«Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da razão, a idade da insensatez, a época da crença, a época da incredulidade, a estação da Luz, a estação das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, todos iriamos direto ao Paraíso, todos iriamos direto no sentido oposto». As palavras escritas por Charles Dickens em 1859, no romance Um Conto de Duas Cidades, em que a Revolução Francesa é o centro de um mundo em mudança, refletem as emoções, dos que, por sorte ou conluio, viveram com entusiasmo o tempo que percebiam irrepetível. Para os portugueses, o 25 de Abril foi esse tempo.
O dia inicial inteiro e limpo de Sophia. Foi tempo das revelações, foi quando descobrimos nunca ter estado sós. Durante épocas sombrias, frente ao terror e à morte, homens e mulheres de mãos apertadas em corpos torturados, amparavam-se murmurando «um pouco mais companheiro» e davam mais um passo. Os clandestinos. Gente da cor do silêncio a tecer redes de palavras e gestos que conservou a luz ateada. Uma pequena luz que manteve a resistência e iluminou o caminho até ao amanhecer. Uma luz brilhante e rara, que nunca se apagou e se alimentava da coragem de gente que ao abrirem as veredas para a libertação iam deixando estrelas no chão.
Há anos, em períodos sombrios, homens e mulheres ergueram-se entre os escombros e o desespero e afirmaram com serena convicção que nada estava perdido. Disseram que era preciso continuar e que as forças do bem podiam vencer as forças do mal na condição de pagar um preço. Pagaram esse preço. Teve o valor do sangue e o horrível pesadelo das prisões. Muitos desses homens e mulheres morreram. Era o preço a pagar para que um dia a libertação acontecesse. Mas para aceitar tanta dor e terror, um homem necessita razões muito poderosas. As razões resultam do amor aos seus.
«Durante épocas sombrias, frente ao terror e à morte, homens e mulheres de mãos apertadas em corpos torturados, amparavam-se murmurando "um pouco mais companheiro" e davam mais um passo. Os clandestinos. Gente da cor do silêncio a tecer redes de palavras e gestos que conservou a luz ateada.»
Decidiram arriscar a não disfrutar pessoalmente desse amor para poupar aos seus a humilhação e exploração de uma vida de miséria e servidão sobre o constante estigma de morte que o fascismo impunha ao povo português. Existe uma grande diferença entre quem decidiu arriscar e quem resolveu calar-se. É a dos que jamais pensaram obter glórias ou benefícios dos seus atos durante a luta contra o fascismo. O único que podiam esperar era a tortura, a cadeia, o exílio e tantas vezes a morte. Foram homens e mulheres, portugueses de todas as origens e condições, comunistas, democratas, católicos com olhos na terra, que nas academias, nos campos e nas fábricas souberam resgatar, dia após dia, a honra sequestrada de todo um povo.
São pessoas que se preocupam mesmo que pareça estranho, mesmo sabendo-se alvo de descrédito e preconceito, de campanhas de ódio e mentira. Incansáveis não desistem. Continuam a preocupar-se pela condição humana, pelo vizinho, pelo colega de trabalho, pelo desconhecido aguardado, pelo que se retira sem partir. E por mais razões que lhes derem ou ameaças lhes façam, não nos abandonam. Estão sempre ao nosso lado.
Então, finalmente, chegou o 25, número sinónimo de Liberdade. O tempo perdeu medidas e lançou-se em festa a recuperar o tempo roubado. Cada dia valia por muitos dias. Cada um de nós era gente, e a gente ao nosso lado uma multidão iluminada. Tínhamos poderes. Por aquele 25 de abril de 1974, em Lisboa, em Portugal inteiro, a vida enlouquecia numa libertação tantas vezes imaginada, mas não prevista. A Revolução tinha triunfado. Tudo ia mudar. Era o sonho prometido. Igual às histórias em que sempre ganham os bons e nós estávamos do lado dos bons. Libertámos homens e mulheres, somámos fraternidade à terra, emborrachámo-nos de caligrafias e cores, distribuímos o pão, construímos casas, e unimos a ideia de justiça à essência da dignidade humana.
Entrámos nas cidades e abençoámos a liberdade. Éramos história, e isso fez toda a diferença. Mas existe uma outra data. Um ponto de partida, um elo no tempo da resistência, sem o qual Abril teria sido outro. Domingo, seis de março de mil novecentos e vinte um. Alguns homens conscientes da sua condição percorrem as ruas da Baixa de Lisboa. Não imaginam que caminham para além de um local de encontro combinado. Vão pensativos, como os que protegem uma ideia sublime ou alguma grande paixão. São portadores de um plano maturado de experiências e lutas travadas. Não sabem que pertencem a uma geração que ainda está por vir. Na rua da Alfandega, a tomar fôlego para galgar até ao primeiro andar do 225 da Madalena, em que congeminam eles? Na memória ainda presente da Comuna de Paris? Nos ecos da jovem Revolução Bolchevique? Ou simplesmente na miséria e exploração em que vivem?
«Libertámos homens e mulheres, somámos fraternidade à terra, emborrachámo-nos de caligrafias e cores, distribuímos o pão, construímos casas, e unimos a ideia de justiça à essência da dignidade humana.»
No início dos anos 20, Portugal vivia uma profunda crise política, social e económica. O país estava à beira da bancarrota, acentuava-se o fosso entre os ricos e os pobres, a moeda desvaloriza, a inflação atinge as mais altas taxas de sempre e o desemprego dispara. Multiplicam-se os movimentos grevistas contra exploração, a fome, o desemprego e o fascismo. Parte da população não tem trabalho nem dinheiro para adquirir bens essenciais, que escasseiam ou são colocados à venda a preços incomportáveis. Os jornais ilustram as capas com imagens desoladoras de grupos de operários a percorrer as ruas a pedir trabalho enquanto agarram sacas onde transeuntes condoídos vão depositando pão.
Ao mesmo tempo, o rufar dos tambores anuncia os sombrios anos 30. Dissimulado, o capitalismo investe e organiza o inimaginável. Na obscuridade prepara-se o holocausto nazifascista que irá atingir o mundo. É neste contexto, na tarde desse domingo, que em assembleia se forma o PCP. A partir desse dia os trabalhadores portugueses têm o seu partido de classe. A fundação do PCP não foi obra do acaso nem uma decisão arbitrária. Foi a expressão de uma necessidade histórica da sociedade portuguesa. Foi o resultado da evolução do movimento operário português ao atingir um determinado estádio de desenvolvimento. Em março de 1921, inicia-se uma epopeia de décadas de resistência e luta contra o fascismo, atos de coragem, e incontáveis sacrifícios, que nos irão guiar pelas trevas até ao alvorecer em que jovens militares, capitães coragem, tomam para si o testemunho dos que resistiram e libertam Portugal.
A luta da liberdade contra o despotismo, do conhecimento contra o obscurantismo, dos direitos contra a exploração, do idealismo contra a barbárie, é a história da luta de classes. Na história dos povos não existem avanços civilizacionais, progressos e direitos sem resistência e sem luta. O PCP é, pela sua natureza, o íntegro profundo das raízes do povo. Dos que ao longo da história, quando a terra sofre e os oprimidos clamam por justiça, reagem, erguem-se e triunfam contra a tirania. A nossa utopia é a de resolver o concreto e transformar o atual. A nossa utopia é o futuro construído e nisso somos iguais a todos os que antes de nós foram capazes de ver para além do destino decretado, para além da neblina e das sombras projetadas, e avistaram a luz anunciadora do fim da escuridão e início de um novo tempo.
«A fundação do PCP não foi obra do acaso nem uma decisão arbitrária. Foi a expressão de uma necessidade histórica da sociedade portuguesa. Foi o resultado da evolução do movimento operário português ao atingir um determinado estádio de desenvolvimento.»
O conselho que gostariam que aceitássemos, que nos transformaria em parceiros úteis e integrados, era que ficássemos em silêncio. Não falássemos de trabalho e salários, de injustiças, da fome ou da saúde, nem da gente pobre e da gente rica, nem do país real. Que calássemos a vítima e perdoássemos o verdugo em nome da perpetuação do sistema. Do sistema deles. Mas nós existimos para quebrar o silêncio e dar voz ao calado para estar ao lado dos oprimidos aos que está proibido revoltarem-se.
Quando falamos demostramos a alternativa, transformamos a indignação em revolta, encontramos esperança na desesperança, e explicamos que outra vida mais digna e justa não só é possível como é um direito universal. O PCP tem a cara do povo. É por isso que, nas voltas da vida em busca de pão e justiça, transformando as fraquezas em forças, convertendo solidão em solidariedade, as pessoas dele se recordem e falem como de uma substância íntima. Como por um instante, todos os humanos e todas as coisas animadas deste mundo fossem aquele rosto ali, presente e particular, honrado, emergindo corpo inteiro, e digam: «É o Partido!» Estes são tempos para escutar com os olhos e ver para além do mostrado.
Hoje a propaganda é conhecimento, a mentira é valor e recurso, a impossibilidade tornou-se ciência e destino, a indiferença bom senso, e o medo viscoso instala-se constrangedor e constante. Para mudar a nossa vida, para mudar o mundo, basta estar aqui estando presentes. Por mais que digam que não é o nosso lugar, mesmos quando nos dizem que somos demasiado diferentes, e nos recusamos a partir resignados, se mantivermos a nossa posição resistindo o tempo suficiente o mundo acabara por mudar á nossa volta. E então, mesmo que aqui já não estejamos seremos a parte que apareceu sempre, a parte que ficou, a parte que contribuiu para a mudança. E quem não se irá orgulhar disso. Acontece que os seres humanos não pensam todos o mesmo, não têm todos os mesmos interesses nem partilham os mesmos valores. É por isso que o futuro está sempre em aberto. Isso não é motivo para angústias.
Não sabemos como será o futuro, mas sabemos que em grande medida somos nós que o fazemos. Cometemos erros, mas cometemo-los lutando. É a forma como avançamos mantendo a nossa autonomia, percebendo que é decisivo encontrarmo-nos, que precisamos uns dos outros porque estamos todos no mesmo planeta a enfrentar o mesmo inimigo brutal, que nos faz revolucionários. Elemento identificativo da personalidade comunista que o distingue neste tempo de vácuo moral e ético, é a sua coerência corajosa na apresentação da sua narrativa política e ideológica que não teme o confronto nem cede ao facilitismo populista, à opulente ignorância, e à mentira e manipulação calculada. Dizem-nos que não temos hipótese e, porém, temos. Talvez ainda demore algum tempo.
Há percalços, erros, por vezes até nos magoamos mutuamente, mas é assim que somos. Quebramos, mas não paramos e isso não é um defeito. É o que nos torna quem somos. A luta faz-nos humanos. Não nos devemos queixar de que os seres humanos sejam como são. Ganhar consciência política é um processo lento. O principal é sempre a chegada à luta, e a emoção de descobrir que «Este é o meu lugar, pois sinto a vida como eles». O tempo não se detém, e o planeta não vai girar ao contrário até chegar ao ano extraordinário de 1974. Ano dos milagres, da alegria, do incondicional amor à liberdade. Nobre, sincero e generoso.
Nada é impossível se formos capazes de pensar como transformar tudo o que existe, sabendo que o que existe não é tudo. É tão importante dizer o que queremos para todos, como também explicar como o pretendemos atingir. Como evoluir na forma sustentando o que já conquistámos e mobilizarmos o que ainda necessitamos sem alterar o conteúdo? Como tornamos atrativo, compreensível e necessário o legado e património ideológico? Como agirmos para que a urgência do presente se projete como parte indissociável da alternativa social e política que sabemos possível? Como construímos a alternativa onde convirjam os cidadãos que recusam a ordem capitalista? Como se transforma o mundo? Não há trégua possível no combate do ser humano pela justiça e contra a exploração. A História nunca se estabiliza nem em tempos de bonança nem em épocas de tormenta. A Humanidade renasce sempre com a liberdade a iluminar os homens oprimidos.
Neste tempo chamado moderno, quando observamos os milhões de seres humanos que trabalham toda a vida sem conseguir romper o perpétuo ciclo da miséria, alcançando apenas o mínimo indispensável para se manterem como força de trabalho, percebemos como a pobreza é de facto a escravatura moderna. Hoje, centenas de milhares de portugueses, muitos pela primeira vez, participam nas lutas por justiça económica e social, pela defesa do emprego e por salários dignos. Todos os dias reivindicam por direitos humanos básicos e universais. Direito ao trabalho, à saúde, ao ensino, à habitação e a uma velhice protegida e respeitada.
«Neste tempo chamado moderno, quando observamos os milhões de seres humanos que trabalham toda a vida sem conseguir romper o perpétuo ciclo da miséria, alcançando apenas o mínimo indispensável para se manterem como força de trabalho, percebemos como a pobreza é de facto a escravatura moderna.»
Homens e mulheres, trabalhadores de todas as condições e setores de atividades, participam em milhares de ações por todo o país, reagem e fazem frente à natureza predadora e agressiva do capitalismo neoliberal. A entusiástica participação das novas gerações, nas comemorações do 25 de Abril e do Primeiro de Maio, demonstra como devemos confiar no potencial revolucionário da juventude que está sedenta de vida, sonhos, projetos e futuro. Ela é um passo determinante para pôr em prática o necessário rejuvenescimento da luta e do mundo. Assim, por cada vez que encontremos impaciência, cansaço ou esquecimento pela luta já travada, lembremos que ao longo da nossa vida, nas vitórias e derrotas, conforme envelhecemos plantamos árvores cuja sombra nunca vamos conhecer. Sabemos estar a plantar árvores que não vamos ver florescer e crescer. Mas saber que as estamos a plantar é a nossa herança e confiança nas gerações futuras.
Todos os dias amanhece. Razões para um texto. Escrever sobre o PCP não é mandato nem obrigação. Lembrar o seu percurso de resistência como elemento inseparável da liberdade conquistada em 25 de Abril não é um impulso de nostalgia romântica. Refletir sobre a sua função e atitude decidida na defesa da democracia e da liberdade contra um fascismo que espreita, e a sua importância na construção de uma alternativa patriótica de esquerda, não é registo para arquivo. É opção e compromisso.
Vivemos numa época de violenta campanha ideológica. O obscurantismo, a delação premiada e o medo voltam pela mão servil e complacente dos colaboracionistas amontoados nos corredores do sistema. Investem na cooperação leal com o poder como forma rápida e eficaz de promover os seus interesses pessoais e os seus projetos políticos. Qual é o valor de um homem que ao escutar os gritos das vítimas tapa os ouvidos e perante a constante injustiça olha para o lado? Que perante a prepotência e a censura, balbucia e brinda o verdugo com o benefício da dúvida?
«Vivemos numa época de violenta campanha ideológica. O obscurantismo, a delação premiada e o medo voltam pela mão servil e complacente dos colaboracionistas amontoados nos corredores do sistema.»
Estes não são tempos para ingenuidades e bordados. Nem para os aflitos dos paraísos alcançados sob o manto de bom pastor. Recuso o oblíquo, o ir de esguelha, o fazer tanta curva que se acaba perdido. A indecisão como categoria filosófica ou postulado teológico provoca-me cansaço. Como arte e estética do sustento não aprecio. O preconceito não pode impor a ausência. Se é uma evidência que nem todos os que lutam têm de ser comunistas, é uma verdade que os comunistas lutam.
A vontade de consenso e convergência é mais sólida quanto for recíproca. Os comunistas serão a parte indispensável dos que nunca abandonam a nossa história e a nossa prática, são o garante de uma confiança reconhecida. São a nossa imagem e assinatura. Que cada um, em seu livre-arbítrio, se isso lhe for permitido, escolha o seu caminho. Quanto a mim, já escolhi o meu e irei até ao fim.
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