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A viabilidade do comércio livre entre países africanos

O pan-africanismo não pode ser realizado por um indivíduo. A propaganda dos capitalistas sobre o individualismo fomenta mitos mitos sobre proezas super-heróicas, quando ninguém realiza grandes obras sozinho.

Maputo, Moçambique, Cidade vista do porto (2006).
CréditosJulien Lagarde (Jullag) / Wiki Commons

1. Um sonho com sérios obstáculos na sua realização

O pan-africanismo, ou socialismo africano, teve nos anos 50 e 60, do século passado, como líder mais carismático, Kwame Nkrumah presidente do Gana, mas a África não conseguiu realizar o projecto do seu principal ideólogo, depois do acesso à independência da maioria dos países africanos.

Contribuíram para isso factores como:

- a exploração neocolonial das grandes riquezas naturais, imposta por potências estrangeiras (EUA e alguns países da UE);

- a herança da escravatura;

- a divisão promovida pelo imperialismo entre muitos países;

- a dependência do dólar e do euro no comércio;

- as derrotas do socialismo na URSS e outros países do leste europeu;

- a falta de infra-estruturas de transportes e telecomunicações;

- o facto de serem 55 estados separados, onde as diferenças intrarregionais e de classe são uma fonte dos conflitos que existem em muitos países;

- a existência de elites compradoras que são apoiadas pelo capital financeiro internacional estimulam a corrupção e os ataques dos EUA e da NATO a países que valorizavam a sua independência, um pouco por todo o continente.

Através do Comando dos Estados Unidos para a África (AFRICOM) e da Operação Barkhane, de origem francesa, os governos imperialistas têm tropas estacionadas na Nigéria. Há a presença de elaborados mecanismos de recolha de informações, incluindo o posicionamento de drones de vigilância altamente sofisticados – modelo Predator – no Níger. Em toda a África, o Pentágono está presente sob o disfarce do anti-terrorismo e da segurança nacional quando, em última análise, a África é responsável pela sua própria segurança contra grupos terroristas criados a partir dos centros imperialistas.

2. Um percurso que se reinicia noutro contexto internacional

Entretanto, em Março deste ano, uma cimeira da União Africana (UA), em Kigala, no Ruanda, decidiu criar a Área de Livre Comércio Continental Africano (AfCFTA). E depois, em 4 de Julho, a 12.ª Cimeira Extraordinária da União Africana (UA) foi realizada em Niamey, no Níger, para proclamar oficialmente um projecto de acordo com as noções de soberania e unidade no continente.

As conclusões do encontro realçaram que «a AfCFTA será regida por cinco instrumentos operacionais, ou seja, as Regras de Origem; o fórum de negociação on-line; o monitoramento e eliminação de barreiras não-tarifárias; um sistema de pagamentos digitais e o Observatório do Comércio Africano».

Cada um deles foi lançado por diferentes Chefes de Estado e de Governo que incluíam o Presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, o Presidente Abdel Fattah El Sisi, do Egipto, e actual Presidente da UA; Moussa Faki Makamat, Presidente da Comissão da União Africana; e o Presidente Mahamadou Issoufou, do Níger, que é o campeão da AfCFTA.

Este encontro da Área de Livre Comércio Continental Africano (AfCFTA) realizou-se num país da região ocidental que é dotado de urânio, um dos minerais mais estratégicos do mundo, utilizado para fins industriais, científicos e militares.

O cenário das relações internacionais é hoje bem diferente. Há um maior valor atribuído às soberanias e independências, um maior cuidado dos contratos de exploração com grandes empresas estrangeiras e multinacionais, apesar da agressividade destas, mas que pode contar em contraponto com o investimento da China e da Rússia – este de menor valor mas com contratos em diversos países do mundo. Mas o neocolonialismo não desiste. E a actividade da AFRICOM diversifica-se.

Na reunião de 4 de Julho, o Presidente do Chade, Faki Mahamat, já referira a importância da construção da paz e da segurança no continente, acrescentando que «seria uma ilusão falar de comércio e desenvolvimento sem paz e segurança». E que o AfCFTA, para ser efectivo, exigia a abertura de fronteiras para outros africanos. Nessa linha, também o presidente anfitrião, Mahamadou Issoufou (Níger), disse que «a área de livre comércio derrubará as fronteiras herdadas do passado colonial da África e garantirá a plena integração continental».

3. As bases políticas da integração

Para vários analistas, fortemente enraizados na realidade africana, as bases das estratégias do subdesenvolvimento africano assentaram essencialmente em Washington e na União Europeia, cujo desenvolvimento se realizou através da exploração de África. Não sendo por isso possível conter essa influência sem lutar contra ela e porque, na actualidade, continua a sua atitude predadora e de agressões militares.

Os exploradores não querem perder esta fonte e hipótese de geração de grandes lucros. O Pentágono, a OTAN e os seus organismos auxiliares estão na África e em outras regiões do mundo para policiar e assegurar a manutenção das estruturas existentes, na divisão internacional do poder económico e do trabalho.

Outros estados e poderes regionais, como a China, a Rússia e os estados orientados para o socialismo na América Latina (Cuba, Venezuela, Bolívia) têm uma intervenção em África de natureza diferente e disputam essa influência hegemónica. Por isso a AfriCom «alertou» para a sua influência em África e a administração norte-americana promove a subversão, o isolamento internacional e a desestabilização económica, com a imposição de tarifas comerciais mais elevadas, sanções e desinformação, para estes países que têm outra atitude na relação com África.

Uma pedra de toque para a AfCFTA e UA no que respeita à consistência dos ideais proclamados, seria saber como elas reagiriam à escalada de uma geopolítica que conduzisse a uma confrontação generalizada.

Não é de esperar que soluções viáveis de desenvolvimento venham do capitalismo, nem da sua expressão imperialista. O atenuar das diferenças entre as várias classes sociais, a diminuição assinalável da corrupção e nepotismos, o afastamento do continente da predação dos interesses ocidentais, o fim da sua influência político-militar de ingerência, a ampliação do comércio entre países de África e com o exterior, são, face às evidências, a única saída para o atraso do continente africano.

Os objectivos enunciados pela AfCFTA carecem, para uma efectiva realização da organização, de mobilização e intervenção criativa das massas, sem pretensão de uma hegemonização das soluções, mas com objectivos integradores e unitários. Tais programas carecerão, de uma forma ou de outra, do combate ao militarismo imperialista e aos efeitos negativos das alterações climáticas, na aquisição de fontes de energia sustentáveis, abastecimento de água potável e energia, produção agrícola que gere a auto-suficiência alimentar e liberte excedentes comerciais, e cuidados de saúde e de educação de qualidade e de acesso universal.

Os africanos em toda parte estão envolvidos numa luta desesperada pela sobrevivência que, em muitos casos perdem. As vitórias exigem mais do que posições nos governos locais, ou propriedade de pequenos negócios, ou filiação em conselhos de administração de empresas, ou mesmo o apoio de organizações não-governamentais bem-intencionadas, sendo certo que algumas delas são plataformas para a subversão interna.

A verdadeira libertação africana exige poder. Poder não significa dinheiro. Poder não significa fama. O poder não significa uma associação próxima com aqueles que têm poder.

Quando os africanos ganharem poder real, os povos da África e de todo o mundo terão a capacidade de determinar e prosseguir o seu próprio destino sem que ninguém tenha a capacidade de os deter.

4. Para uma libertação integral

A libertação total da África é um elemento crítico do pan-africanismo. Os países africanos podem ter presidentes africanos, primeiros-ministros e parlamentos, mas a maioria desses países não está sob controlo africano. A África é amplamente controlada por governos ocidentais e empresas estrangeiras. Possui enormes recursos naturais de valor inestimável. O continente tem ouro, óleo, coltan, cromo, bauxite, diamantes e inúmeros outros minerais valiosos.

Em 1885, os países europeus decidiram colonizar e dominar os países africanos, a fim de obter acesso total à riqueza do continente. A resistência africana ao colonialismo foi demorada e feroz. No final do século XX, essa resistência conseguiu tirar os governos europeus da África e deixar os países africanos nominalmente independentes. No entanto, como referimos atrás, essa independência foi ilusória. Recusando-se a renunciar ao acesso aos valiosos recursos naturais da África, os imperialistas criaram uma nova forma de colonialismo que, ao que tudo indica, não era de modo algum um colonialismo. Essa nova forma de colonialismo – ou «neocolonialismo» – dependeu muito da traição ao povo da África por africanos que, de uma forma ou de outra, controlaram os governos da região.

Alguns desses chefes de estado neocoloniais africanos foram ditadores cruéis, como Mobutu Sese Seko no Congo, que durante o seu mandato tirânico roubou grande parte do tesouro do país e matou inúmeras pessoas. Os EUA e a Europa ocidental fecharam os olhos aos seus crimes por muitos anos porque Mobutu permitira que interesses estrangeiros roubassem e explorassem os recursos do Congo. Mas até autoridades governamentais bem-intencionadas estão obrigadas a cumprir a agenda de seus manipuladores nos EUA e na Europa.

Se um líder africano procura manter um rumo independente mesmo depois de receber ameaças ou sofrer coação, as agências de espionagem dos governos ocidentais planeiam golpes ou assassinatos. Quando um líder africano tenta agir de forma independente e estabelece defesas eficazes contra a subversão, os imperialistas recorrem à guerra económica. Isso aconteceu no Zimbabué. O partido do governo, a União Nacional Africana do Zimbabwe-Frente Patriótica, iniciou um programa para a devolução das terras ocupadas pelos colonos europeus aos africanos. Em resposta, os EUA, a Inglaterra e outros países ocidentais começaram e mantiveram um embargo económico contra o Zimbabué por muitos anos, que provocou grandes perdas económicas e consequente instabilidade social e política.

O imperialismo não tem relutância em usar a força armada contra aqueles que não cooperam com a agenda neocolonial. Isso foi facilitado pela criação do Comando da África dos EUA (AFRICOM). O objectivo do AFRICOM é dominar a África militarmente sem parecer dominar a África militarmente… O modo como funciona é que as forças militares dos EUA servem como «assessores» dos bastiões dos países africanos nos bastidores. Estes exércitos africanos são dirigidos para realizar missões que avancem interesses imperialistas. Um exemplo é a liderança do AFRICOM na queda e no assassinato de Muhammad Kadhafi, na Líbia. O AFRICOM armou forças reaccionários e racistas cuja campanha de terror permitiu que os EUA e a França ganhassem o controle dos campos de petróleo líbios e acabassem com os planos de Kadhafi de uma moeda independente pan-africana apoiada pelo ouro. O AFRICOM tem agora operações em quase todos os países africanos.

O pan-africanismo exige que a África seja totalmente libertada de todas estas forças e interesses estrangeiros, para que a África possa não apenas genuinamente governar-se a si mesma, mas também controlar sua própria riqueza natural em benefício de seu próprio povo na África e em outras partes do mundo.

Historicamente, «dividir para reinar» é uma estratégia muito antiga usada pelos opressores. A África é extremamente dividida e é por essa razão que o pan-africanismo só pode ser alcançado se a África estiver unida. Ora a África dividiu-se em primeiro lugar quando o ano de 1884 estava a terminar, e as principais potências europeias, que desejavam a riqueza da África, concluíram que não fazia sentido que elas lutassem umas contra as outras porque havia o suficiente na África para todos explorarem. Representantes dos vários países europeus reuniram-se em Berlim e cortaram e distribuíram partes de um mapa da África da mesma maneira que se dividiria um bolo de aniversário. Cada país europeu começou a colonizar o território africano que lhes fora atribuído nessa divisão.

Ao dividir o continente africano, a Europa não deu atenção às comunidades e estados-nação existentes. Fronteiras e limites foram estabelecidos para sua conveniência e, no processo, os africanos com diferenças políticas e sociais foram forçados a relacionar-se com comunidades distintas e, por vezes, antagónicas. Diferenças de linguagem e outros factores criaram tensão e divisão dentro das colónias e esses territórios passaram a ser muito mais fáceis de dominar.

Não obstante os conflitos intra-africanos nas colónias, a resistência ao colonialismo começou. À medida que esses movimentos ganhavam força, as condições amadureceram durante a Segunda Guerra Mundial para os países africanos começarem a conquistar, pelo menos, a independência nominal. Com a sua atenção e recursos consumidos pela guerra, a Europa não tinha capacidade para manter o controle directo das suas colónias. A independência deu início a uma nova era de lutas.

Kwame Nkrumah, o primeiro presidente de Gana, tornou-se um defensor do pan-africanismo. Outros chefes de estado como Sekou Toure, da Guiné, e Patrice Lumumba, do Congo, fizeram eco a esses apelos, para desgosto dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. O interesse contínuo na exploração da África, tornou esses revolucionários africanos, numa ameaça aos esforços para estabelecer uma nova forma de colonialismo ou neocolonialismo. Todos esses patriotas caíram à mão de projectos de eliminação fabricados pela CIA. Estes ataques têm sido historicamente facilitados pela desunião na África.

5. A perspectiva socialista

Quando a África se une para alcançar o pan-africanismo, o socialismo científico deve guiar e governar a economia do continente. Muitos africanos não só deixam de incluir o socialismo científico como parte de sua agenda, como não sabem o que é.

Não é tão complicado quanto parece. Qualquer país sempre se depara com uma questão básica: «Como vamos lidar com o dinheiro e os recursos da nação?» Se aqueles que respondem à pergunta acreditarem numa abordagem capitalista da economia, dirão: «Vamos colocar a riqueza da nação nas mãos de um pequeno grupo de elite. Esse grupo pode determinar se as grandes massas de pessoas compartilharão essa riqueza e, em caso afirmativo, até que ponto». A África já teve muitos anos de experiência com o capitalismo e os resultados não foram bons. Entre outras coisas, o capitalismo deu à África o comércio de escravos, o colonialismo, a pobreza generalizada, os desastres ambientais, as guerras, o roubo estrangeiro, a exploração de recursos naturais, a corrupção e a doença. Há outro caminho que a África deve seguir. É o caminho socialista.

O pan-africanismo não pode ser realizado por um indivíduo. A propaganda dos capitalistas sobre o individualismo fomenta mitos sobre proezas super-heróicas de indivíduos, quando na verdade ninguém realiza grandes obras sozinho. Essas ideias individualistas são absorvidas, como que por osmose, mesmo por muitos daqueles que são oprimidos e esperam em vão por um «líder» que os resgate de sua miséria. Este messias mortal nunca virá porque não é possível para um indivíduo – mesmo bem-intencionado – libertar um povo. Por outro lado, quando os indivíduos trabalham juntos, têm a capacidade de superar até mesmo a mais feroz oposição de forças opressivas. Organização é o material de que as revoluções são feitas. A organização contempla um compromisso firme e permanente que envolve trabalho e estudo.

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