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Trégua de Natal

Corriam cinco meses do início da Primeira Guerra Mundial. No dia 24 de Dezembro, na data de máxima importância para qualquer cristão, os homens feitos máquinas de matar tornaram-se novamente crianças.

Um memorial em Messines, perto de Ypres, Bélgica, assinala um local onde, a 24 de Dezembro de 1914, em plena Primeira Guerra Mundial, soldados de ambos os lados das trincheiras promoveram, contra a vontade dos oficiais superiores e dos estados-maiores, uma trégua natalícia que incluiu partidas amigáveis de futebol
CréditosDavid Evans / Brownhills Bob's Brownhills Blog

Corriam cinco meses do início da Primeira Guerra Mundial. O número de fatalidades já ia nos milhões. Séculos de intolerância religiosa, de afirmação do nacionalismo, de ambições imperiais e coloniais, conjugadas com um salto tecnológico de curtas décadas, desembocaram numa escala de destruição de carne humana até então nunca vista na Europa. A II Internacional capitulava, com o chauvinismo a triunfar sobre o internacionalismo proletário. A Dezembro de 1914, a face mais negra da humanidade parecia predominar, e tinha as trincheiras como o seu epicentro.

No entanto, no dia 24 de Dezembro, o som da artilharia foi substituído por cânticos de Natal, à troca de tiros veio a troca de cigarros, e a distância da «terra de ninguém» foi reduzida à linha de meio-campo na qual soldados da Entente e dos Poderes Centrais fizeram partidas de futebol.

«no dia 24 de Dezembro, o som da artilharia foi substituído por cânticos de Natal, à troca de tiros veio a troca de cigarros, e a distância da "terra de ninguém" foi reduzida à linha de meio-campo na qual soldados da Entente e dos Poderes Centrais fizeram partidas de futebol. Estima-se que esta trégua, não autorizada por nenhum dos beligerantes, tenha contado com a participação de cem mil combatentes»

Estima-se que esta trégua, não autorizada por nenhum dos beligerantes, tenha contado com a participação de cem mil combatentes. A educação escolar, a formação militar e o convívio social largamente iam no sentido de ensinar a odiar o «outro». Mesmo assim, a sua condição unia-os. Barreiras linguísticas superadas por gestos de fraternidade. Pelos parcos testemunhos pessoais, é difícil saber se tinham essa compreensão, mas o que se passou entre 24 e 26 de Dezembro foi uma clara manifestação de consciência de classe.

Na data de máxima importância para qualquer cristão, os homens feitos máquinas de matar tornaram-se novamente crianças. Bolas improvisadas (até a partir de latas de comida racionada), chapéus a fazer de balizas como se estivessem na rua ou no recreio da escola, e o prazer de jogar a sobrepor-se à vontade de derrotar o adversário. A conhecida definição do desporto pelo avançado inglês Gary Lineker, «O futebol é um jogo simples. 22 homens correm atrás de uma bola durante 90 minutos, e no fim ganha a Alemanha», não podia estar mais longe de ser aplicada naquele cenário. O número de jogadores não parece ter tido importância, nem o tempo de jogo, assim como nem sempre a Alemanha venceu, até porque nalguns casos, chegaram a existir equipas mistas de ambos os lados das trincheiras.

«O desporto, que aprofundo por ser o que mais me toca neste evento histórico, pode ser o que se quiser fazer dele. Se o entendermos como parte integrante de um processo de avanço civilizacional, aqueles jogos de bola nas trincheiras servem como um dos melhores exemplos»

Estes actos de inocente mas poderosa rebelião a todos tocou. Certamente, tocou o alerta nos quartéis-generais, que tomaram as providências para garantir que a confraternização não voltaria a acontecer. E, até ao fim das hostilidades, não mais se voltou a repetir em escala comparável a trégua de Natal de 1914.

O desporto, que aprofundo por ser o que mais me toca neste evento histórico, pode ser o que se quiser fazer dele. Se o entendermos como parte integrante de um processo de avanço civilizacional, aqueles jogos de bola nas trincheiras servem como um dos melhores exemplos.

Hoje atravessamos momentos difíceis, embora incomparáveis à carnificina da Primeira Guerra Mundial. Aquela trégua, a tranquilidade enquanto se dá uns chutos na «bola», terá certamente sido um alívio e uma esperança, da normalidade e de um futuro melhor. Para 2021, sem dar tréguas, é necessário que o Governo dê seguimento ao Projecto de Resolução para a retoma da prática desportiva, apresentado pelo PCP e aprovado pelos restantes partidos (com a excepção da abstenção de PS, PSD e CDS, no papel de terra de ninguém), para que regressemos à normalidade e à luta por um futuro melhor.

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