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|racismo

Os racistas são os palhaços dos patrões

A história do racismo que permite aos ricos serem cada vez mais ricos e culpar os imigrantes dos problemas do país.

Créditos / Visão

«Qualquer dia temos mais imigrantes que pessoas», garante o líder do Chega, André Ventura, numa arruada para as eleições europeias em Setúbal. Tenta corrigir o lapso freudiano com o acrescento à frase do substantivo «portugueses». É o mesmo Ventura que quer um referendo para limitar a imigração. Como se o grande problema em Portugal não fosse os baixos salários, as desigualdades sociais crescentes, a falta de habitação, mas, pelo contrário, haver centenas de milhares de imigrantes a trabalhar e a criar riqueza em Portugal.

A sondagem do CESOP da Universidade Católica, Julho de 2024, põe a imigração em sexto lugar das preocupações dos portugueses, muito abaixo da situação no Serviço Nacional de Saúde e dos baixos salários, com 18% e 14% de inquiridos preocupados, respectivamente.

No entanto, a entrada da imigração nos problemas considerados pelos inquiridos da sondagem, com 6% dos sondados, é fruto do trabalho político da extrema-direita que constrói um discurso do medo e quer limitar o número de imigrantes legais, aproveitando as benesses, para alguns, do trabalho escravo sem direitos sociais e políticos dos imigrantes. Milhares de trabalhadores estrangeiros recebem salários de miséria, são alojados em contentores e camaratas sobrelotadas e forçados a trabalhar mais do que as oito horas legais por dia, em duras condições, nos campos, em sectores como as entregas, hotelaria, construção civil e restauração.

Para a direita, por um lado, os imigrantes são o mal absoluto; por outro, são bons para explorar e pressionar para baixar os salários de todos os assalariados.

Que o diga o deputado do Chega Rui Paulo Sousa, que contratava trabalhadores indianos para uma empresa de exploração de espargos, da qual era administrador. Ao mesmo tempo que o seu partido se opunha à vinda de imigrantes da Ásia por serem uma ameaça à identidade portuguesa.

A ideia da grande substituição das populações europeias pelas de outros continentes é uma fraude estatística, mas baseia-se sobretudo no racismo herdado do colonialismo, na construção de uma ideia de raça e pureza genética ameaçada pelo convívio com outros povos, ditos inferiores. 

Gente que não pode viver em Portugal e até ter os direitos de todos os outros trabalhadores, porque seria muito inferior do ponto de vista cultural e racial.

Em Portugal, em 2022, havia menos de 900 mil imigrantes. Uma situação que deriva mais da nossa história do que propriamente de uma suposta invasão alienígena.

Segundo o historiador José Mattoso, em 1551, os negros escravizados eram 10% dos 100 mil habitantes de Lisboa. Em 1578, a população de Lisboa tinha duplicado e os escravos já eram 20% dos seus residentes. E, nessa altura, não consta que o rei falasse dos perigos da grande substituição.

Portugal foi um império colonial, o maior traficante de escravos do Atlântico, as relações com muitos povos, muitas vezes nada recomendáveis dado o seu carácter colonizador e explorador, têm séculos.

Holocausto colonial

Os pensadores actuais defendem que o holocausto nazi é um acontecimento único na história humana pela política global de degradação do «outro» que permitiu o extermínio de mais de seis milhões de judeus, apenas pelo facto de serem judeus. Mas tendem a apagar da história que os genocídios coloniais europeus procederam exactamente da mesma forma. A frase «exterminem todas as bestas», proferida pelo personagem Kurtz no livro Viagem ao Coração das Trevas, de Joseph Conrad, descrevendo a descida de um rio no Congo Belga, podia ser o lema de todos os genocídios dos povos indígenas feitos pelos brancos europeus e a confirmação de uma política de extermínio que se justificou com o racismo.

Os africanos têm sido apelidados de animais desde os primeiros contactos com os europeus, quando estes os descreveram como «rudes e bestiais», «semelhantes a bestas brutas» e «mais brutos que as bestas que caçam», segundo descreve o viajante e investigador Sven Lindqvist.

A.R. Wallace, autor do livro Selecção Natural e Natureza Tropical (1879), citado no livro Exterminem Todas as Bestas, de Sven Lindqvist, defendeu numa conferência que o extermínio era o outro nome que se dava à selecção natural. «O contacto com os europeus conduz os povos inferiores e mentalmente subdesenvolvidos de outros continentes à destruição inevitável».

Em 27 de Março de 1866, o teólogo e escritor britânico Frederic Farrar proferiu uma conferência sobre a «Aptidão das Raças», em que defendeu que muitas raças já desapareceram: «Os tipos mais inferiores da humanidade, apresentando as características mais horrendas de degradação moral e intelectual estavam condenadas à extinção. (…) Porque as trevas, a indolência e a ignorância bruta não podem coexistir com o progresso do conhecimento, da indústria e da luz».

O racismo não é um facto biológico, nem está gravado nas pedras e inscrito nos céus. É uma simples construção ideológica mas nem por isso menos poderosa na história humana.

O racismo não é produto da existência de raças. Mas a falsa ideia que existem raças, humanos de primeira e de segunda, é consequência exclusiva do racismo.

As guerras, massacres, abusos de autoridade e o tratamento de migrantes como escravos apoiam-se na nossa indiferença e em não darmos ao «outro» o estatuto de humanidade que damos a nós próprios. Só dando direitos iguais a todos iremos acabar com este silêncio criminoso e assassino.

Os párias deste mundo são mortos várias vezes: são mortos quando as balas explodem neles e são mortos quando as hordas dos comentadores das redes sociais, instalados nos sofás das nossas cidades, garantem que «se lhes aconteceu alguma coisa é porque alguma coisa de mal estariam a fazer», como aos palestinos de Gaza que participam, segundo garantem os órgãos de comunicação social, na «guerra Israel contra o Hamas». Vamos, sempre, do silêncio para o barulho, garantindo sempre o mesmo grau de indiferença ideológica, para que o massacre se faça sem grandes contestações.

Nos nossos países ditos civilizados, os únicos humanos somos nós, os burgueses, brancos e que vivemos no meio das cidades. Tudo o resto são seres subnormais que não são iguais a nós e cuja morte tem apenas, no máximo, um segundo de atenção e uma eternidade de indiferença.

Há cerca de um ano que vemos um genocídio todos os dias a aparecer nos ecrãs de televisão. A revista britânica Lancet fala em 186 mil mortos, as autoridades sanitárias de Gaza contam mais de 40 mil mortos e quase 100 mil feridos, e muitos milhares de desaparecidos. É o genocídio colonial de há uns séculos a regressar em todo o seu fulgor. Nos países ocidentais não se esboça um gesto para parar o massacre. Portugal, obediente aos EUA e à política da Alemanha e da França, não tem coragem de reconhecer o Estado palestiniano, não vá incomodar os genocidas.

Estamos, segundo os ideólogos dos que mandam, em plena guerra de civilizações: já não há capitalismo, já não existem exploradores e explorados, apenas existe a democracia liberal de cultura judaico-cristã e o mundo selvagem das autocracias que não comungam os valores do «berço da civilização europeia».

Esta cartilha é seguida pela maior parte dos dirigentes europeus; a direita afirma-a com um grau de boçalidade, o centro esquerda dá-lhe um ar de cosmopolitismo Benetton. Em ambos, como se viu na Convenção do Partido Democrata, não deixam os apoiantes dos palestinianos tomarem a palavra.

A teoria da grande substituição, o fim dos europeus e os números

«A Europa está à beira de ser conquistada pelo Islão, uma civilização jovem, enraizada e espiritualmente forte, superior a uma Europa envelhecida e frágil, em que o comportamento das suas elites traiçoeiras é a maior expressão de uma civilização em queda livre», escreve José Pedro Zúquete no seu livro Os Identitários, uma espécie de apresentação e estudo académico dessa rede de movimentos de extrema-direita. Aí se faz a história da génese desses movimentos que se assumem contra o globalismo e o Islão na Europa, numa altura que, segundo o autor, se assiste a uma espécie de inverno demográfico dos europeus, e o crescimento em massa da imigração e da população de origem estrangeira no velho continente. Zúquete afirma que os identitários se batem pela «sobrevivência literal da cultura e povos europeus», e que Portugal não vai ser imune a esses fenómenos que vão pôr as lutas dos identitários no centro das discussões políticas que vão moldar o nosso futuro.

Não há dúvida que, um pouco por toda a Europa, as questões da imigração servem de bandeira para uma extrema-direita em crescimento. Resta saber se isso deriva de uma realidade em mudança que reflectiria o crescimento dessas ideias, ou apenas o avançar, com auxílio das redes sociais e da crise económica, de um pensamento racista que se espalha por vários sectores da sociedade que até agora estavam calados sobre o racismo e xenofobia. Muitas vezes por que lhe faziam ter vergonha na cara.

A ideia do aumento exponencial das emigrações e imigrações no planeta não é sustentada pelos factos. Como escreve o professor de Migrações e Desenvolvimento na Universidade de Maastricht, Hien de Haas, «os níveis actuais de migração internacional não são excepcionalmente elevados, nem estão a aumentar. Com efeito, ao longo das últimas décadas, os níveis de migração global têm apresentado uma estabilidade notável. (…) segundo os dados da Divisão de População das Nações Unidas, em 1960 havia cerca de 93 milhões de migrantes internacionais no mundo. Esse número aumentou para 170 milhões em 2000, e aumentou de novo para 247 milhões estimados em 2017. À primeira vista parecerá um aumento assustador. Todavia a população mundial aumentou a um ritmo mais ou menos igual, de cerca de 3 mil milhões em 1960 para 6,1 mil milhões em 2000 e 7,6 mil milhões em 2017. Por isso, se expressarmos o número de migrantes internacionais como uma quota da população mundial, vemos que os níveis relativos se mantiveram estáveis em redor dos 3%». Cerca de 97% da população do planeta vive no país em que nasceu.

Mas há de facto mudanças nos padrões migratórios, passamos de uma Europa a exportar trabalhadores para outros continentes, para uma Europa que também recebe imigrantes, muitos deles de países e continentes que foram em tempos colonizados pelos estados europeus.

Esses números não têm o peso que muitos apregoam, não significam um peso económico e social, e muitas vezes são uma importante riqueza para os países europeus.

Segundo as estatísticas da União Europeia (UE), habitam na UE 446,7 milhões de pessoas, das quais apenas 5,3% são habitantes de países terceiros, cerca de 23,8 milhões de pessoas.

No caso português, um relatório do Observatório das Migrações que mostra que os imigrantes pesam 7,5% no total da população, em 2022, e foram responsáveis por contributos de 1.861 milhões de euros para a Segurança Social, resultando num saldo positivo de 1.604,2 milhões nesse ano. Apesar desse contributo expressivo, os imigrantes usufruem menos das prestações sociais, beneficiando apenas 257 milhões de euros.

CréditosMiguel A. Lopes / Agência Lusa

Os estrangeiros têm uma maior capacidade contributiva do que os nacionais para o sistema de Segurança Social: são 87 contribuintes por cada 100 residentes, quando em relação aos portugueses esse número foi de quase metade, de 48 contribuintes por cada 100.

Apesar desse peso laboral, em bairros como o Casal da Mira e Cova da Moura a polícia entra neles como se a cor da pele e a origem imigrante de muitas das pessoas lhe retirassem todos os direitos.

Os trabalhadores imigrantes são remetidos para territórios sem infra-estruturas e equipamentos públicos, por vezes até para terrenos do Estado nos quais desde há décadas os sucessivos governos não fizeram nada, como no bairro da Penajóia.

Só a mobilização política, dessas pessoas que no dia-a-dia contribuem com o seu trabalho para a riqueza do país, poderá mudar as coisas.

A solução para Portugal e para os problemas dos imigrantes é dar dignidade a quem cá vive e trabalha. Isto passa pela luta de classes e não pelo racismo. O racismo e a xenofobia servem para enganar a maioria e manter a miséria e os baixos salários.

A causa da desigualdade e da maioria das pessoas não terem as condições de vida que merecem não é devido aos imigrantes mas dos mais ricos que ficam com grande parte da riqueza que é criada pelo trabalho de todos.

A multiplicação do ódio e a escolha de culpar os mais desprotegidos em matéria de direitos é feita apenas para manter tudo como está. Para que tudo permaneça igual, é necessário que tudo pareça mudar. Em alturas de apodrecimento e crise, não há como agitar os ódios para isso.

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