Corriam cinco meses do início da Primeira Guerra Mundial. O número de fatalidades já ia nos milhões. Séculos de intolerância religiosa, de afirmação do nacionalismo, de ambições imperiais e coloniais, conjugadas com um salto tecnológico de curtas décadas, desembocaram numa escala de destruição de carne humana até então nunca vista na Europa. A II Internacional capitulava, com o chauvinismo a triunfar sobre o internacionalismo proletário. A Dezembro de 1914, a face mais negra da humanidade parecia predominar, e tinha as trincheiras como o seu epicentro.
No entanto, no dia 24 de Dezembro, o som da artilharia foi substituído por cânticos de Natal, à troca de tiros veio a troca de cigarros, e a distância da «terra de ninguém» foi reduzida à linha de meio-campo na qual soldados da Entente e dos Poderes Centrais fizeram partidas de futebol.
«no dia 24 de Dezembro, o som da artilharia foi substituído por cânticos de Natal, à troca de tiros veio a troca de cigarros, e a distância da "terra de ninguém" foi reduzida à linha de meio-campo na qual soldados da Entente e dos Poderes Centrais fizeram partidas de futebol. Estima-se que esta trégua, não autorizada por nenhum dos beligerantes, tenha contado com a participação de cem mil combatentes»
Estima-se que esta trégua, não autorizada por nenhum dos beligerantes, tenha contado com a participação de cem mil combatentes. A educação escolar, a formação militar e o convívio social largamente iam no sentido de ensinar a odiar o «outro». Mesmo assim, a sua condição unia-os. Barreiras linguísticas superadas por gestos de fraternidade. Pelos parcos testemunhos pessoais, é difícil saber se tinham essa compreensão, mas o que se passou entre 24 e 26 de Dezembro foi uma clara manifestação de consciência de classe.
Na data de máxima importância para qualquer cristão, os homens feitos máquinas de matar tornaram-se novamente crianças. Bolas improvisadas (até a partir de latas de comida racionada), chapéus a fazer de balizas como se estivessem na rua ou no recreio da escola, e o prazer de jogar a sobrepor-se à vontade de derrotar o adversário. A conhecida definição do desporto pelo avançado inglês Gary Lineker, «O futebol é um jogo simples. 22 homens correm atrás de uma bola durante 90 minutos, e no fim ganha a Alemanha», não podia estar mais longe de ser aplicada naquele cenário. O número de jogadores não parece ter tido importância, nem o tempo de jogo, assim como nem sempre a Alemanha venceu, até porque nalguns casos, chegaram a existir equipas mistas de ambos os lados das trincheiras.
«O desporto, que aprofundo por ser o que mais me toca neste evento histórico, pode ser o que se quiser fazer dele. Se o entendermos como parte integrante de um processo de avanço civilizacional, aqueles jogos de bola nas trincheiras servem como um dos melhores exemplos»
Estes actos de inocente mas poderosa rebelião a todos tocou. Certamente, tocou o alerta nos quartéis-generais, que tomaram as providências para garantir que a confraternização não voltaria a acontecer. E, até ao fim das hostilidades, não mais se voltou a repetir em escala comparável a trégua de Natal de 1914.
O desporto, que aprofundo por ser o que mais me toca neste evento histórico, pode ser o que se quiser fazer dele. Se o entendermos como parte integrante de um processo de avanço civilizacional, aqueles jogos de bola nas trincheiras servem como um dos melhores exemplos.
Hoje atravessamos momentos difíceis, embora incomparáveis à carnificina da Primeira Guerra Mundial. Aquela trégua, a tranquilidade enquanto se dá uns chutos na «bola», terá certamente sido um alívio e uma esperança, da normalidade e de um futuro melhor. Para 2021, sem dar tréguas, é necessário que o Governo dê seguimento ao Projecto de Resolução para a retoma da prática desportiva, apresentado pelo PCP e aprovado pelos restantes partidos (com a excepção da abstenção de PS, PSD e CDS, no papel de terra de ninguém), para que regressemos à normalidade e à luta por um futuro melhor.
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