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|Argentina

Trinta mil

Chamava-se Hebe de Bonafini. Morreu a 20 de novembro de 2022. Ativista. Uma das fundadoras da Associação das Mães da Praça de Maio e sua presidente. Mãe de três. Dois filhos desaparecidos em 1977.

Créditos / El Sindical

Imagino-a sempre com o lenço branco na cabeça – mesmo que não o tenha usado em todos os momentos da sua vida. E é a altura para relembrar Galeano: não será o lenço branco um dos símbolos do século XX, entendido como representando a ideia de dignidade? Talvez seja esta a primeira palavra a escrever: dignidade.

Imagino-a sempre em movimento na Praça de Maio, em Buenos Aires, nas tardes de quinta-feira. Imagino-a sempre ao lado e com outras mulheres. Talvez para mim, e apesar da sua singularidade, apesar de ser única, seja sempre mais do que uma mulher, seja sempre plural, seja sempre coletivo. E com estas mulheres, todas aquelas e aqueles a quem deram voz. A voz dos que desapareceram.

É ela. E é sempre mais do que ela.

Movimento. Caminho. Os seus passos, os passos na praça – ecoando todos os outros que fizeram à procura das filhas e dos filhos. Todos os passos de todas aquelas mulheres na Praça de Maio. E de todos os que com ela caminharam. Que caminham.

E esse caminhar, de quem não desiste, esse caminhar constante. E se a polícia lhes dizia: “Circulem!”. Pois, que circulavam. Chamavam-lhes loucas, as loucas da Praça de Maio – sabemos de todos os insultos que chamam às mulheres que resistem e que lutam. Mas continuavam.

E, assim, resistiam. Há que inventar sempre novas formas de resistência.

Chamava-se Hebe de Bonafini. Morreu a 20 de novembro de 2022. Ativista. Uma das fundadoras da Associação das Mães da Praça de Maio e sua presidente. Mãe de três. Dois filhos desaparecidos em 1977. Jorge e Raul – há que voltar sempre a dizer os nomes. No ano seguinte, a sua nora, Maria Elena. Três entre os trinta mil.

As mães. No mesmo local, no mesmo dia da semana, à mesma hora, pelos seus filhos desaparecidos durante a ditadura civil-militar na Argentina (1976-1983). A ditadura encabeçada por Jorge Videla. A inaudita violência do terrorismo de Estado.

Diz-nos Hebe de Bonafini [Madres de Plaza de Mayo. La historia - Capítulo 1: Los caminos de la plaza (1975-1977)], ao relembrar o tempo do início da organização das Mães da Praça de Maio, que se queriam «tornar visíveis». Talvez se possa dizer, que esta transmutação da invisibilidade para a visibilidade, a transformação consciente, é um dos primeiros atos políticos – sem dúvida, essencial. Foram vistas na Praça de Buenos Aires, mas também no resto do mundo, as suas vozes e os seus passos difundidos e ampliados pelos jornalistas estrangeiros, por outros ativistas.

Vistas, e com voz, procurando saber. Perguntar e exigir respostas. Tornando visível o próprio ato de fazer desaparecer as suas filhas e os seus filhos, desocultando, assim, a violência e o terror do regime. Dar a conhecer o próprio expediente sinistro que a feroz ditadura usava.

E a forma destas mulheres se tornarem visíveis – e desejavelmente perceptíveis e inteligíveis –, também se relaciona com o espaço, com o lugar. A Praça de Maio situa-se no centro de Buenos Aires, centro histórico e político. O seu nome evoca lutas anteriores de libertação e de independência do início do século XIX. Em frente da Praça de Maio, está a Casa Rosada, sede do poder executivo. No mesmo espaço, a Catedral Metropolitana.

Há lugares assim nas cidades. Em Buenos Aires e noutras cidades. Locais onde o poder se materializa, se faz visível e se consagra. Locais onde as classes dominantes se mostram, ocupando o espaço da cidade. Como sabemos, estes espaços não são neutros. São espaços políticos – a sua escolha diz muito dos equilíbrios de poder numa sociedade, diz muito da hegemonia da memória. Quem escolhe quem é consagrado?

«Há lugares assim nas cidades. Em Buenos Aires e noutras cidades. Locais onde o poder se materializa, se faz visível e se consagra. Locais onde as classes dominantes se mostram, ocupando o espaço da cidade.»

Estes locais na cidade contam uma história, mas não todas as que constroem uma cidade. Relembram alguns acontecimentos, mas não todos. Consagram, na maior parte das vezes, reis, guerreiros, conquistadores, em estátuas altaneiras. Frequentemente, muito mais homens do que mulheres, muito mais homens brancos.

Podemos ler as cidades, analisando as suas camadas de significados, a construção dos diferentes sentidos. E utilizar o conceito consagrado: palimpsesto.

Podemos ler as cidades, pensando nas formas e nos tempos da materialização do poder, da forma como as classes dirigentes se inscrevem no espaço. Podemos ter atenção às ausências no espaço e nos locais – quem falta no nosso espaço público? Relembrando aqueles e aquelas que ainda estão invisíveis e invisibilizados. Mas também podemos pensar os lugares da cidade de outra maneira, como o espaço da resistência, da luta contra o poder.

Caminhar, circular ali onde as pessoas passavam, ali sob o olhar do poder. Olhando-o de volta. O lugar onde o poder se materializa é também o espaço para o afrontar. Circulando, circulando sempre.

Assim, da Praça de Maio, em Buenos Aires, para todas as praças do mundo, estar, caminhar, tomar o espaço, alterar o significado de um lugar. Em suma, lutar.

Imagino-a sempre com o lenço branco na cabeça. O espaço ocupado por quem protesta, por quem põe em causa o poder.

Mãe de três. Mãe de trinta mil.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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