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Uns trabalham para a paz e cooperação, outros… nem por isso

A visão estratégica que emerge do relatório do Congresso é que os EUA estão dispostos a tudo para se conservarem como a «potência militar incomparável» sobre a qual se baseia o seu império.

Donald Trump, Angela Merkel e outros dirigentes mundiais, durante uma conferência do G7 em Taormina, Itália, 26 de Maio de 2017. Foto de arquivo.
CréditosCiro Fusco/EPA / Agência Lusa

No cenário internacional acentuam-se nuvens negras. Outras semelhantes já existiram no passado. E as presentes, não dependem do resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos da América (EUA) em Novembro. Se bem que Trump ainda vá criando «factos» que possam contribuir para não ser derrotado. Mas sendo certo também que, citando Miguel Esteves Cardoso recentemente no Público, «o fosso entre os EUA e o resto do mundo (seja qual for a cor política dos diversos países) foi sempre um fosso, mas com a escolha entre Biden e Trump transformou-se numa fossa – a fossa de Mindanau».

Não perdendo de vista que estamos a falar de actualidade internacional, importa lembrar que os acontecimentos internacionais, no que dependam da intervenção dos EUA, estão vinculados a uma orientação estratégica definida pelos seus dois grandes partidos em 2018 no Congresso.

Nela se afirma que os «Estados Unidos lideraram a construção de um mundo de prosperidade, liberdade e segurança invulgares. Essa concretização, da qual beneficiaram enormemente, foi possibilitada pelo inigualável poderio militar dos EUA». Mas agora o seu poder militar – «espinha dorsal da influência global e da segurança nacional USA» – diminuiu para um nível perigoso. Este cenário é devido ao facto de que «competidores autoritários – especialmente a China e a Rússia – estão a procurar a hegemonia regional e os meios para projectar o seu poder à escala global».

Será uma tragédia de dimensão imprevisível, mas talvez de dimensão tremenda – adverte a Comissão – se os Estados Unidos permitirem que os seus interesses nacionais sejam comprometidos, devido à falta de vontade de fazer «escolhas difíceis e investimentos necessários». Portanto, propõe um aumento adicional da despesa militar dos EUA (hoje já equivale a um quarto do orçamento federal) na medida líquida de 3-5% ao ano, especialmente para aumentar a mobilização das forças dos EUA (submarinos, bombardeiros estratégicos, mísseis de longo alcance) na região do Índico e do Pacífico, onde estão activos quatro dos seus cinco adversários (o quinto é o Irão): China, Coreia do Norte, Rússia e grupos terroristas.

A visão estratégica que emerge do relatório do Congresso é que os EUA estão dispostos a tudo para se conservarem como a «potência militar incomparável» sobre a qual se baseia o seu império, que está a desmoronar-se com o aparecimento de um mundo multipolar.

Não é por acaso que este relatório da referida Comissão do Congresso, de maioria democrata, em plena «era Trump», e composta por seis democratas e outros tantos republicanos, apresenta cenários de agressão aos EUA, os quais, segundo Manlio Dinucci, «não são mais do que a imagem reflexa da sua própria estratégia agressiva, que corre o risco de conduzir o mundo à catástrofe».

Pesam hoje, à escala universal, questões como a instalação de novas armas, as guerras comerciais e tecnológicas dos EUA contra a China, o efeito na degradação do emprego e condições de vida agravadas pelas necessidades de combate à Covid-19 – que os grandes grupos económicos aproveitam para acentuar ainda mais a sobre-exploração dos trabalhadores –, a grande crise económica internacional que os EUA ainda vão conseguir desencadear, contra todos, na ténue esperança que ainda possam beneficiar com isso, e a crise ambiental que não teve em vários dos países desenvolvidos medidas eficazes que possam reflectir-se na contenção de alterações climáticas negativas. Mas, também pesa em sentido oposto, a passagem firme do poder dominante de um só país para o multilateralismo e as perspectivas promissoras de, depois de melhor se conhecer e combater o Covid-19, voltar a retirar da pobreza milhões de habitantes do planeta, de habilitar todos os países a infra-estruturas ferroviárias e portuárias, de saúde pública, de educação, e de segurança social.

Europa, EUA e não só

A contínua pressão dos EUA sobre a União Europeia (UE) para não desenvolver relações com a Rússia tem-se vindo a desdobrar em sucessivos episódios. A perda da influência dos EUA no continente europeu é tão mais evidente quanto países estabelecem com a Rússia uma cooperação económica mutuamente vantajosa para ambas as partes.

O gás natural, vindo da Rússia, é um desses episódios.

O Nord Stream 2 é uma joint-venture entre a Gazprom da Rússia e cinco empresas europeias, com o oleoduto duplo de 745 milhas de extensão programado para transportar até 1942 triliões de pés cúbicos de gás por ano da Rússia para a Alemanha através das águas territoriais ou zonas económicas exclusivas de Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Rússia e Suécia.

As objecções ao projecto foram repetidamente expressas pelos EUA, que começaram a tentar promover o seu gás natural liquefeito no mercado europeu, o que encontrou eco em alguns governos do continente, que afirmam que a joint-venture daria a Moscovo novos meios de influenciar a UE.

Washington impôs sanções ao projecto em Dezembro de 2019, e a empreiteira suíça Allseas suspendeu quase imediatamente a construção do gasoduto.

No entanto, o presidente russo Vladimir Putin disse, em Janeiro deste ano, que o oleoduto deve ser finalizado até ao primeiro trimestre de 2021, o mais tardar.

A Rússia considerou as sanções contra o projecto Nord Stream 2 uma concorrência desleal e uma violação do direito internacional disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em 28 de Maio, insistindo em que os planos da Rússia para concluir o projecto permanecem firmemente no caminho certo.

Os principais participantes no projecto, incluindo a Alemanha, insistem que o empreendimento é de natureza puramente económica, com Berlim a dizer que não planeia responder a nenhuma sanção dos EUA colocada sobre o gasoduto Nord Stream 2 num documento de 4 de maio do Gabinete Federal.

No Mediterrâneo Oriental prossegue a disputa entre a Grécia e Turquia, ambos parceiros na NATO, de zonas marítimas reclamadas por ambos para exploração de hidrocarbonetos. A Turquia iniciou a perfuração numa área que a Grécia considera sua e agora barcos de guerra de ambos os países «acotovelam-se» na região (dois já chocaram entre si e a Turquia já lá tem submarinos…). O ministro das relações exteriores da Alemanha, em contacto os homólogos de ambos os países, parece estar a mediar o conflito. Falando em Atenas, disse que «a situação actual no leste do Mediterrâneo (...) é equivalente ao brincar com fogo» e advertiu que «cada pequena faísca pode levar à catástrofe».

É de notar que, não longe dali, o porto de Beirute, essencial nas trocas comerciais com o Médio Oriente, foi destruído no passado dia 4 de Agosto, numa tremenda sequência de destruidoras explosões.

O cerco à Rússia desenvolve-se, por um lado, tentando completá-lo com a instrumentalização de descontentamentos de uma revolução do tipo «revoluções coloridas» na Bielorrússia e, por outro, implantando, no conjunto dos países que fazem fronteira com a Rússia, mísseis do tipo Pershing II, proibidos desde o tratado INF, um tratado internacional sobre controlo de armas nucleares entre os Estados Unidos e a União Soviética assinaram em Washington, em 8 de Dezembro de 1987, mas de que Trump se desvinculou em 2 de Agosto de 2019, unilateralmente, não respondendo a apelos para o estabelecer.

Uma consequência dele era a destruição de mísseis, o que aconteceu até à data-limite de 1 de Junho de 1991, prevista no tratado, tendo 2692 mísseis sido destruídos — 846 por parte dos Estados Unidos e 1846 por parte da União Soviética. Outra consequência foi permitir a qualquer das partes inspeccionar as instalações militares da outra.

Quanto ao Reino Unido, os EUA não progrediram nas negociações iniciadas quanto às relações económicas entre os dois países e a UE diz que o Reino Unido não continua a ter os benefícios nas relações entre as partes, por se ter afastado da União Europeia.

A chanceler Angela Merkl pediu dia 24 que o governo da Rússia punisse os responsáveis pelo envenenamento do líder da oposição do país, Alexei Navalny. O Kremlin reagiu declarando que não vê razão para iniciar uma investigação sobre o suposto envenenamento de Navalny, acrescentando que uma investigação só poderá ser iniciada se o envenenamento for confirmado.

O caso Alexei Navalny, que desmaiara a bordo de um avião que o levava de Moscovo para Omsk, teria sido envenenado depois de ter tomado chá no aeroporto. Depois de observado num hospital de Omsk, uma equipa médica deste concluiu que não tinha havido envenenamento, mas a mulher e o staff de apoio de Novalny exigiram que ele «fosse para um hospital independente da sua confiança na Alemanha, porque o hospital russo em que estava não lhes oferecia essa confiança, e poderia estar a reter o paciente para desaparecerem os vestígios do veneno».

O governo russo concordou com a aterragem de um avião alemão em Omsk com médicos alemães, do Hospital Charité de Berlim, para o trazer para esta cidade, onde aterrou num aeroporto militar. Anteriormente, os médicos do hospital russo não tinham autorizado essa viagem por poder ser perigosa para o paciente. O governo russo respeitou a decisão médica, que foi acompanhada pela recepção no hospital de Omsk dos médicos alemães do Charité que tinham vindo no avião. No dia seguinte a direcção clínica do hospital de Omsk, depois da estabilização do paciente, acabou por concordar com o seu transporte. «O estado do paciente é estável e, tendo em conta o pedido da família para autorizar a sua transferência, decidimos que neste momento não nos opomos à sua transferência para o centro hospitalar indicado pelos familiares». A família e a equipa alemã garantiram que assumiriam toda a responsabilidade no transporte. De acordo com uma declaração do médico-chefe do hospital de Omsk, Aleksandr Murakhovsky, os médicos alemães disseram numa carta que a condição de Navalny permanecia estável, mas séria, e agradeceram aos seus colegas russos por terem salvo a sua vida.

O hospital de Berlim onde ficou sob observação acabou por dizer, no dia 24 de Agosto, que o político russo sofrera intoxicação (não falaram em envenenamento…) por uma substância (que não foi identificada), do grupo dos inibidores da colinesterase1. O prognóstico de Alexei Navalny, feito pelos médicos do Charité, permanece reservado, não podendo ser excluída a possibilidade de efeitos a longo prazo que afectem particularmente o sistema nervoso central. No dia anterior, o hospital referira que que a recuperação deixaria consequências e que nos próximos meses não poderia retomar a sua actividade política.

A Rússia foi acusada, mais de uma vez e sem provas, tal como com outros casos de invocados «envenenamentos» ao longo dos últimos anos.

Na Bielorrússia, o presidente reeleito, Lukashenko afirmou que existe um evidente apoio militar ocidental à oposição no país e que a prova disso era o deslocamento de tropas da NATO na direcção das fronteiras do país. No passado dia 22, face à tentativa que poderá surgir de invasão e anexação da região da cidade de Grodno, a Bielorrússia afirmou que reagiria sem aviso às tentativas de violação das suas fronteiras. A região em causa faz fronteira com a Polónia e a Lituânia, como se fosse um enclave dentro desses dois países. Dias antes o governo deslocara o exército para as fronteiras ocidentais do país, na sequência de um relatório do Ministério da Defesa sobre um aumento no número de voos de aviões de combate perto das fronteiras. E ficaram então marcados exercícios militares para a região ameaçada, que ocorreram entre 28 e 31 de Agosto.

A moderna Grodno é um dos principais centros industriais da Bielorrússia. Em 1996 havia 109 companhias (31 delas estatais) operando na indústria ligeira (tecidos, fios para tecelagem, roupas desportivas e brinquedos), nas indústrias químicas e alimentar, na produção de máquinas e na metalurgia. A cidade tem produção própria de energia eléctrica, madeireiras e empresas de construção civil.

Em 2018, a Bielorrússia ocupava a 53.ª posição entre 189 países no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, e estava no grupo dos países com «desenvolvimento muito elevado». Com um sistema de saúde eficiente, tem uma taxa de mortalidade infantil muito baixa, de 2,9 (em comparação com 6,6 na Rússia ou 3,7 no Reino Unido). A taxa de médicos per-capita é de 40,7 por 10 mil habitantes (26,7 na Roménia, 32 na Finlândia, 41,9 na Suécia) e a taxa de alfabetização é estimada em 99%. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o coeficiente de Gini (indicador de desigualdade) é um dos mais baixos da Europa.

É um país apetecível por isso. Por ele passará o Nord Stream 2 e a sua passagem pode ser inviabilizada por um poder «colorido»… Também a instalação de mísseis da NATO virados para a Rússia teria luz verde…

No conjunto dos países que tinham integrado a URSS, a situação tem evoluído, como referimos no início, no sentido de a NATO e a UE tentarem isolar a Rússia, impedindo-a de ter relações económicas normais com países europeus. Tem havido uma deslocação na proximidade quer aos EUA, NATO e também à UE de parte desses países, enquanto outra parte tem uma cooperação normal com a Rússia.

  • 1. NA: Os inibidores de colinesterase provocam a melhoria ou estabilização dos sintomas da demência. Em resultado desse diagnóstico, segundo o Charité, o paciente agora está a ser tratado com o antídoto atropina. Esta é aplicada, por exemplo, para combater a intoxicação por insecticidas organofosforados. Mas, como foi referido pelo Kremlin, a substância que provocou a intoxicação não foi identificada.

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