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E não te cresce uma raiva nos dentes?

A Jerónimo Martins obteve lucros de 356 milhões de euros no primeiro semestre. A Sonae de 69 milhões de euros. A Galp Energia de 508 milhões de euros. A EDP de 437 milhões de euros. Tu fazes contas à vida e eles contas aos lucros.

Manifestação da CGTP-IN por melhores salários e mais direitos, durante o Dia Internacional do Trabalhador, em Lisboa, a 1 de Maio de 2023
CréditosMiguel A. Lopes / LUSA

Sabes que te custa acordar de manhã. Se for segunda-feira pensas que o fim-de-semana poderia ter tido mais um dia. Pensas nisso todas as segunda-feiras, pensas nisso dia após dia, semana após semana, mês após mês e ano após ano. Ao cansaço, à medida que o tempo passa, juntou-se alguma resignação. A rotina cultivou-a.

Depois de pagarem a prestação da casa, as compras do mês, a água, luz e gás, o teu companheiro ou companheira, na sexta-feira depois de jantarem e antes de começarem a ver uma série numa qualquer plataforma de streaming, sugere poderem fazer um plano no fim-de-semana. Consideras uma boa ideia, uma boa forma de escapar a essa rotina que te resignou. 

Começam então a trocar ideias do que fazer. Um sugere irem passar um dia a Peniche e lá irem a um museu e almoçarem. Gostas da ideia até porque já tinhas ouvido que o peixe lá é bom. Mas começam a fazer as contas. Ir e vir seria uns 25 euros de gasolina, a isso juntavam-se as portagens e quiçá o estacionamento. O almoço ficaria a 15 euros cada um e se calhar ainda teriam que lanchar. Começam a fazer contas e pensam que se calhar é melhor não ir, o mês ainda agora tinha começado e já não há grande folga para uma qualquer eventualidade. 

Surgiu depois a ideia de irem ao cinema. Até estreou um bom filme, pelo que dizem. A questão é que dois bilhetes, sem desconto, ficam a 14,90 euros e o menu de pipocas mais bebida seria 7,25 euros. Só este pequeno plano ficaria a 22,15 euros. Não está longe do que pagaste numa qualquer conta e pensas que se calhar é melhor não ir. A vida não está fácil. 

Fazem o mesmo exercício com outros planos e a conclusão acaba por ser sempre a mesma. Optam por ficar em casa com a promessa conjunta que nesse mês iriam meter algum dinheiro de parte para poderem fazer alguma coisa no próximo mês. Não expressas, mas ficas com algum receio que a rotina mate a tua relação. 

É então que te surge o pensamento que começa a ser cada vez mais recorrente e a corroer. Um pensamento de injustiça por trabalhares a semana inteira e não conseguires fazer algo diferente que te quebre a rotina pelo menos uma vez por mês. 

No mês seguinte o mesmo acontece, mas com a agravante de terem aparecido mais uns euros na factura do supermercado, com mais um aumento na prestação da casa, com a água e a luz terem encarecido. Mais um mês que nada fizeste com quem partilhas a vida, com quem partilhas as privações. Mês após mês os mesmos planos adiados e o sentimento de injustiça a reforçar-se. Mês após mês trabalhaste dia após dia e adiaste plano após plano, sonho após sonho.

Chegaste a Julho com as férias marcadas para Agosto. O teu companheiro ou companheira pergunta onde irão nas férias. Pensam primeiro no Algarve, mas dizem que está mais caro. Depois pensam no Gerês, mas é longe. Depois até se lembram da casa de família no Alentejo daquele amigo com quem já pouco estão. Depois de tanto pensarem consideram que se calhar mais vale ficarem em casa. O dinheiro do subsídio de férias pode fazer falta no futuro. Na televisão já dizem que as prestações da casa sobem no próximo mês, mas dizem que tem de ser. As compras continuam a aumentar, mas dizem que não podem fazer nada em relação a isso. A água, a luz e o gás também irão aumentar, dizem que a culpa é da guerra. Dizem que aumenta tudo, mas nunca dizem que aumenta o salário.

Mais vale mesmo ficar em casa. O tempo até está bom e o calor faz-se sentir, mas os tempos não estão para aventuras. Mais vale ir à praia que fica a 50 minutos. Gasta-se menos. Talvez até dê para ir um dia ou outro a Peniche. Desta vez até podem ir ao cinema ver o final que estreou e que dizem que está bom. 

Mas eis que volta novamente aquele pensamento de injustiça. O pensamento desta vez é mais forte. Foi crescendo com o adiar de toda uma vida. Começas a pensar e o teu colega de trabalho está a passar pelo mesmo que tu. Se calhar até está pior. Tem dois filhos e as quantias são a duplicar. Às tantas questionas o porquê. O porquê de tu e os teus terem que ser obrigados a adiar todos os planos, todos os sonhos e toda a vida. Concluis que não está sozinho e o pensamento de injustiça começa a transformar-se em revolta. 

Enquanto a revolta cresce, os lucros daqueles que te colocam em dificuldades crescem também. Vês que a Jerónimo Martins obteve lucros de 356 milhões de euros no primeiro semestre. A Sonae de 69 milhões de euros. A Galp Energia de 508 milhões de euros. A EDP de 437 milhões de euros. 

Começas a pensar nos teus fins-de-semana não gozados, naquele passeio que não fizeste, naquele pequeno programa adiado, naquele filme que não viste, naquele sonho que não cumpriste, naquela vida que ficará para uma outra vida, em tudo o que não deu, em tudo o que foi gozado por um outro alguém. Mas nunca por ti.

Os Pedros Soares dos Santos desta vida fizeram-no. As Claudias Azevedo fizeram-no. As Paulas Amorim fizeram-nos. Mas tu e os teus nunca o podem fazer. Tu e os teus têm que ser solidários e adiar as vossas vidas. E porquê? Porque esses que tudo fazem alimentam-se do teu cansaço ao acordar, da tua vida adiada, do teu sonho desvanecido, da tua exploração. 

O teu pensamento de injustiça só se poderia transformar. Mas a revolta que sentias desta vez deu lugar à raiva. E vai-te crescendo uma raiva nos dentes. Pensas em formas de canalizá-la, pensas em juntares-te aos teus. Pensas lutar com aqueles que também transformam a injustiça em raiva. Pensas que queres lutar por ti, mas lutar também pelos teus. 

Pensas que a raiva que te cresce nos dentes também se transformará em alegria quando estarás nas fileiras com aqueles que querem meter fim à injustiça. 
 

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