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|capitalismo

Do indivíduo. Um diálogo com Lipovetsky

O desvanecimento do dever vai a par da hipervalorização do direito e da liberdade individuais, da afirmação de uma moral individualista e egóica, do «alargamento da lógica dos direitos subjectivos».

Turistas em busca de selfies, cultores das redes sociais, estão a arruinar a experiência de ver a obra de arte em museu, como com a «Mona Lisa», no Louvre. Foto de arquivo
Turistas em busca de selfies, cultores das redes sociais, estão a arruinar a experiência de ver a obra de arte em museu, como com a «Mona Lisa», no Louvre. Foto de arquivo Créditos / Reuters

1.

É conhecido o início forte e provocador do Livro do Desassossego, do heterónimo Bernardo Soares:

«Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê.»1

No seu documentadíssimo ensaio In Defense of History, de 1997, o historiador Richard J. Evans constata (e previne):

«Efectivamente, o tempo muda a cada instante, mas os historiadores sabem ser impossível captar a sua passagem. (…) Os historiadores estão perfeitamente cientes da complexidade dos factos e da impossibilidade de reduzi-los a uma única narrativa linear;» até porque, quando se realiza o imprescindível trabalho de contextualização dos factos, depressa se verifica que «os contextos em si mesmos são, sob alguns aspectos, infinitos.»2

Contando com estas avisadas advertências, o esforço de compreensão de fenómenos relativamente recentes no âmbito da ética ou da moral3 e dos valores exige questionamento crítico e enquadramento de longo prazo — uma perspectiva comandada pela curiosidade, pelo rigor, pela procura da objectividade, algo que não se compadece com uma visão imediatista dos problemas.

Por isso, ainda que discutíveis e sujeitas a revisões, as hipóteses de periodização podem ter alguma utilidade. Tomemos em consideração a proposta por Gilles Lipovetsky.

Segundo este autor, o primeiro ciclo da moral moderna, entre 1700 e 1950, período em que a moral «funcionou como uma religião do dever laico», chegou ao fim. Assim, «uma nova lógica do processo de secularização entrou em funcionamento, a qual já não consiste apenas em afirmar a ética como esfera independentemente das religiões reveladas, mas em dissolver socialmente a sua forma religiosa: o próprio dever.»4

Este desvanecimento do dever — de forma alguma, imediato e sem contradições — vai a par da hipervalorização do direito e da liberdade individuais, da afirmação de uma moral individualista e egóica, do «alargamento da lógica dos direitos subjectivos». Trata-se de um fenómeno complexo e com múltiplas e díspares manifestações, e cujos sintomas se poderão verificar, por exemplo, na relação com a morte e na atitude face à eutanásia, nas formas de livre disposição do corpo como a mudança de sexo e o primado do «sexo psicológico» sobre o «sexo morfológico», do «psicologismo» sobre o «moralismo», ou em casos facilmente tendentes à exploração comercial, como as designadas «barrigas de aluguer» e a venda de órgãos.5

«a conversão de qualquer bem em mercadoria invadiu e sugou todo e qualquer domínio da vida social. Esta é a lei do mais forte. Se se acrescentar a este quadro, nos termos de Lipovetsky, a miniaturização do dever do “período pós-moralista das democracias”, percebe-se o ganho para o sistema dominante na promoção do individualismo e de uma sociedade atomizada e desigual, pois “quanto maior for a autonomia subjectiva, mais complexa, exigente e difícil se torna a comunicação entre os seres”»

Segundo Lipovetsky, na segunda metade do século XX acentua-se a afirmação de uma época ou «idade do pós-dever», a morte anunciada de uma ética à la Kant, substituída por «uma ética fraca e minimal». Eis uma descrição da mudança axiológica que atravessa as últimas décadas do modus vivendi quotidiano: «a cultura quotidiana deixou de ser irrigada pelos imperativos hiperbólicos do dever e passou a sê-lo pelo bem-estar e pela dinâmica dos direitos subjectivos, deixámos de reconhecer a obrigação de nos ligarmos a qualquer coisa para além de nós próprios.» Acima de tudo, «nesta cultura individualista pós-moralista», a exaltação dos «direitos individuais à autonomia, ao desejo, à felicidade.» Ou seja, o indivíduo como «valor moral primeiro e último», como «o novo valor absoluto dos tempos modernos». A «religião moderna do dever» (Rousseau, Kant) abriu caminho para a afirmação da «autonomia do sujeito moral, que não tem que obedecer senão à lei da sua natureza dotada de razão ou a uma regra livremente aceite e entendida».6

Ora, como não sentir empatia pela defesa kantiana do «uso público» da razão, pela sua afirmação da liberdade e da autonomia humanas contra qualquer forma de tutela restritiva, preconceituosa e autoritária? Como não constatar nas palavras de Kant uma espantosa actualidade na vibrante denúncia dos recorrentes e variados modos de menorização do ser humano? Vale a pena recordá-lo:

«É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, (…) então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.»

Como não acompanhar Kant no seu contra-grito corajoso e lapidar, quando, com eloquência, critica: «agora ouço gritar de todos os lados: não raciocines! Diz o oficial: não raciocines mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! (…) Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade.»7

Mas não foi preciso passar muito mais que meio século para Marx e Engels colocarem o problema da liberdade e da emancipação humanas a uma nova luz, ou seja, tocarem na ferida — que continua aberta — da nova ordem capitalista, chamarem a atenção para o seu princípio volatilizador e secularizador — «Tudo o que era (…) estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado» —, denunciarem a proletarização e a mercadorização sistémicas em curso, a brutal e estrutural exploração capitalista:

«A burguesia (…) resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, colocou a exploração seca, directa, despudorada, aberta.»

«a cultura quotidiana deixou de ser irrigada pelos imperativos hiperbólicos do dever e passou a sê-lo pelo bem-estar e pela dinâmica dos direitos subjectivos, deixámos de reconhecer a obrigação de nos ligarmos a qualquer coisa para além de nós próprios»

G. Lipovetsky

E, assim, as antigas autoridades tiveram que se submeter à nova tutela, as anteriores formas de restrição da liberdade converteram-se ao superior princípio regulador do Capital:

«A burguesia despiu todas as actividades até aqui veneráveis e estimadas com piedosa reverência da sua aparência sagrada. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.»8

A Bolsa de Valores de Nova Iorque, em Wall Street, é o principal mercado de valores mobiliários do mundo. Fundada em 1792, localiza-se no coração da ilha de Manhattan, em Nova Iorque (EUA) CréditosBrendan McDermid / Reuters

Não se julgue que é preciso ser-se marxista para se proceder a este reconhecimento, pois bastará alguma objectividade e honestidade intelectuais para verificar que «o desenvolvimento do capitalismo implicou a consagração da liberdade económica como valor central da sociedade», como refere Victoria Camps.

Como parece óbvio, as implicações da mercadorização da vida social não são poucas nem irrelevantes, e designadamente para o que aqui nos ocupa.

Que a autodeterminação ou a autonomia sejam «condições da escolha ética» é um dado que não deve, sob pretexto algum, ser esquecido ou secundarizado, antes constantemente assumido e valorizado. Neste plano, importa acima de tudo não confundir a água suja do banho com o menino que nele se encontra, ou seja, separar individualismo do valor do indivíduo. Simplesmente, a alienação e coisificação capitalista do indivíduo está em completa sintonia com a «ideologia económica moderna», com o «primado da relação homem/objecto sobre a relação homem/homem». E assim, a racionalidade económica dominante traduz-se numa realidade que não só ameaça reduzir o indivíduo à condição de objecto, como na prática o converte «numa mercadoria mais.»

Diz Victoria Camps: «ao converter qualquer bem em mercadoria, em algo que se pode comprar, o mercado trivializa o valor dos bens culturais ou espirituais.»9

Na verdade, esta asserção pode ser universalizada e radicalizada: a conversão de qualquer bem em mercadoria invadiu e sugou todo e qualquer domínio da vida social. Esta é a lei do mais forte.

Se se acrescentar a este quadro, nos termos de Lipovetsky, a miniaturização do dever do «período pós-moralista das democracias», percebe-se o ganho para o sistema dominante na promoção do individualismo e de uma sociedade atomizada e desigual, pois «quanto maior for a autonomia subjectiva, mais complexa, exigente e difícil se torna a comunicação entre os seres.»

«depois do imperativo categórico, o imperativo narcísico incessantemente glorificado pela cultura higiénica e desportiva, estética e dietética. (…) a felicidade individualista é inseparável de um extraordinário forcing no esforço de dinamização, de conservação, de gestão optimizada de si próprio»

G. Lipovetsky

Percebe-se também a quota-parte de verdade do seguinte resumo panorâmico, cultural e axiológico, em que ocorre a derrota do deontologismo face ao utilitarismo e ao consumismo, de Kant face a John Stuart Mill: «a erosão da cultura do dever absoluto prossegue irresistivelmente o seu caminho em benefício dos valores individualistas e eudemonistas, a moral recicla-se em espectáculo e em comunicação lucrativa, a militância do dever metamorfoseia-se em consumo interactivo e festivo de bons sentimentos, são os direitos subjectivos, a qualidade de vida e a realização pessoal que orientam, em grande escala, a nossa cultura, e não o imperativo hiperbólico da virtude.» Nesta época designada de pós-moralista, eis «a ruptura mais espectacular»: «Em algumas décadas, passámos da civilização do dever para uma cultura da felicidade subjectiva, do ócio e do sexo: é a cultura do self-love que nos rege.»10

Este fenómeno ocorre também por via da invasão do consumismo e da comunicação de massas: «A civilização do bem-estar consumista constituiu o grande coveiro histórico da ideologia gloriosa do dever. (…) os supermercados, o marketing, o eldorado do lazer foram o túmulo da religião do dever.» O que está a dar? O «hino ao ego», os «estímulos consumistas», a difusão massiva de «conselhos dietéticos e estéticos, desportivos e turísticos, eróticos e psicológicos», «política espectáculo e espectáculo publicitário».

Estamos na presença de uma «aritmética utilitarista», da consumação da máxima, atente-se nos termos, de «consumir com moderação», de um «hedonismo» já não «agressivo, nem diletante», mas sim «gerido, funcionalizado, prudentemente light». Em termos axiológicos e éticos, e com efeitos relevantes no plano individual e no modo de vida a adoptar, é a vitória do imperativo selfie sobre o imperativo deontológico: «depois do imperativo categórico, o imperativo narcísico incessantemente glorificado pela cultura higiénica e desportiva, estética e dietética. (…) a felicidade individualista é inseparável de um extraordinário forcing no esforço de dinamização, de conservação, de gestão optimizada de si próprio.» Atenda-se pois às «exigências de protecção, de conservação, de valorização do capital-corpo. Por um lado, a época além-dever liquida a cultura autoritária e puritana tradicional; por outro, gera novos imperativos (juventude, saúde, elegância, forma, lazer, sexo) de auto-construção individual, sem dúvida personalizados, mas que criam um estado de hiper-mobilização, de stress e de reciclagem permanente.»11

«Nas nossas sociedades, o altruísmo erigido em princípio permanente da vida é um valor desqualificado (…): a nova era individualista conseguiu a proeza de atrofiar nas próprias consciências a autoridade do ideal altruísta, desculpabilizou o egocentrismo e legitimou o direito de cada um a viver para si próprio. (…) O espírito de sacrifício, o ideal de preferabilidade do outro estão desacreditados: mais direitos de existência para nós próprios, nenhuma obrigação de nos dedicarmos aos outros, tal é, em termos abruptos, a própria fórmula do individualismo acabado»

G. Lipovetsky

Sociedade em rápida mutação axiológica, em que a ordenação da escala de valores se altera de forma significativa. Sem se traduzir necessariamente na vitória do egoísmo puro e duro, é certo que o altruísmo perde terreno: «Nas nossas sociedades, o altruísmo erigido em princípio permanente da vida é um valor desqualificado (…): a nova era individualista conseguiu a proeza de atrofiar nas próprias consciências a autoridade do ideal altruísta, desculpabilizou o egocentrismo e legitimou o direito de cada um a viver para si próprio. (…) O espírito de sacrifício, o ideal de preferabilidade do outro estão desacreditados: mais direitos de existência para nós próprios, nenhuma obrigação de nos dedicarmos aos outros, tal é, em termos abruptos, a própria fórmula do individualismo acabado.» Tal não significa, de forma maniqueísta, um desprezo pelo bem. A matéria é mais complexa. A grelha de análise e interpretação tem que ser mais fina. O que está em causa no «individualismo contemporâneo» é uma certa antinomia «em relação ao ideal de dádiva da própria pessoa em si: queremos ajudar os outros, mas sem nos empenharmos muito, sem darmos muito de nós próprios. Generosidade, sim, na condição de ser fácil e distante, que não se faça acompanhar de uma qualquer renúncia maior.» Portanto, a «retracção sobre o eu» não se traduz na ausência da «preocupação ética», mas antes num «altruísmo indolor de massas», numa «ética minimal e intermitente da solidariedade compatível com a primazia do ego.» Uma ética distante, indolor, instantânea: «tornámo-nos mais sensíveis à miséria exposta no pequeno écran do que à que nos é imediatamente tangível, há maior comiseração pelo outro distante do que pelo que nos está quotidianamente próximo.»12 Há consciências que, deste modo, sempre se sentirão mais apaziguadas.

Os amantes, René Magritte CréditosMagritte /

Importa sublinhar que este primado «da invenção individualista de si mesmo» é um achado ideológico fortíssimo: por um lado, cria a ilusão de uma liberdade autêntica (já que a liberdade, cumpre lembrá-lo, sempre se resolve na relação com o outro); por outro lado, tem como contrapartida a descrença em qualquer perspectiva de revolucionamento do status quo dominante, e, nessa medida, é natural que seja intensamente instigada e difundida: «já não acreditamos no sonho de «mudar a vida», não existe mais do que o indivíduo soberano ocupado com a gestão da sua qualidade de vida. (…) as perspectivas revolucionárias de mudar a natureza humana foram substituídas por uma rigorosa administração operacional da saúde.» Mudar de vida (e prolongá-la o mais possível), sim; mudar a vida, nem pensar, pois está bem assim, ou nunca esteve tão bem como está. Atomização social, enfraquecimento dos laços que ligam os indivíduos entre si — que mal tem isso se nos resta «uma vontade de gestão optimizada dos corpos», que nos compensa de uma qualquer (comprovada) utopia trágica de transformação radical da imutável natureza humana?! E, afinal, que novidade há na «dinâmica de segregação social», na reconhecida «dualização social», em «blocos inteiros da sociedade» a afundarem-se «na marginalidade, na pobreza, na regressão sanitária», sintomas evidentes de inadaptação, de preguiça, de incapacidade, de falta de empreendedorismo, em tempos de abertura, de comunicação e informação, de oportunidades infinitas?13

«[o] primado «da invenção individualista de si mesmo» é um achado ideológico fortíssimo: por um lado, cria a ilusão de uma liberdade autêntica […] por outro lado, tem como contrapartida a descrença em qualquer perspectiva de revolucionamento do status quo dominante […]. Mudar de vida (e prolongá-la o mais possível), sim; mudar a vida, nem pensar, pois está bem assim, ou nunca esteve tão bem como está»

Sociedade aberta, então? Não nos deixemos iludir, e alguns apontamentos de Lipovetsky ajudam-nos na tarefa crítica: «vivemos numa sociedade sem tabus opressivos mas clean, livre mas terna, tolerante mas estratificada, virtualmente aberta mas fechada sobre o eu.» Se «o reino do pragmatismo individualista substituiu o do idealismo categórico», isso não significa o advento do desregramento caótico ou da permissividade generalizada, bem pelo contrário, pois a regulamentação e o controlo heterónomo continuam a fazer o seu caminho, e agora, porventura, de forma ainda mais eficaz, porque dissimulada e subtil. Parece assim que se resolveu a quadratura do círculo: «só há um aumento de autonomia subjectiva se este for acompanhado por um acréscimo de controlo social heterónomo, o qual, agindo em nome do próprio interesse dos indivíduos, é capaz de regulamentar cada vez mais, em consenso social e sem injunção autoritária, a existência quotidiana.»14

2.

Passaram quase trinta anos da publicação da obra de Lipovetsky com a qual temos vindo a dialogar. Não constitui um exagero nem resultado de desfocagem afirmar que as suas previsões mais sombrias se têm confirmado. Do valor positivo do indivíduo para o individualismo sem freio a passada tem sido curta e apressada, pelo que, o que era então verificação de tendência e projecção de cenário futuro, se revelou entretanto bem mais do que plausível: «será a selva dos interesses e a dualização social a desenhar, amanhã, o rosto das democracias, é o reino da especulação exagerada e, por contágio, o do individualismo irresponsável, sem regras, que tendencialmente, ganhará sectores cada vez mais amplos das nossas sociedades.» Neste quadro, não se estranhe o recuo do exercício da cidadania: «as sociedades pós-moralistas são mais democracias de indivíduos do que democracias de cidadãos.»15

Entretanto, importa assinalar que, no fundo, para o autor, existe um capitalismo bom e um capitalismo mau, e, claro está, o antagonismo e o campo de escolha ficam aqui acantonados: «Existem duas tendências do individualismo contemporâneo, assim como há dois modelos antagónicos de capitalismo: de um lado, um individualismo responsável e organizador, do outro, um individualismo auto-suficiente, sem regras, desorganizador: dito sem rodeios, irresponsável.» Portanto, a natureza estrutural do capitalismo resolve-se, em última instância, pela cultura, pela ética: «o verdadeiro problema que se levanta nos nossos dias é de fazer com que, no antagonismo entre os dois individualismos, seja o individualismo responsável (consciência profissional, preocupação com o outro, sentido do interesse geral e do futuro…) a adiantar-se à liberdade sem regras. O neo-individualismo não é uma maldição, é um desafio a enfrentar, tanto pela acção pública como pelas próprias empresas.» Senhores capitalistas: desenvolvam a cultura da responsabilidade, preocupem-se com os outros e com o futuro, sejam boas pessoas e não egoístas selvagens, sejam ecológicos e beneficentes, e não gastadores e inimigos do ambiente, e tudo andará pelo melhor dos mundos!16

«Do valor positivo do indivíduo para o individualismo sem freio, […] valerá a pena descer ao incontornável mundo prático do trabalho. É que nele assiste-se a um claro retrocesso civilizacional, e a uma inversão do propalado desvanecimento dos deveres face aos direitos, ou seja, a um muito objectivo e despudorado ataque aos direitos dos trabalhadores»

Ou quase. Porque valerá a pena descer ao incontornável mundo prático do trabalho. É que nele assiste-se a um claro retrocesso civilizacional, e a uma inversão do propalado desvanecimento dos deveres face aos direitos, ou seja, a um muito objectivo e despudorado ataque aos direitos dos trabalhadores. Embora não nestes termos, o próprio Lipovetsky não pode deixar de o reconhecer quando no último capítulo da obra aborda o tópico do «casamento entre a ética e o negócio». Aliás, já antes faz referência, como assinalámos, à ascensão e dominação das políticas neoliberais e à subsequente acentuação da desigualdade que dualiza as democracias, aumentando o número dos excluídos e tornando ainda mais precárias as suas condições de vida. Um registo de discurso bem distinto e contraditório ao da retórica do bem-estar e da felicidade. Mesmo num defensor de um «individualismo responsável» e «de uma ética dialogada da responsabilidade» e do compromisso, consegue ler-se: «o neo-liberalismo económico fractura a comunidade, cria uma sociedade dual, assegura a lei do mais rico, compromete o futuro.»17

Assim, é curioso verificar que, para o autor, em termos de gestão empresarial (e, note-se, o que se segue não significa qualquer desprezo ou desvalorização desta importante área do saber), os centros do poder procuram os trilhos da maior eficácia pela via da (retórica da) «participação», da «motivação» e da «obra comum». O controlo não pode deixar de estar presente, mas agora é de um novo tipo, digamos mais «cultural», sofisticado e integrativo: «ao controlo mecânico dos corpos de produção tende a suceder um «controlo dos espíritos» flexível e comunicacional, participativo e simbólico (códigos, ritos, projectos, credo), destinado a pôr todas as energias ao serviço de uma mesma comunidade de pertença.» Deste modo, procura integrar-se «uma parte de «não-poder», de indeterminação, de liberdade dos actores para passar a um patamar superior de competitividade». Contornando (mas não eliminando) o modelo de organização disciplinar e autoritária, deve-se enaltecer «o desenvolvimento do indivíduo», a «ética da excelência» individual, para assim melhor captar «todas as energias ao serviço da empresa», «da competitividade, da concorrência, do desafio da «qualidade total»», e, já agora, da maximização do «lucro». E haverá melhor forma deste desiderato se concretizar do que a realização de um «pacto social» assente na contratualização individual, no «reconhecimento do mérito individual», na «estimulação de si próprio até aos limites»?!

«por debaixo desta retórica, é o capitalismo neoliberal que ganha terreno em todos os domínios da vida social, com “os efeitos devastadores” conhecidos: “o fosso entre os ricos e pobres aumenta, os sistemas de protecção social recuam, há toda uma parte da população que se marginaliza, os sistemas educativos degradam-se, a criminalidade aumenta, a focalização nos lucros imediatos intensifica-se, a economia especulativa leva a melhor sobre a indústria”»

E haverá estranheza em ver que, por debaixo desta retórica, é o capitalismo neoliberal que ganha terreno em todos os domínios da vida social, com «os efeitos devastadores» conhecidos: «o fosso entre os ricos e pobres aumenta, os sistemas de protecção social recuam, há toda uma parte da população que se marginaliza, os sistemas educativos degradam-se, a criminalidade aumenta, a focalização nos lucros imediatos intensifica-se, a economia especulativa leva a melhor sobre a indústria»?

E haverá surpresa em reconhecer em todo este quadro um ataque à democracia, uma contradição frontal face à natureza do sistema democrático: «uma sociedade democrática não pode permitir, sem se negar a si própria, o crescimento indefinido das desigualdades em matéria de nível de vida, de saúde, de educação, de urbanismo»?18

O que esperar deste «casamento entre a ética e o negócio»? Como, neste quadro, não podia deixar de ser: o triunfo da business ethics: «Se a caridade-espectáculo explora a moral do sentimento, a business ethics assenta na moral do interesse bem claro: não é a consagração da ética que caracteriza a nossa época, mas a sua instrumentalização utilitarista no mundo dos negócios.» Assim, «a ética transformou-se em meio económico, em instrumento inédito de gestão»; ou seja, «Ethics is good business», pois «hoje em dia, tudo pode ser vendido sob os auspícios da ética.» Do ponto de vista ideológico-comunicacional está encontrado um óptimo filão: «Em parte nenhuma, a operacionalização utilitarista da moral é tão explícita como nas novas estratégias de comunicação das empresas.» A ética passa a ser tomada como «um investimento estratégico e comunicacional ao serviço da imagem de marca e do crescimento a longo prazo.» Trata-se da «continuação da guerra económica por outros meios», meios esses mais condizentes com um controlo menos directo e homogéneo dos comportamentos, com uma gestão menos «panóptica e disciplinar», pois o negócio e o domínio do ambiente económico passam a funcionar «em função da imagem, da personalização, da comunicação polimorfa e intersticial.»19

«O que esperar [do] «casamento entre a ética e o negócio»? Como, neste quadro, não podia deixar de ser: o triunfo da business ethics: “Se a caridade-espectáculo explora a moral do sentimento, a business ethics assenta na moral do interesse bem claro: não é a consagração da ética que caracteriza a nossa época, mas a sua instrumentalização utilitarista no mundo dos negócios”»

E se a tudo isto ainda se conseguir acrescentar a «implicação» e «autonomização do pessoal» na batalha empresarial, está criado um suplemento moral que permite passar a falar de colaboradores, e não mais de trabalhadores: «Nestas condições, a gestão pós-burocrática não se separa de uma visão ética, sendo o essencial a substituição do princípio de obediência pelo princípio de responsabilidade, a dinamização dos recursos criativos de todos os colaboradores, o desenvolvimento da qualidade de vida no trabalho.» Na feliz expressão de Lipovetsky, trata-se de um «Happy-end moral», em que «a pedra angular do êxito económico já não se chama exploração da força de trabalho, disciplina e divisão mecânica de tarefas, mas sistema de interesse, programas de formação, acréscimo de responsabilidades, influência no destino colectivo.» O fundo mantém-se, a procura da maximização do lucro continua, mas agora adaptando-se e observando uma necessária mudança de paradigma gestorial — a da «racionalidade tecnocrática pela «cultura», a eficácia imediata pelo projecto qualitativo, a coerção pela adesão; é através da participação de todos no projecto comum da empresa e da clarificação dos valores fundamentais que se procura a dinamização do conjunto e a mobilização individual.» O capital não dorme; de modo que, se for possível moralizar o seu rosto, e ainda para mais, por essa via, aumentar o lucro, está encontrada uma saída a preceito: «ontem, era a moral que prescrevia regularidade e disciplina, hoje, ela é um instrumento de flexibilidade da empresa; ontem, era um sistema de autoridade, de imposição e de obrigação incondicional, hoje, significa menos hierarquia e disciplina, mais iniciativa, abertura à mudança e flexibilidade, com vista a uma maior competitividade.»20

«Afirme-se a liberdade individual — conquista civilizacional, expressão indeclinável da autonomia humana —, mas que ninguém se iluda quanto ao enquadramento geral e ao constrangimento superior em que tal afirmação hoje se verifica. As liberdades oferecem-se assim, subtil ou despudoradamente, aos mais diversos usos, e com o permanente cuidado de não beliscarem, antes promoverem, a ordem capitalista instituída»

Na verdade, não há aqui nenhuma conversão ao (nem consagração do) «ideal da autonomia individual». Mais uma vez, o business tem a primeira e a última palavra: «Num universo de concorrência mundial, dominado pela instabilidade, a velocidade dos ciclos de inovação e as mudanças na procura, a competitividade da empresa requer flexibilidade e qualidade, as quais deixaram de ser compatíveis com a direcção hierárquica e autoritarista», impondo «uma gestão não-hierarquizada, participativa e ética.» Não há mesmo nada como dar uma forma renovada à servidão voluntária: «A ética da responsabilidade não impõe uma norma autoritariamente, fá-la ser desejada como conforme ao desenvolvimento de cada um».21

3.

Afirme-se a liberdade individual — conquista civilizacional, expressão indeclinável da autonomia humana —, mas que ninguém se iluda quanto ao enquadramento geral e ao constrangimento superior em que tal afirmação hoje se verifica. As liberdades oferecem-se assim, subtil ou despudoradamente, aos mais diversos usos, e com o permanente cuidado de não beliscarem, antes promoverem, a ordem capitalista instituída. Sim, é o capitalismo e a sua incontornável natureza estrutural que aqui estão necessariamente em causa, como, num momento de lucidez, Lipovetsky constata: «Se o discurso dominante lisonjeia a participação e a responsabilização, de facto, é o capitalismo que ressurge, em muitos aspectos, com o movimento de divisão salarial, a erosão dos sistemas de protecção social, a multiplicação dos empregos que exigem poucas qualificações e são mal remunerados. (…) O unanimismo ético é concomitante com a desqualificação profissional, com a dualização e a marginalização social.»

Perante este quadro, o que Lipovetsky nos tem para oferecer é a segurança da declinação em tom presumido, desistente e conformado: «A época revolucionária terminou, a da «perestroika» política veio substituí-la».22

E, no entanto, como terá dito o outro, ela — a luta, a esperança — move-se. É que «a vida está recheada de surpresas inesperadas.»23 Ainda que em circunstâncias alheias (e, a maioria das vezes, adversas) à vontade das pessoas, são os indivíduos que constroem a (sua própria) história, e esta está — na verdade, estará sempre — longe de poder ser considerada terminada.

Almada, Dezembro de 2019-Janeiro de 2020

  • 1. Fernando Pessoa/Bernardo Soares, Livro do Desassossego, (1914), Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, ed. Richard Zenith, p. 45, 3ª edição.
  • 2. Richard J. Evans, Em Defesa da História, (1997), trad. Carla A. de Sousa da Silva Pereira, Lisboa, Temas e Debates, 2000, pp. 158, 159, 175; doravante: DH.
  • 3. Embora haja boas razões para os distinguir, designadamente considerando a ética uma reflexão filosófica sobre a moral, tomamo-los aqui como sinónimos ou, pelo menos, como termos aparentados.
  • 4. G. Lipovetsky, Le Crépuscule du Devoir. L’éthique indolore des nouveaux temps démocratiques, (1992), trad. Fátima Gaspar e Carlos Gaspar: O Crepúsculo do Dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1994, p. 16; doravante: CD.
  • 5. G. Lipovetsky, CD, p. 106; cf. p. 102 e ss. Sobre o tema, veja-se também do mesmo autor L’Ere du Vide (1983), trad, Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria: A Era do Vazio, Lisboa, Relógio d’Água, 1989. Para uma discussão de tópicos da designada ética prática, veja-se Pedro Galvão, Ética com razões, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015, onde designadamente se discute (e apoia) a eutanásia voluntária (cf. pp. 44-57).
  • 6. G. Lipovetsky, CD, pp. 16-18, 29, 34. Esta descrição não invalida, antes pelo contrário, a emergência de reacções «absolutistas», «fundamentalistas», «fanáticas», «hiper-repressivas», «moralistas», designadamente de uma extrema-direita envergonhada ou assumida.
  • 7. I. Kant, «Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?», (1784), trad. Artur Morão: «Resposta à pergunta: que é o Iluminismo?», in A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Ed. 70, 1988, pp. 11-12, 13. Hoje uma outra máxima em voga é: Não raciocines, compra!
  • 8. K. Marx e F. Engels, Manifest der Kommunistischen Partei, (1848), trad. Álvaro Pina: Manifesto do Partido Comunista, in Obras Escolhidas em três tomos, Lisboa/Moscovo, Ed. «Avante!»/Ed. Progresso, 1982, I, pp. 110, 109.
  • 9. Victoria Camps, Paradojas del individualismo, (1993), trad. Manuel Alberto: Paradoxos do individualismo, Lisboa, Relógio D’Água Ed., 1996, pp. 209, 221, 63, 215.
  • 10. G. Lipovetsky, CD, pp. 56, 82, 57, 58. O alcance ideológico do individualismo é relevante: «O apelo ao individualismo destina-se fundamentalmente a justificar — e a tornar mesmo «aceitável» — a desigualdade.» José Barata-Moura, «Indivíduo e Colectivo», (1988), in Materialismo e Subjectividade. Estudos em torno de Marx, Lisboa, «Ed. Avante!», 1997, p. 329.
  • 11. G. Lipovetsky, CD, pp. 59, 60, 62, 66, 65. Em suma, «por toda a parte, a hora é da desvitalização da forma-dever, do estiolamento do mandamento moral infinito» (p. 147).
  • 12. G. Lipovetsky, CD, pp. 151, 152-153, 159. Assim, «a acção beneficente já não se apoia num imperativo universalista rigorista, é terapêutica e identitária; o novo individualismo não erradica a compaixão e o desejo de ajudar os semelhantes, apenas os junta à busca de si próprio.» (p. 166) E, podia-se acrescentar, faz deles uma nova área de negócio.
  • 13. G. Lipovetsky, CD, pp. 84-85, 175-176, 122. Abordámos este tópico no texto «Mudar de vida ou mudar a vida?», in Vértice, Janeiro-Fevereiro-Março/2019, pp. 125-140. Sobre o tema, é altamente recomendável o visionamento dos últimos filmes de Ken Loach: «I, Daniel Blake» (2016) e «Sorry We Missed You» (2019).
  • 14. G. Lipovetsky, CD, pp. 97, 98-99.
  • 15. G. Lipovetsky, CD, pp. 220, 230.
  • 16. G. Lipovetsky, CD, pp. 217, 218. A esta distância, a propósito do tema da ecologia e da chamada ética da responsabilidade, é interessante verificar que o autor chame a atenção para a situação de que o tratamento do mesmo tenha implicado uma concomitante (e muito conveniente) desvalorização das questões relativas à pobreza, ao sub-desenvolvimento, ao desemprego, apresentando um caso curioso: «Enquanto no início de 1989, a Time elegia a Terra «figura do ano», em São Francisco os homeless tinham que abandonar os espaços verdes públicos, a pretexto do respeito pelo ambiente.» (p. 245) Pode este exemplo ser tomado como simbólico e premonitório para o que entretanto se tem vindo a passar: o capitalismo, enquanto eticamente responsável, está em condições de salvar o planeta e, por extensão, a humanidade; para quê então perder tempo com questões menores e ultrapassadas como a das classes sociais e da desigualdade?! Ora, o que se apresenta assim como sagrado não é a vida, mas o próprio capitalismo, que, promovendo o «hedonismo ecológico», rapidamente desenvolveu o «shopping ecológico», «prolongando de outra forma a dinâmica individualista de consumo», reciclando e harmonizando-se «com a lógica industrial e consumista». Assim, «em termos da sua integração social, a ética do ambiente já não é dirigida contra o capitalismo e a indústria», antes é vista como uma forma de alargamento da esfera do mercado, como uma oportunidade de intensificação do lucro. Em suma, «mais negócio, mais indústria, mais mercado.» (pp. 248-250)
  • 17. G. Lipovetsky, CD, pp. 21, 23.
  • 18. G. Lipovetsky, CD, pp. 200, 202, 203, 204, 205, 208, 219.
  • 19. G. Lipovetsky, CD, pp. 282, 285, 286, 294, 297, 302, 303.
  • 20. G. Lipovetsky, CD, pp. 306-308.
  • 21. G. Lipovetsky, CD, pp. 310, 309, 312. As consequências psicológicas não deixam também de se fazer sentir: «Outrora, a moral repressiva era fonte de histeria, hoje a moral da autonomia e do desenvolvimento contribui para gerar ansiedade, fadiga intelectual e depressão»; em suma, «desequilíbrio existencial.» (p. 315) Atente-se na observação: «trabalhar de outra forma é também trabalhar mais» (p. 312). E ouça-se o psiquiatra António Coimbra de Matos: «Hoje as pessoas não dão conta que trabalham muito e de que são abusadas. (…) As pessoas habituaram-se de tal maneira ao excesso de trabalho que se impõem a si próprias ritmos excessivos.» Entrevista ao jornal i, «Não é nada preciso sofrer, o que é preciso é gozar a vida», 3.1.2020, p. 22.
  • 22. G. Lipovetsky, CD, pp. 316, 236.
  • 23. Richard J. Evans, DH, p. 76.

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