limitado para encontrarem uma forma economicamente viável e segura de seguirem com as suas vidas»

márcio laranjeira

Porque é um lugar que existe, e é habitado sem elas. Mas ainda não desapareceu da vida destas mulheres. É a única coisa que têm, ou que deixaram de ter. Aliás, muitas voltam para casa. Com o agressor. 

A propósito da ante-estreia, duas mulheres que viveram em casas de abrigo disseram-me recentemente como queriam ver a Casa representada. Uma disse que queria ver se mostraríamos os maus-tratos, as dificuldades e situações de aprisionamento que viveu. A outra disse que queria ver se mostrávamos como as casas de abrigo salvam vidas e ajudam tanto as mulheres. 

O que posso dizer é que são experiências pessoais. Na mini-série vamos retratar uma outra Casa-Abrigo, que, tal como todas, não é igual a nenhuma outra e, portanto, só será talvez semelhante em alguns aspectos que todas irão reconhecer.

A série inspira-se em histórias reais. Como é que se faz este equilíbrio entre a ficção e algo vivido por tantas pessoas? 

Esse é um trabalho que tenho vindo a desenvolver há 20 anos. Sempre fiz cinema, e um cinema que se pode confundir com a realidade ou a realidade com a fantasia, mas através do que as personagens vivem. É quase metafísico. Cheguei a desenvolver um conceito chamado novela documental. Este é o primeiro trabalho que faço para televisão, e os meus filmes são todos sobre… o outro. Digo isto assim, porque há qualquer coisa que me apaixona muito nas pessoas, e se construo a partir delas, tento alcançar sem nunca lá chegar. Fica a faltar a alma, aquilo que só a actriz lhe dará. É o que elas fazem: almas.

Depois do processo de pesquisa conseguias desligar de tudo que vias e ouvias?

Talvez tenha funcionado mais ao contrário. Por ser um tema que me afecta pessoalmente, creio que era mais reactivo antes do processo de pesquisa. O processo ajudou-me a compreender muitas coisas, mas também a criar algum distanciamento. Eu via um homem a agredir uma mulher na rua e lançava-me automaticamente sobre a situação. Não descansava enquanto a polícia e depois as instituições fizessem algo.
 
Agora sei que posso arranjar-lhe um sítio para ficar temporariamente, mas se me revoltar com uma instituição, posso só estar a pô-la à frente de mulheres que estão em situações extremamente perigosas (perigo de vida mesmo) e que não têm para onde ir. Primeiro tenho de perceber se há técnicos que estão a tratar disso para que eu não esteja só a priorizar. 

Ainda assim, lanço-me à situação da agressão. Temos de fazer alguma coisa. Não podemos virar a cara. A nada! Podemos, mas sabemos muito bem o que estamos a fazer.

Tiveste dificuldade em transpor para os actores o peso do que procuravas retratar? 

Não. Mas houve um processo muito delicado e precioso com o casting da Casa-Abrigo. Foi longo, foi tudo falado antes, e nesse sentido posso dizer que talvez estivesse também a tentar perceber se teria ou não essa dificuldade com os actores. Contudo, agora com a mini-série terminada, e com o elenco que tem, e posso dizer, sem modéstia, que junta debaixo do mesmo tecto as melhores actrizes do cinema, do teatro e da TV do Norte a Sul de Portugal (isso poderão confirmar). Agora, olhando para trás, não consigo transpor a dificuldade com este elenco, de lidarmos com o peso do que estávamos a retratar porque é… um elenco que se entregou com uma enorme confiança, respeito e coragem a estas personagens, o que tornou a rodagem uma outra Casa também para nós.

O tema que abordas é naturalmente pesado. Tiveste receio ao longo do processo de escrita e de gravação que o resultado final fosse leviano?

Pelo contrário. Aliás, eu por essa altura, quando estive a fazer a pesquisa, tive de viajar para diferentes zonas do país e ouvia no carro os álbuns da Joana Espadinha. Foi quando percebi que os temas da Joana, poderiam ajudar-me a retirar algum peso às situações em que as personagens se encontram. E eram perfeitas porque precisamente sem serem levianas, conseguiam nunca pesadas. E eu, com o tema que abordo, e com as personagens, posso nunca mostrar violência gráfica, posso ter personagens maravilhosas que sabem fazer rir, sabem brincar. Mas não consigo nunca ser pesado. Quem me dera a mim. Quem lhes dera a elas. Mas aí, seria outro o tema.

Que propósito tinhas quando pensaste avançar com este trabalho?

Sorrio com essa pergunta. Isto porque há trabalhos com os quais eu tenho um propósito que desenho, consigo imaginar, visualizar.  Este, em que uma grande parte de portugueses e residentes num Portugal de uma violência doméstica cultural se pode reconhecer ou reflectir, eu quis que entrasse pelas televisões de mulheres, de homens, de filhos, de pessoas que estão em casa, de muitas pessoas que não vão ao cinema, da minha família, das minhas tias, da minha mãe, das minhas primas em Esmojães, e queria, através deste projecto, criar uma ponte de comunicação entre o cinema que não vêem e o que podem ou querem ver para já; e por isso também, confesso que imaginei, visualizei, a Casa-Abrigo a estrear o primeiro e o segundo episódio juntos na Culturgest (porque foi onde estreei no IndieLisboa Uma Rapariga da Sua Idade). Porque sabia que queria que as actrizes, a equipa e todos os que quisessem entrar na Casa pelo Cinema, entrassem e dela saíssem para poderem depois descobrir mais. E sorrio porque, domingo, é o que irá acontecer.

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