E pronto, cumpriram-se as eleições. Agora, os eleitores devem regressar a suas casas, às suas actividades, muito sossegadinhos enquanto o presidente preside, o governo governa e os deputados deputam, a bem da nação e cumprindo as normas inquestionáveis remetidas de Bruxelas para fazer funcionar esta espécie de democracia em que nos vamos arrastando.
Os cidadãos votaram e esgotou-se aí a sua intervenção; fizeram o que lhes compete de tempos a tempos para atribuir mandatos de que nunca mais terão notícias porque aos eleitos não é usual prestar contas a alguém, cabendo aos eleitores acatar e cumprir, respeitosamente, as leis e decretos que forem saindo.
Os resultados são conhecidos; com ou sem eles, porém, estava escrito não nas estrelas mas na vida de cada um de nós que os ricos vão enriquecer, os pobres estão seguros de empobrecer e os remediados, coitados, para esses o que não tem remédio remediado está.
«Os dirigentes do PS, com destaque para o seu número um, falam em diálogo – é aconselhável, pelo menos por enquanto, ser-se politicamente correcto – e nada há de mais politicamente correcto do que o diálogo, depois, claro, da estabilidade»
Ao Partido Socialista saiu a taluda da maioria absoluta. Isto é, pode governar como muito bem lhe apetece desde que cumpra as ordens da União Europeia e da NATO. Mas isso não será problema – nunca foi problema – está-lhe na massa do sangue esta certeza inquestionável de que os interesses dos portugueses são exactamente os mesmos dos alemães, dos franceses, dos suecos, dos lituanos e até dos ucranianos, que sem pertencerem à comunidade dos 27 afinal já pertencem.
Os dirigentes do PS, com destaque para o seu número um, falam em diálogo – é aconselhável, pelo menos por enquanto, ser-se politicamente correcto – e nada há de mais politicamente correcto do que o diálogo, depois, claro, da estabilidade.
Interessante. Quem insiste em continuar a falar em diálogo é exactamente quem bloqueou o diálogo para que pudesse haver eleições, com a prestimosa colaboração de Sua Excelência o Venerando Chefe de Estado. E assim convergiram ambos, em manobra estruturada, com a mira em objectivos diferentes: um apostando na maioria absoluta, o outro convicto de que desta vez é que era, teria o seu adorado bloco central.
Ora conhecemos os resultados e, tal como no futebol, é isso que fica para a história com as respectivas consequências.
Como chegámos, porém, a estes resultados? Aí está uma história de que mesmo a História se esquecerá até que seja necessário voltar a cumprir o ritual para, logo a seguir, tudo se apagar de novo. Os cidadãos movem uma roda viciada que garante prémios chorudos, mas só a uma escassa minoria, a mesma de sempre.
O poder da mentira
A marcação de eleições, a pré-campanha e a campanha propriamente dita são espaços de fait divers em que o acessório é fundamental e o fundamental não interessa para nada porque faz pensar antes de decidir e a última coisa que se deseja é que os eleitores pensam, se esclareçam. Isso sim seria um perigo, capaz até de por em causa essa coisa de tanta utilidade para a estabilidade como é o voto útil.
Voto útil: convencer os eleitores de que há apenas dois partidos em que vale a pena votar, aqueles que são a essência da democracia, da alternância e, claro, da estabilidade.
Os outros existem para compor o ramalhete democrático e para garantir que tudo é plural embora mal consigam fazer-se ouvir sob a gritaria dos sound bites do bipartido, amplificados ainda pelos acirrados debates dos comentadores e analistas convidados pelos meios de manipulação social e que, como é natural, têm de pertencer a um dos dois grupos a quem pode caber a vitória.
«A comunicação social, esmagadoramente ao serviço dos grandes grupos patronais que a detêm, e também a própria estação pública, subordinada ao bloco central, serviu de poderoso amplificador da campanha dos dois principais partidos, tornando praticamente impossível combater a mentira, a calúnia, a distorção de factos, o silenciamento de posições, a desonestidade intelectual, a falta de ética e de decoro dos seus principais dirigentes»
No caso das recentes eleições, tal como já se pressentira nas anteriores, entre os outros partidos há ainda os que ganharam os favores, a admiração e até um fascínio basbaque do todo da comunicação corporativa, incluindo a que dizem ser pública. É o caso dos grupos dos netinhos de Salazar e de Pinochet que, no dizer de sábios comentadores e repórteres, trouxeram sangue mais oxigenado e até novas ideias, imagine-se, a um cenário político que estaria, eles o dizem, muito estagnado.
Pois os fascistas polidos e os fascistas caceteiros amealharam juntos 650 mil votos, mais de 12% do eleitorado actuante, baralhando as contas de uma direita que, a exemplo do que acontece um pouco por todo o mundo, se aproxima cada vez mais do seu ambiente natural, onde a política se irmana com a ditadura económica, cumprindo-se de modo mais genuíno a ortodoxia neoliberal. E a manipulação mediática ajuda.
De neoliberalismo, o poder patronal puro e duro, não se falou na campanha porque é uma coisa praticada pelos partidos dominantes mas da qual não se fala porque estragaria os floreados sociais em que gostam de entreter-se, sobretudo nos tempos de caça aos votos.
Partidos dominantes: o social-democrata que não é social-democrata mas sim daquela direita que parece capaz de se aliar até com os fascistas caceteiros, dúvida que não ficou esclarecida na campanha; e os socialistas que não sendo socialistas poderiam ser sociais-democratas mas também não são desde que deixaram contaminar-se pelo neoliberalismo. E assim os dois convergem numa espécie de política única com algumas nuances mal sentidas pelos cidadãos – e mesmo essas, as mais recentes, concretizadas graças ao esforço dos partidos que ajudaram a formar a destratada «geringonça», tão incómoda para o sistema instalado e que, por isso, foram os inimigos a abater pela campanha mediática. Do mesmo modo que foram contemplados com o cartão vermelho do primeiro-ministro, que sem eles nunca teria chegado ao lugar a que chegou depois de umas eleições que não ganhou.
Em tempos de pandemia, que levantou grandes obstáculos aos contactos dos candidatos com os eleitores, essencial para as organizações que privilegiam essa forma de esclarecimento directo e que também são vítimas da ostensiva distorção mediática, a comunicação social teve um papel decisivo nos resultados registados. Ou seja, foi a principal responsável pelos números finais através de uma engrenagem em que, violando escandalosamente a lei eleitoral, que determina equidade de tratamento dos candidatos, esteve ao serviço quase exclusivo de dois partidos e também, de maneira significativa, dos que trouxeram as tais «ideias novas» herdadas de Mussolini e dos Chicago Boys patrocinadores das chacinas de Pinochet no Chile.
A comunicação social, esmagadoramente ao serviço dos grandes grupos patronais que a detêm, e também a própria estação pública, subordinada ao bloco central, serviu de poderoso amplificador da campanha dos dois principais partidos, tornando praticamente impossível combater a mentira, a calúnia, a distorção de factos, o silenciamento de posições, a desonestidade intelectual, a falta de ética e de decoro dos seus principais dirigentes. A tremenda desigualdade dessa luta traduz-se, de modo transparente, nos resultados apurados.
Perante a complacência das autoridades eleitorais, só o bloco central teve direito a todos os debates em canal aberto de televisão, cuja audiência, em comparação com a das estações por cabo, é arrasadora. Um desequilíbrio inconcebível em termos de orgânica eleitoral e susceptível de falsificar os resultados finais.
Além disso, o debate entre os dois «candidatos a primeiro-ministro», numas eleições onde o que estava em causa era a eleição de deputados, demorou mais do dobro do tempo dos restantes, agravando as desigualdades de tratamento e reforçando a ideia, perante os eleitores, que tudo se decidia entre eles.
«[…] puniram prioritariamente os partidos sem os quais não teria sido possível constituir a «geringonça» e levar ao cargo o actual chefe do governo. O tom e o tratamento das reportagens de acompanhamento dos candidatos da esquerda foi de uma discrepância e de uma discriminação alarmantes, contribuindo para lhes colar imagens negativas através do recurso a preconceitos, previsões catastrofistas e até esforços de ridicularização»
Os conteúdos dos principais jornais televisivos dedicaram-se de modo asfixiante ao bipartido, limitando-se a tolerar os restantes – ainda assim com diferenças de tratamento que puniram prioritariamente os partidos sem os quais não teria sido possível constituir a «geringonça» e levar ao cargo o actual chefe do governo. O tom e o tratamento das reportagens de acompanhamento dos candidatos da esquerda foi de uma discrepância e de uma discriminação alarmantes, contribuindo para lhes colar imagens negativas através do recurso a preconceitos, previsões catastrofistas e até esforços de ridicularização. Talvez por não participarem no indispensável e fundamental debate sobre os cães e gatos dos «candidatos a primeiro-ministro».
Na campanha veio explosivamente ao de cima todo o panorama de falta de qualidade, manipulação e dependência dos jornalistas submetidos à precariedade e aos contratos a prazo, inaugurados em Portugal por um governo do dr. Mário Soares em aliança com o FMI; e confirmou-se a falta de ética, de deontologia e de respeito pela profissão manifestados pelos elementos das chefias mediáticas, sólidas correias de transmissão não das realidades mas das ordens patronais.
Com a mentira, a distorção, a calúnia, a manipulação e a hipocrisia à solta foi sem dúvida muito difícil à esmagadora maioria dos eleitores escapar às trapaças do voto útil, da estabilidade e da atribuição de culpas na verdade inexistentes aos partidos acusados de terem provocado eleições que, de facto, não provocaram; e que, além disso, eram desnecessárias a não ser por conveniência dos jogos políticos do primeiro-ministro e do Venerando Chefe de Estado. Em política a mistificação, o egoísmo e a arbitrariedade compensam, sobretudo quando pode contar-se com o poder triturador de uma comunicação social que faz da mentira, da desinformação e da manipulação as suas razões de negócio e existência.
Os resultados estão à vista.
A mentira do poder
Ao poder da mentira soma-se a mentira do poder e vice-versa. A adição é comutativa e a simbiose entre as duas facetas da falsificação é perfeita.
Realidade que se confirmou plenamente nestas eleições, cuja génese assentou numa mentira, tantas vezes repetida que se tornou uma verdade oficial cuja contestação foi praticamente reduzida ao silêncio.
A mentira assentou na perseguição ostensiva aos dois partidos que colaboraram com o PS na viabilização do governo, acusados agora de bloquearem o diálogo sobre a proposta de orçamento, o que levou à reprovação parlamentar desta.
«A atitude do governo revelou a sua intenção de pôr fim, sem o assumir, à conjuntura que permitiu a governação desde 2015[...]. No horizonte estava, como não é difícil compreender revendo todo o processo, a ambição de conquistar a maioria absoluta em eleições antecipadas. Para isso, o partido do governo contava que o ónus da crise política artificial recaísse sobre os seus parceiros menores »
Repondo os factos tal como aconteceram, é fundamental perceber-se que a intransigência de posições, tornando o diálogo impossível, partiu do partido do governo. Os negociadores do PS participaram no simulacro de conversações sem permitirem alterações à versão original do orçamento, mesmo quando os outros dois partidos mitigaram as respectivas propostas. PCP e Bloco de Esquerda foram verdadeiramente confrontados com uma situação de pegar ou largar, forçados assim a renegar todos os compromissos assumidos perante os seus apoiantes para aprovar um orçamento com o qual não se identificavam. Assim sendo, não aceitaram tomar como seu um instrumento decisivo para a vida dos portugueses na definição do qual não lhes foi permitido participar
A atitude do governo revelou a sua intenção de pôr fim, sem o assumir, à conjuntura que permitiu a governação desde 2015, chefiada aliás por um primeiro-ministro que nem sequer vencera as eleições. No horizonte estava, como não é difícil compreender revendo todo processo, a ambição de conquistar a maioria absoluta em eleições antecipadas. Para isso, o partido do governo contava que o ónus da crise política artificial recaísse sobre os seus parceiros menores. Mesmo devendo-lhes os seis anos em que, até agora, esteve à frente do país. E para atingir esse objectivo estava certo de que engrenagem da comunicação não falharia em fazer aquilo que faz melhor, a propaganda da mentira.
Enquanto isso, o primeiro-ministro fez dos seus recentes colaboradores de maioria os inimigos a abater, concentrando grande parte do esforço a denegri-los, a desrespeitá-los e a sequestrar o seu eleitorado – faltando-lhe tempo e talvez até convicção para se incomodar com os verdadeiros inimigos fascistas, ainda que tenha pruridos em chamar-lhes assim.
Ao mesmo tempo, o chefe do governo contou com a preciosa colaboração do chefe de Estado, que decidiu arbitrária e autoritariamente a convocação de eleições antecipadas, naturalmente desnecessárias uma vez que a aprovação de um orçamento não impedia a procura, no quadro político existente, de soluções para resolver a crise, sobretudo quando o país estava apenas a um ano de novas eleições gerais.
O governo e o chefe de Estado tiveram pressa e convergiram em convocar eleições, apostando o Palácio de Belém em reconstruir o bloco central e, ao mesmo tempo, correr com a esquerda da área de governo – tudo a bem do reforço da ditadura neoliberal sobre a economia do país.
«No dorso da maioria absoluta cavalgam as ambições neoliberais, o mercado livre, o reforço da flexibilização laboral, a estabilidade sim, mas dos salários. Em Portugal, a maior fatia da riqueza é criada pela especulação financeira e não pelo trabalho; e um por cento dos cidadãos mais ricos possuem tanto como 56% da população»
Não sendo os desejados pela cardinalícia eminência de Belém, os resultados não lhe desagradam de todo. Garantem a santificada estabilidade política e também não são contrários ao reforço dos caminhos do neoliberalismo. Só por pudor se pode afastar o PS das obediências neoliberais, tanto no seu passado remetendo para o golpe de 25 de Novembro de 1975 e respectivas consequências, como pela subordinação absoluta à União Europeia e à NATO, ramos político e militar do sistema neoliberal transnacional. Desenganem-se, portanto, os que votando «útil» aguardam agora que o PS cumpra as suas promessas eleitorais, principalmente as «sociais». Elas não são mais do que peças do pacote de mentiras em que se baseou todo o processo que conduziu à situação actual. E como pode esperar-se o prometido «diálogo» por parte de uma mentalidade de governo que assentou precisamente a sua estratégia política no bloqueio de negociações quando elas eram fulcrais?
No dorso da maioria absoluta cavalgam as ambições neoliberais, o mercado livre, o reforço da flexibilização laboral, a estabilidade sim, mas dos salários. Em Portugal, a maior fatia da riqueza é criada pela especulação financeira e não pelo trabalho; e um por cento dos cidadãos mais ricos possuem tanto como 56% da população. Não nos admiremos se tais sinistros recordes continuarem a ser batidos; e também que a submissão à União Europeia ultraliberal seja ainda mais humilhante, sem esquecer a probabilidade de Portugal, com a independência nacional dissolvida também na NATO, entrar em novas guerras de agressão em pontos variados do globo, à medida das conveniências da expansão imperial globalista e absolutamente contrárias aos interesses dos portugueses e do país.
A selva manipuladora das sondagens
Na manobra que envolveu a convocação de eleições também a praga das sondagens cumpriu bem o papel que lhe está destinado na manipulação do corpo eleitoral.
Olhando para o patético panorama exposto, das duas uma: ou as sondagens são feitas por organismos de vão de escada ou então contribuíram deliberadamente, entre outras coisas, para o mito do voto útil que decidiu a maioria absoluta e também para reforçar os efeitos das mentiras e das calúnias lançadas sobre os partidos de esquerda presentes na anterior solução governativa.
«Olhando para o patético panorama exposto, das duas uma: ou as sondagens são feitas por organismos de vão de escada ou então contribuíram deliberadamente, entre outras coisas, para o mito do voto útil que decidiu a maioria absoluta e também para reforçar os efeitos das mentiras e das calúnias lançadas sobre os partidos de esquerda presentes na anterior solução governativa»
O PS venceu as eleições com 14 pontos percentuais de vantagem sobre o PSD. Contudo, durante a última semana de campanha e ainda nas vésperas da ida às urnas houve sondagens que vaticinaram a vitória de Rio sobre Costa – assim o diziam.
Alguém pode acreditar na base científica e na seriedade destas operações? Tal discrepância entre as previsões e a realidade não cabe em qualquer «margem de erro»: trata-se, portanto, de enganar despudoradamente os cidadãos. Aterrados, milhares e milhares de eleitores de esquerda foram a correr «votar Costa» para «travar Rio». Assim funcionam as eleições livres nesta espécie de democracia.
Estabilidade, prometem-nos agora. Uma estabilidade podre nascida da mentira e de jogos políticos onde o que menos conta são os interesses dos portugueses, principalmente os mais desfavorecidos – e que mais desfavorecidos ainda certamente ficarão com o andar dos próximos tempos. No contexto que nos envolve, uma maioria absoluta corresponde a uma minoria de privilegiados.
É natural, por isso, que a sociedade se vá apercebendo do que realmente esteve por detrás da operação e que surjam sinais de inconformismo e de luta. Não só é natural como essencial.
A estabilidade não é um bem em si mesma. Sobretudo quando a vida da esmagadora maioria dos portugueses é um calvário de instabilidade.
Quando a estabilidade política se cruza com a instabilidade quotidiana dos cidadãos os choques são inevitáveis; e nem a mentira, por mais refinada que seja, conseguirá evitá-los e disfarçá-los, porque são sentidos na pele de quase todos.
José Goulão, Exclusivo AbrilAbril